Capítulo 14 - Almas à venda: escolha a sua
— Você não ouviu? — perguntou o bilionário, inclinando-se com gravidade, os dedos entrelaçados como se segurassem a verdade do universo — Quintus? Se tivesse essa chance… em que corpo gostaria de reencarnar?
— Isso é… uma pergunta hipotética? — ele arriscou, tentando não parecer muito assustado.
— Nada é hipotético nesta clínica — o homem loiro respondeu, sorrindo com os dentes todos à mostra, como quem diz “só mais uma colherada de sopa antes da lobotomia”.
Quintus vasculhou o ambiente com os olhos, desesperado por qualquer coisa que pudesse usar como arma: um abajur pesado, um vaso ornamental, até uma xícara de porcelana homicida serviria. Nada. Nem um garfo assassino para chamar de seu.
Tudo era acolchoado e redondo. Até a cadeira era fofa e parecia com um brinquedo de pelúcia. Com um sorrisinho nervoso, começou a falar, tentando ganhar tempo enquanto mentalmente fazia malabarismos com planos de fuga dignos de um esquilo encurralado:
— Eu… acredito, sim. Em reencarnação. Faz tempo — disse Quintus, quase automático tentando captar qualquer indício de reação no seu interlocutor — Mas, quando você pergunta sobre o corpo… quer dizer o quê exatamente? Um corpo de verdade? Um corpo disponível? Tipo… alguém vivo?
— Ou… um corpo já, digamos, disponível em alguma gaveta refrigerada? — continuou o jovem rindo, mas era um riso com cheiro de pavor pois o bilionário não apresentava nenhuma reação — Você… tem uma lista?
— Ou você tá me oferecendo um modelo específico? — perguntou, com a garganta seca e o coração disparado. Quintus tentou encontrar nos outros rostos presentes um fragmento de resposta: uma sobrancelha arqueada, um sorrisinho torto, qualquer gesto que entregasse o que se passava por trás daquele cenário absurdo — Sei lá… tipo a alma do Ayrton Senna em promoção relâmpago?
O bilionário manteve-se imóvel, como se esperasse uma resposta objetiva. Um número preciso. Um dado impessoal. Já o jovem Maximus desviou o olhar, sentindo o suor escorrer pelas costas enquanto pensava em silêncio, tentando organizar o caos dentro da própria mente:
“Se eu realmente tivesse escolha… Eu escolheria um corpo… Bem longe. Um corpo com cicatrizes comuns, de quem caiu da bicicleta, e não de quem foi capturado por um excêntrico com doutorado em loucura. De preferência, o corpo de um agricultor em algum canto esquecido do nordeste. Sem Wi-Fi. Sem bilionários. Sem travesseiros acolchoados demais. Apenas com a dureza do sol, a solidão e a esperança para me atormentar. E boletos. Boletos são bons. Boletos me mantêm na realidade.”
Quintus ergueu os olhos na direção do homem e um calafrio percorreu sua espinha novamente como uma corrente gelada. O coração falhou por um instante, num tropeço involuntário, enquanto sua mente mergulhava numa única certeza inquietante:
“Será que esse homem é um daqueles fanáticos que acreditam que matar alguém pode ‘libertar a alma’? Que reencarnação é uma espécie de level up espiritual, desbloqueado com uma faquinha cerimonial e um mantra em latim?”
Tentando afastar o desconforto, Quintus se forçou a rir. O som saiu alto, quase artificial, uma tentativa de reafirmar que ainda havia lógica, na esperança de que o volume abafasse o absurdo ao redor antes de dizer:
— Essa foi uma boa brincadeira! Relaxa! Não quero morrer. Nem renascer. Estou feliz com esse meu corpinho aqui, meio magro, meio trôpego… mas vivo!
— Interessante — murmurou o bilionário inclinou-se levemente para frente, sua voz suave contrastando com a intensidade do momento — Você realmente acredita nisso… Mas parece ter medo de testar.
Quintus deu um passo involuntário para trás e o tapete traiçoeiro agarrou o seu pé nu como se tivesse vida própria. Ele tropeçou, os braços rodando no ar como hélices, e quase desabou de costas. Só então conseguiu dizer:
— Ei! Sem pegadinha espiritual, por favor! Tenho labirintite emocional e pressão baixa! Posso desmaiar por sugestão!
— Não se preocupe — disse, com uma calma quase inquietante — Ainda não chegou a hora. Mas vai chegar.
Inesperadamente, a luz piscou, mergulhando tudo em uma escuridão breve, mas densa. Não foi uma oscilação qualquer, mas para o jovem era um aviso cósmico, como se o universo tivesse apertado o interruptor apenas para gritar ‘atenção!’.
Quintus gelou. Um som trêmulo de medo escapou de sua garganta, camuflado sob uma tosse mal ensaiada. Imaginou que, a qualquer momento, o chão se abriria e um orixá baiano surgiria com um contrato espiritual em mãos. Em vez disso, só vieram o silêncio… e o bilionário.
O novo riso que tentou emitir ficou preso, abafado, como se até ele tivesse vergonha de sair. A dúvida entrando como quem não pede licença:
“E se isso tudo é só um conto de fadas que criei para justificar meus furos? Uma fábula que inventei para não encarar o abismo que minha infância escavou. Talvez essa história de reencarnação seja só uma forma elegante de esconder que, desde os 12, minha memória virou um campo minado. E que é sempre mais confortável construir explicações do que encarar o vazio. Talvez a reencarnação não passe do meu jeito enviesado de empurrar a verdade, e a dor, para outra vida.”
