Capítulo 13: A Dança dos Predadores - Fogo. (2/2)
A voz do demônio da gula reverberou pelo cômodo, grave e carregada de um prazer doentio. Seu sorriso grotesco se alargou, os olhos dourados brilhando com um desejo faminto. O ar ficou mais pesado, como se a própria presença daquela criatura drenasse a vitalidade ao redor. Meu peito se apertou. Era como se o calor de Selene ainda estivesse ali, queimando através das janelas estilhaçadas, mas meu corpo sentia apenas um frio sufocante.
Meu olhar saltou para o garoto ao meu lado. Seus olhos estavam arregalados, fixos na figura monstruosa que bloqueava parcialmente a saída. Ele tremia, as mãos agarradas com força à corrente que acabou de ser solta. Sua mãe ainda não havia despertado, o choque provavelmente a havia feito desmaiar, e agora ela jazia mole em seus braços. Eu queria dizer algo, qualquer coisa, mas minha própria voz se recusava a sair.
O homúnculo foi o primeiro a reagir.
Com um som agudo de desespero, ele disparou para a porta, suas pequenas pernas se movendo com uma velocidade surpreendente. O demônio franziu a testa, como se estivesse surpreso com a audácia da criatura. O homúnculo se esgueirou pelo espaço minúsculo entre a porta e a parede, escapando por pouco antes que o demônio avançasse para bloqueá-la por completo. Um estrondo ecoou quando ele fechou o caminho com seu próprio corpo massivo, um sorriso de satisfação se espalhando em seu rosto grotesco.
— Não há escapatória!
Seus olhos predadores caíram sobre nós, e naquele instante, senti que éramos presas encurraladas. Meu coração martelava contra minhas costelas, meu corpo implorava para se mover, para correr, para lutar. Mas meus pés estavam presos ao chão, congelados pela aterradora consciência de que, se fizesse a escolha errada, não haveria uma segunda chance.
***
Sem perder tempo, a resposta dele veio na forma de um súbito alastrar de gelo. Espadas e lanças congeladas emergiram do solo ao nosso redor, afiadas e traiçoeiras. A temperatura despencou e cristais de gelo começaram a se formar sobre meu cabelo e roupas. Árvores, o chão e até uma pequena lagoa ao lado foram tomados por uma camada de gelo reluzente. Meu adversário deu um passo à frente, deslizando suavemente sobre a superfície gélida enquanto eu sentia a resistência da neve endurecida sob meus pés.
— Você não vai conseguir escapar disso — ele afirmou, sua voz carregada de uma confiança absoluta. — Com o campo dominado pelo gelo, eu me movo mais rápido. Enquanto você… bom, vamos ver por quanto tempo consegue ficar de pé.
Eu soltei uma risada alta e desconcertante. Meu oponente franziu o cenho.
— O que foi? Já aceitou a derrota ou enlouqueceu de vez?
Inclinei a cabeça levemente para o lado, um sorriso cortante se formando em meus lábios.
— Estou apenas me divertindo com suas presunções.
O olhar dele se endureceu, e sua expressão de segurança se transformou em irritação. Ele avançou, conjurando mais lâminas de gelo no ar, preparando-se para lançá-las contra mim. Mas quando ele deu o primeiro passo, minha expressão se desfez em algo frio e sem emoção. Por um momento ele recuou instintivamente. Eu sorri de forma lenta e calculada.
— O que foi? Já aceitou a derrota ou enlouqueceu de vez? —zombei.
Ele bufou de raiva e atirou todas as lâminas de gelo em minha direção. Espadas e lanças vieram de todos os ângulos, reluzindo com uma luz pálida e mortal. Eu deixei escapar um olhar de puro desprezo, levantando os dedos quase que lentamente.
— Eu tenho algo perfeito para oponentes como você…, mas não poderia usar isso com mais pessoas por perto.
Com um estalar de dedos, o mundo ao meu redor mudou.
— Caldeirão de Sonoran!
Uma lâmina de gelo estava a centímetros do meu rosto quando, de repente, começou a derreter diante dos meus olhos. As outras armas congeladas colidiram contra algo invisível e se dissolveram instantaneamente em vapor. Uma onda de calor emanou de mim, crescendo como um sol em erupção. O gelo que cobria o campo começou a se partir, derretendo em uma velocidade alarmante. Árvores se libertaram de suas cascas congeladas, a neve se transformou em riachos fumegantes, e a lagoa antes cristalizada borbulhava em ebulição.
Ao nosso redor, uma parede de fogo carmesim ergueu-se, formando um círculo inescapável. Meu oponente recuou, seus olhos arregalados diante do súbito colapso de sua vantagem.
