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     Eu detesto esse momento antes do amanhecer. Sempre fico muito pensativa enquanto estou deitada, esperando aquela maldita bola de luz que insiste em machucar meus olhos resolver aparecer. Talvez isso seja assim para todo mundo… Estar sozinha me faz ficar ainda mais pensativa.

     Acredito que tudo seria melhor se as coisas tivessem acontecido de maneira diferente. Mas agora, tudo que posso fazer é esperar por uma oportunidade para mudar meu destino.

     O som do vento adentrando pelas fissuras das paredes do meu quarto me traz uma sensação rústica. Assim como esta casa, feita de madeira envelhecida e pedras gastas, que mais parece uma relíquia do tempo. As tábuas do chão rangem, algumas estão tão desgastadas que parecem prontas para ceder. Ela não tem muitos cômodos, apenas dois quartos, um banheiro e a sala principal onde fica uma simples lareira de pedra que uso para cozinhar e me aquecer um pouco em noites mais frias. As paredes de madeira são robustas, mas repletas de pequenas brechas que deixam o vento gelado se infiltrar, carregando consigo o cheiro distante de fumaça das lareiras vizinhas.

     Lá fora, outras casas semelhantes se espalham pelo espaço, divididas por cercas baixas de pedra que mal delimitam os terrenos. Essas construções, feitas dos mesmos materiais simples, resistem ao tempo assim como a minha. Entre uma casa e outra, pequenos quintais cultivados com ervas e flores modestas quebram a monotonia cinzenta, enquanto algumas árvores esparsas se erguem como vigias solitárias, dobrando-se ao toque gentil do vento.

     As ruas estreitas e de chão batido que serpenteiam pelo bairro estão desertas à noite, mas sempre guardam ecos do movimento do dia: passos apressados, rodas de carroças e a vida selvagem. Apesar de estar no coração da cidade, o ambiente ainda guarda um ar campestre, com uma natureza teimosa que insiste em se infiltrar entre as pedras e as construções.

     Eu gostava de passar as noites de verão sentindo a brisa que invadia o espaço, como um sopro divino que extinguia o calor. Mas, ultimamente, esta casa e tudo ao seu redor se tornaram mais frios… frios demais. No entanto, logo darei um adeus. Só preciso esperar.

    — Mais um dia… só mais um dia até o momento em que serei capaz de fugir da minha gaiola de pedra.

     O dia em que finalmente poderei ultrapassar aqueles portões e seus muros altos…, mas quem eu quero enganar? Eu nunca sobreviveria sozinha fora desses muros. Pelo menos não alguém como eu. Já faz um tempo que percebi que gente como eu, não pode almejar um destino muito brilhante. Pois a luz daqueles que realmente “são valorosos”, como gostam de dizer, projeta uma sombra enorme. E essa sombra… bem, não serve para brilhar.

     Já ouvi histórias de pessoas como eu que almejaram a glória. Mas, no final, ainda somos as sombras deste reino, servimos para que os poderosos possam se afirmar como “seres superiores”. E nada mudará enquanto eu continuar aqui, ouvindo o que eles impõem como lei. Sei que lá fora pode ser perigoso, mas, mesmo assim, estou decidida: irei partir na primeira oportunidade e encontrar uma maneira de sobreviver por conta própria.

     Até pensei em um plano para quando eu sair daqui. Não sei ao certo no que vai dar, mas me lembro de um conselho que um mercador me deu uma vez. Ele disse, enquanto mantinha o dedo indicador levantado.

    — Um mercador que se planeja cuidadosamente já tem metade do caminho para o sucesso no bolso.

     Não sei se entendi completamente o que aquele senhor quis dizer, mas deve significar que o planejamento é uma parte essencial, certo? Enfim, para garantir o sucesso desse plano, é melhor eu começar a me mexer. Preciso de suprimentos.

    — Será que o dinheiro que ganhei ajudando os comerciantes, vai dar? Espero que sim… Ou melhor, tem que dar!

     Acredito que consegui uma quantia razoável. Não é muito, mas foi trabalho honesto. Como esse é um dos únicos serviços que aceitam alguém que ainda não está na idade de corescer, não paga tão bem. Apesar disso, já passei dessa idade…, mas eles não precisam saber. É melhor assim.

     Desde a época da escola, quando era pequena, sempre adorei ler e passava várias tardes na biblioteca lendo os livros que pareciam interessantes. Lembro-me de aprender diversas coisas, como o significado de corescer. É uma palavra que junta “cor” e “crescer”, pois, representa exatamente isso: crescer em cor. Esse fenômeno é mais do que apenas uma mudança física; é como um rito de passagem. É o momento em que as pessoas deste mundo deixam de ser crianças e tornam-se aptas para contribuir em algo na sociedade. A partir do corescer, elas podem acessar e controlar a energia mágica, assumindo um lugar mais ativo na sociedade.