— Começou a pensar… e duvidar, não é? — perguntou o bilionário cortando o fluxo de pensamento de Quintus.
— Um pouco — respondeu, engolindo seco — É a primeira vez que parece loucura… até pra mim.
— Então me diga — o homem loiro sorriu, quase como um professor satisfeito diante de um aluno rebelde que finalmente fez a pergunta certa — Quando foi que essa ideia de reencarnação começou a fazer sentido pra você?
Mas então… uma lembrança invadiu sua mente com a sutileza de um boi descendo uma escada de mármore. Trazendo o dia em que nasceu sua crença na reencarnação…
Era 2007. Quintus tinha 16 anos e estudava num colégio católico rigoroso, onde dizer que acreditava em astrologia já te rendia dois Pai-Nossos, uma Ave-Maria e uma conversa severa com a freira-diretora. Numa aula de educação física, durante um jogo de queimada, ele jurava que conseguia prever todos os lançamentos da bola.
— Esse vem alto, esquerda, 45 graus. Vai acertar o rosto do Paulo. — dizia, com a autoconfiança de um profeta esportivo.
E não era coincidência: ele acertava. Sempre no Paulo. Sempre no rosto. A precisão era quase espiritual. Quintus se sentia a Mãe Dináh da queimada, se Mãe Dináh usasse tênis e tivesse um dom específico para prever tragédias esportivas.
Mas foi aí que um colega, cético e com o bíceps de um marombeiro, resolveu testar sua clarividência. Arremessou a bola com uma fúria tão intensa que, se pegasse um pouco mais alto, poderia ter entrado no espaço aéreo restrito.
O jovem Maximus nem teve chance de reagir. A bola acertou sua testa com a poesia brutal de um chinelo voador. O mundo virou penumbra. Despencou de costas, braços abertos, olhos virados como se estivesse prestes a psicografar. Dois minutos e meio depois, o silêncio foi rompido por uma nova voz mais grave, mais lenta, que saiu da sua boca como se viesse de outra encarnação:
— Eu… eu fui um goleiro do Íbis. Em 1975.
A turma explodiu em gargalhadas. Mas ele, não. Ele estava sério. Disse que via redes balançando, uniformes encardidos, traves enferrujadas e… o som dos muitos, MUITOS gols sofridos.
Desde aquele dia, tudo mudou. Não foi imediato, nem súbito. Mas algo dentro de Quintus despertou. A cada nova bolada, desmaio ou apagão acidental, as visões voltavam. Sempre mais nítidas. Sempre mais vívidas.
A princípio, era só ele, debaixo das traves, vestindo o uniforme encardido do Íbis Esporte Clube, no longínquo 1975. Via-se tentando defender uma enxurrada de gols, sempre atrasado, sempre com a bola passando rente aos dedos. Era como se a cada perda de consciência, sua mente recuperasse mais um pedacinho daquela existência sofrida como goleiro do “pior time do mundo”.
Mas os flashes não pararam por aí. Recentemente, nas últimas ‘viagens involuntárias’, como ele mesmo passou a chamar seus apagões, surgiram novas imagens. Novas vozes. Novas vidas.
Em uma delas, ele se via no interior de Goiás, por volta de 1908, vendendo pamonha com um entusiasmo tão iluminado que mais parecia um missionário do milho. Circulava de carroça entre as vilas, entoando cantos quase sagrados:
“Pamonha fresca, bênção do cerrado!” — repetia, com os olhos brilhando como quem carrega uma verdade ancestral em cada espiga.
Noutra visão, mais recente, surgia como um engraxate no centro de São Paulo, durante os anos 1950. Sentado em sua caixa de madeira, lustrava sapatos com destreza e, enquanto esfregava a graxa, fazia leituras profundas dos pés de seus clientes:
“Esse calcanhar rachado revela angústias existenciais, doutor.” — dizia com convicção. Ganhou fama na região como o ‘Podólogo Místico da República’.
Essas lembranças, intensificadas a cada tombo, começaram a inquietá-lo. Ele não lembrava de ninguém na família comentando sobre o Íbis, pamonhas espirituais ou leitura de pés. Nunca pesquisara esses assuntos. Era como se essas vidas pulassem de dentro dele, emergindo de um arquivo oculto que só se abria com o sacolejo certo no lobo frontal.
As visões começaram a se desfazer como fumaça ao vento, e Quintus foi trazido de volta à realidade com um sobressalto. Fechou os olhos por um instante, tentando equilibrar-se entre o que viu e o que estava à sua frente. Ao reabri-los, o ambiente voltou a se definir com nitidez quase agressiva, como um lembrete de que ele ainda não compreendia aquele mundo.
O bilionário seguia ali, firme, encarando-o com aquele mesmo olhar meticuloso e indecifrável. Havia algo de científico na forma como ele o analisava, como se o estivesse decifrando camada por camada.
Quintus sentiu a pressão crescer com o silêncio que se alongava. O medo surgia da incerteza sobre onde estava, mas por trás do desconforto algo mais vibrava. Uma urgência silenciosa se formava em seu peito, a necessidade quase instintiva de entender. Ele precisava de respostas e tudo naquele homem indicava que elas estavam ali, ocultas sob a superfície do seu olhar enigmático.
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