Dei um passo à frente, com meu olhar fixo no dele.
— Está pronto para conhecer o inferno?
Eu caminhei lentamente em sua direção, sentindo o calor pulsar ao meu redor, crescendo a cada passo. O fogo dançava refletido na minha pele, e o cheiro de cinzas se misturava ao ar pesado da noite.
Meus olhos se fixaram nele, observando cada tentativa inútil de reverter o inevitável. Ele levantou as mãos, tentando moldar armas de gelo, mas antes mesmo que as lâminas pudessem tomar forma, elas derreteram, escorrendo como água entre seus dedos. Ele trincou os dentes, insistiu, e disparou cacos afiados contra mim. Vi o desespero tomar conta do seu rosto no instante em que percebeu: eles não me alcançariam. Evaporavam antes mesmo de chegarem perto.
Soltei um suspiro, inclinando levemente a cabeça.
— Por um momento, achei que teria que me esforçar de verdade. — Minha voz carregava uma pontada de decepção. — Mas não foi dessa vez.
Ele vacilou. Eu vi o momento exato em que o medo o dominou. Seu olhar percorreu o campo de batalha, buscando uma saída. A barreira de fogo o cercava, alta e impiedosa. Ele sabia que estava encurralado.
E então, fez sua escolha.
No instante em que girou o corpo e correu para a parede de chamas, eu já soube o que aconteceria. Ele não pensou, apenas agiu, dominado pelo desespero. Seu braço atravessou a muralha de fogo… e então o grito veio. Alto, agonizante. As labaredas subiram por sua pele, devorando carne e ossos sem hesitação. O cheiro de queimado invadiu o ar, e ele tropeçou para trás, segurando o braço retorcido, o rosto contorcido em dor.
Cruzei os braços e o encarei, impassível.
— Sua escolha é morrer fugindo?
Ele respirava com dificuldade, os olhos arregalados, o corpo tremendo. Mas então… riu.
No início, foi um som baixo, seco, forçado. Mas cresceu. Se espalhou. Como se, no último instante, ele tivesse mergulhado de cabeça na própria loucura.
— Eu não esperava encontrar um monstro como você… num vilarejo no meio do nada.
Levantei uma sobrancelha. Um monstro? Se ele ao menos soubesse o que era isso.
— Tudo teria dado certo…eu estava tão perto de conseguir de curar disso — Sua voz estava trêmula, e ele me encarou diretamente. — Se eu não tivesse pego a pessoa errada.
Permaneci em silêncio. Ele queria ver uma reação. Queria ver se suas palavras me afetavam.
— Aquela garota… aquela inútil. — Seus lábios se curvaram em um sorriso cruel. — Uma desbotada ridícula que nem deveria existir.
Algo se agitou dentro de mim, um incômodo fugaz que enterrei antes mesmo que pudesse se formar por completo.
— Fraca, insignificante, um erro ambulante. São todos uns vermes imundos…
Já tinha ouvido o bastante. Minha mão encontrou o cabo da espada, e o som do metal deslizando ecoou no silêncio.
— Já perdi tempo demais com você… um monstro né? — A fúria já dominava minha visão. — Talvez eu seja um monstro… mas do tipo que caça outros!
O brilho do fogo refletiu na lâmina, tingindo-a de vermelho incandescente. Mas ele não recuou. Pelo contrário. Seu riso se aprofundou, tornando-se um sussurro venenoso.
— Pode vencer essa luta…, mas sua amiguinha provavelmente já está mor…
Minha lâmina cortou o ar antes que ele terminasse a frase. O impacto foi seco, preciso. A lâmina perfurou seu peito com facilidade, rasgando carne e ossos como se fossem papel. Seus olhos se arregalaram, o riso se transformando em um engasgo sufocado. Eu o observei de cima, sem pressa.
— Sucumba.
Então, o fogo o consumiu.
O calor pulsou quando as labaredas emergiram do seu corpo, devorando-o por dentro. Vi suas veias congeladas brilharem em um tom escarlate antes de derreterem, transformando-se em rios flamejantes sob a pele. Seu corpo se contraiu, endureceu, e sua boca se abriu em um grito mudo que nunca chegou a se formar. Aos poucos, sua pele se rachou, negra como carvão, e tudo o que restou foi uma estátua feia e carbonizada.
Recolhi minha espada, limpando-a com um único movimento antes de guardá-la. Me virei para o vilarejo, mas antes, lancei um último olhar para o que sobrou dele.
— Uma morte patética para alguém tão barulhento.