     O processo começa com o despertar da energia mágica absorvida durante a vida, que acontece normalmente aos quatorze anos. Quando essa energia se manifesta, é como uma explosão que transforma a pessoa para sempre. Os cabelos e a íris mudam de cor, assumindo tonalidades que refletem a essência mágica de cada indivíduo. Essa transformação não é apenas física, mas até espiritual e social, eu diria.

     Lembro de um livro que mencionava os reinos divididos em cores. Nos quatro reinos principais, essas cores têm uma ligação direta com as energias predominantes da região. O Reino do Fogo é dominado pela energia vermelha, vibrante e intensa, enquanto o Reino da Terra tem a energia verde, estável e resiliente. O Reino da Eletricidade concentra a energia amarela, pulsante e imprevisível, e o Reino da Água é impregnado pela energia azul, fluida e serena. Essas energias estão presentes em tudo: no ar que respiramos, na água que bebemos, nos alimentos que consumimos. É comum que uma pessoa coresça com a cor predominante do lugar onde vive, já que sua conexão com o ambiente influencia diretamente esse processo.

     No entanto, nem sempre é assim. Há casos raros de pessoas que corescem com cores diferentes, como uma vez que uma criança do Reino da Água manifestou a energia vermelha do fogo. Esses indivíduos são vistos como anomalias, muitas vezes despertando admiração e suspeita em igual medida. Ainda mais raros são aqueles que corescem em mais de uma cor, algo tão incomum que algumas pessoas acreditam ser apenas uma lenda.

     Mas nem todos têm a chance de corescer. Algumas pessoas, por razões desconhecidas, nunca passam por esse despertar. Em certos casos, é como se a energia mágica simplesmente não existisse nelas. Essas pessoas são chamadas de desbotadas, um termo que carrega tanto pena quanto desprezo. Enquanto todos ao redor ganham cores vibrantes e assumem seus papéis no mundo, os desbotados permanecem os mesmos, como sombras de um universo repleto de cor.

     Em nosso continente, habilidades mágicas são mais do que valorizadas, são o que definem seu lugar na sociedade. A força que vem da sua cor determina o respeito que você recebe, as oportunidades que surgem e, em alguns casos, até mesmo se você será tratado como um ser humano. E, claro, a falta dessas habilidades é vista como uma falha imperdoável por aqueles que nunca precisaram questionar sua própria posição. Esses malditos se acham superiores apenas porque nasceram com um pouco de sorte, como se tivessem conquistado suas cores, quando, na verdade, foram simplesmente presenteados por elas.

     O que me conforta é saber que a situação não parece ser a mesma em todos os reinos. O Reino da Terra sempre me fascinou. Um caixeiro-viajante contou uma vez várias histórias sobre como é o reino. As histórias falavam de árvores gigantes que tocam o céu e suas raízes enormes que pareciam segurar toda a terra. As pessoas dançam e cantam festejando até o sol nascer.

     Se for verdade, é bem diferente daqui. No Reino da Água, a frieza das pessoas não é só emocional, mas também social. Aqui, tudo parece girar em torno da posição que sua cor lhe dá. Os mais poderosos, com suas cores vibrantes e habilidades impressionantes, ocupam o topo, enquanto nós, desbotados, somos marginalizados, tratados como invisíveis.

     Nunca vou esquecer de uma vez, quando eu ainda era pequena, e fui até o mercado com minha avó. Estávamos andando pelas barracas quando um homem da nobreza passou montado em um cavalo majestoso, seu manto azul brilhando como uma joia sob o sol. Ele se aproximou de uma senhora desbotada que vendia pães e, com um gesto de desprezo, chutou sua mercadoria para o chão, reclamando que o cheiro da “comida suja” estava atrapalhando sua caminhada. Ninguém fez nada. As pessoas ao redor abaixaram a cabeça, murmurando entre si, mas ninguém ousou intervir. Minha avó foi até ela oferecer ajuda, eu ainda estava processando o que havia ocorrido, quando olhei para a senhora. Vi a dor no rosto da mulher enquanto ela recolhia seus pães sujos, tentando salvar o pouco que restava.

     Naquele momento, eu entendi. Para eles, os desbotados não são nada. Só porque não corescemos, somos tratados como se não tivéssemos o direito de existir. Esse é um dos motivos pelo qual desejo sair daqui.

     Quem sabe eu possa achar um cantinho no Reino da Terra? Não parece uma má ideia viver em meio à natureza. Ou talvez no Reino da Eletricidade… Seria interessante conhecer o reino responsável pela maior produção de novas tecnologias. Quem sabe até o Reino do Fogo, com suas enormes forjas? Hum… pensando bem, melhor não. Odeio o cheiro de fumaça, e viver em um lugar tão quente não parece nada fácil.