Eu já havia dado as costas para aquele monte carbonizado quando senti. Uma presença frenética. Veloz. Desesperada. Meus instintos gritaram para atacar, mas a pequena criatura que surgiu ofegante diante de mim não era inimiga. O líder dos Homúnculos da Floresta, mal conseguia respirar, os olhos esbugalhados tremendo de puro desespero.
— Garota boa… perigo… grande perigo!
Meu coração parou. Eu não precisava de mais detalhes para saber que não podia perder tempo. No instante seguinte, disparei.
Meus pés rasgavam o solo, e a paisagem ao redor se dissolvia em borrões de sombra e fogo. O vento chicoteava meu rosto, mas nada importava. Nada poderia me deter. Um nó apertava minha garganta, cada passo era uma súplica silenciosa para que eu não chegasse tarde demais.
As palavras dele ainda queimavam em minha mente.
“Sua amiguinha provavelmente já está mor…”
Se fosse apenas um blefe, ele não teria dito com tanta convicção. O pensamento se cravou, cruel e implacável. Eu sabia. Havia outro inimigo. A luta ainda não tinha acabado.
O vilarejo surgiu à minha frente, engolido pelas sombras, mas não diminuí o ritmo. Cruzei becos estreitos, saltei por cima de destroços, deslizei sob telhas quebradas. A casa de que o sequestrador havia aparecido ficava no centro. O instante em que a avistei foi o mesmo em que algo dentro de mim gritou em alerta.
Havia alguém lá dentro…
Então, antes que eu pudesse sequer me aproximar… uma das janelas explodiu.
E foi aí que eu vi Ashley.
Meu corpo travou por um milésimo de segundo. Tempo suficiente para testemunhar sua silhueta sendo lançada para fora, o reflexo da lua cintilando contra os cacos de vidro que rodopiavam ao seu redor. Seu corpo girou no ar, sem controle, como uma marionete com os fios cortados. O impacto veio com um estrondo seco quando atingiu o chão.
Ela não se moveu.
Dentro da casa, algo se mexeu. Emergindo da moldura destroçada da janela, uma silhueta monstruosa tomou forma. Olhos vorazes. Presas à mostra. Um olhar impregnado de ódio e impaciência.
— Um Demônio!?
Estava confusa com o que via, mas ver Ashley naquela situação me fez… queimar.
Um calor febril percorreu minha espinha, fervendo sob a pele como um trovão prestes a despedaçar o céu. Meus dedos se contraíram, o ar ao meu redor vibrando com uma energia sufocante. O Demônio saiu da casa com passos pesados, os olhos famintos fixos no corpo caído de Ashley. Ele parecia ignorar o mundo ao seu redor, como se tudo que importasse fosse o que estava a sua frente.
Avancei desesperadamente em sua direção para impedir seja lá o que ele planejasse fazer.
O solo cedeu sob meus pés quando me lancei adiante, um borrão atravessando a escuridão. O monstro ergueu a cabeça no último instante, farejando o perigo…, mas era tarde demais. Meu punho incandescente encontrou carne e osso com um impacto violento, arremessando a criatura para trás como se fosse um pedaço de pano ao vento. Ele colidiu contra o que restava da parede da casa, rachaduras se espalhando como raízes por entre as tábuas.
Não quis lhe dar o menor tempo para reagir.
Antes que ele pudesse se recompor, já estava sobre ele. Meu joelho afundou em seu peito, esmagando-o contra os destroços. O Demônio rugiu, a boca se abrindo em um arco impossível, um brilho alaranjado começando a se formar no fundo de sua garganta: Magia.
Minhas mãos se moveram por instinto. Segurei sua mandíbula e torci… Um estalo ecoou.
A magia se dissipou no ar como fumaça. O monstro se debateu sob mim, garras tentando me rasgar, mas não importava. Eu não daria tempo para esse maldito respirar.
O Demônio estremeceu sob meu aperto, um som gutural escapando de sua garganta. Seus olhos, antes cheios de ódio, agora transbordavam algo diferente: Medo.
Um estalo cortou o silêncio da noite. Seu corpo ficou inerte. Soltei um suspiro pesado, mas a tensão em meu peito não cedeu. Me virei.
Ashley ainda não havia se movido. Meus pés se arrastaram até ela.
— Ashley…?
Nenhuma resposta… o frio que senti naquele momento não veio do vento.
— Como diabos isso aconteceu? Fui inocente demais em pensar que tudo acabaria bem?
O silêncio respondeu com um peso insuportável. O cheiro de sangue ainda pairava no ar, e a lua lançava seu brilho pálido sobre nós, indiferente. Meus punhos se cerraram. Não… isso não poderia acabar assim.
Fim do Capítulo 13 – A Dança dos Predadores: Fogo. (2/2)
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