     Apesar de tudo, o Reino da Água ainda tem um clima decente. Não somos os maiores produtores de alimentos à toa. Aqui chove regularmente, o que é ótimo para o plantio por si só. Alguns produtores também usam suas habilidades mágicas para enriquecer ainda mais as plantações, o que torna o reino ainda mais próspero. E os que não têm aptidão para o plantio acabam sendo designados para proteger as plantações de possíveis ameaças, o que ajuda a manter um certo equilíbrio nas funções dos cidadãos. E em casos raros, quando uma pessoa coresce e demonstra um poder acima da média, ela acaba sendo convocada para a capital do reino, onde recebe treinamento e passa a exercer uma função importante dentro da sociedade real.

     Este lugar tinha tudo para ser alegre e hospitaleiro, com boa comida e paisagens de tirar o fôlego, mas o povo daqui… O jeito como alguns olham para você, como se fosse entulho jogado em uma viela qualquer, isso pesa. São olhares que cortam, que fazem você sentir que não tem lugar ali. Ninguém escolhe algumas coisas da vida. Às vezes, simplesmente temos certo azar.

     Lembro-me bem do dia em que completei meus quatorze anos. Meus amigos estavam ansiosos, esperando ver qual cor eu iria corescer. Mas nada aconteceu. Meu cabelo continua escuro como a noite. Assim que descobriram, muitos que se diziam meus amigos viraram as costas para mim.

     Poucas pessoas se mantiveram ao meu lado, algumas talvez por pena ou porque realmente gostavam de mim. Mas a pessoa que eu mais queria ao meu lado, a única que me trazia conforto em um lugar como este, se foi… Minha avó. Já faz quase um mês, mas o vazio dessa casa parece crescer a cada dia sem ela aqui comigo.

     Eu adoraria ficar aqui inerte, mas chega de lamúrias. Não posso me dar ao luxo de ficar aqui o dia todo. Preciso me preparar para que logo eu possa dar adeus a esta casinha… Tantas memórias, mas preciso seguir em frente.

     Infelizmente, há poucos motivos para continuar aqui, e não quero acabar me tornando um fardo para eles. Olho ao redor como se estivesse em busca de consolo, que não vem. Suspiro. Ah, o tempo é sem dúvida um inimigo poderoso, não é?

    — Enfim, onde deixei aquela bolsa de moedas?

     Enquanto eu me questionava sobre o paradeiro das moedas, a luz do sol entrou lentamente pela janela do meu quarto, aquecendo brandamente o interior e me indicando que um novo dia havia nascido. Apesar de querer ficar mais algum tempo deitada na cama, a luz já está incomodando meus olhos.

     Levantei, ainda meio sonolenta, e calcei minhas botas. Apesar de estarem meio desgastadas e serem feitas de um couro barato, elas são confortáveis. Não tenho do que reclamar, o artesão que as fez deve ser bastante habilidoso, afinal.

     Procurei por todos os cantos da casa, o silêncio sendo substituído pelo barulho de gavetas sendo vasculhadas ansiosamente. No entanto, a única coisa que encontro são quinquilharias e poeira.

    — Não é possível que eu tenha perdido… Tenho certeza de que guardei em uma dessas gavetas ontem à noite.

     Continuei procurando por mais algum tempo, mas sem êxito. Talvez eu realmente as tenha perdido no caminho para casa… Que sorte a minha!

     Com um suspiro de frustração, decidi que precisava de uma pausa nas buscas. A luz do sol continuava a banhar o quarto, agora mais intensamente, lembrando-me do tempo que já havia perdido.

     Fechei as gavetas apressadamente, peguei meu manto que estava sobre a cabeceira da cama e segui para o lado de fora. Quem sabe se eu refizer meus passos, poderia encontrá-las?

     Essas moedas… Não eram apenas moedas para mim. Cada uma delas representava o trabalho árduo que tive, as horas gastas ajudando os comerciantes, o tempo sacrificado para conseguir cada moeda. Elas eram a minha chance, minha oportunidade de sair daqui e mudar minha vida.

     Se eu perder esse dinheiro, o que me restará? Como vou conseguir ir embora? Sem elas, estarei presa aqui, como uma prisioneira do meu próprio azar.

     A respiração acelerada e o aperto no peito me fizeram perceber que, se não encontrasse aquelas moedas, eu teria que ficar aqui por muito mais tempo. Talvez fosse hora de encarar a verdade… Ou encontrar uma forma desesperada de resolver isso. Mas, por enquanto, a busca tinha que continuar.

    Fim do capítulo 1 – Em Companhia do Silêncio.

    Escrito por TheLastShadow.

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