Índice de Capítulo

     O silêncio da manhã não era exatamente silencioso. O vento carregava consigo resquícios da noite passada: o cheiro de cinzas, o sussurro das folhas, os ecos distantes de algo que já se foi. Eu sentia cada batida do meu coração como um lembrete de que ainda estava ali. Viva.

    Selene, ao meu lado, soltou um suspiro longo, cansado, mas aliviado.

    — Bem, isso foi uma desgraça e meia… — Ela estalou o pescoço e me lançou um olhar divertido. — Você sempre planeja quase morrer quando ganha novas habilidades, ou foi só uma coincidência?

    Revirei os olhos, mas não pude evitar um sorriso fraco.

    — Não estava exatamente nos meus planos.

    — Hah, claro que não. Mas você sabe, foi bem dramático. No meio da luta, seu cabelo brilhando, espada em mãos… Confesso que foi até meio impressionante.

     Balancei a cabeça, sem saber ao certo como responder. Tudo ainda parecia tão irreal. Meu corpo doía, meus pensamentos estavam dispersos, e apesar do alívio por termos vencido, uma pergunta persistia em minha mente: E se eu os perdesse de novo?

    Antes que eu pudesse colocar isso em palavras, um som fraco cortou o ar: Passos apressados.

    — P-por favor! — A voz trêmula de um garoto ecoou, cortando nossa conversa. Ele corria em nossa direção, os olhos arregalados, desesperados. — Minha mãe… minha mãe está ferida!

    A exaustão foi varrida do meu corpo no mesmo instante. Selene e eu trocamos um olhar rápido antes de nos apressarmos para segui-lo. O demônio havia ferido gravemente a mãe do garoto, ela precisava urgente de tratamento.

    — O que aconteceu? — indagou Selene, abaixando-se para ver a mulher inconsciente.

    Seu rosto estava pálido, os lábios rachados e o ferimento no peito com um curativo improvisado.

    — Ela se feriu tentando me proteger… — O garoto baixou a cabeça, apertando os punhos. — Eu… eu não sabia o que fazer…

    — Você não teve culpa… ela fez o que uma mãe de verdade faria. — Tentei conforta-lo.

    A situação estava grave, mas minha mente trabalhou rápido. Eu e Selene não tínhamos habilidades de cura, mas talvez…

    — E as outras pessoas do vilarejo? Alguém deve conseguir nos ajudar!

    Fui até a porta e, com toda a força que encontrei, gritei:

    — Ei! Alguém pode ajudar?!

    Por um momento, apenas o silêncio respondeu. Então, portas começaram a ranger, janelas se abriram com hesitação. Rostos cansados e desconfiados surgiram, olhos carregando incerteza.

    — O ataque… foi contido? — uma mulher perguntou hesitante, saindo de sua casa.

    — Sim — Selene respondeu, cruzando os braços. — Pelo menos por enquanto.

     As pessoas começaram a sair, algumas ainda cautelosas, outras sussurrando entre si, tentando entender o que havia acontecido na noite passada. Mas logo um dos moradores ao ver o estado da mulher, pareceu despertar para a urgência da situação.

    — Precisamos levar ela até o curandeiro!

     Com a ajuda de alguns moradores, conseguimos erguer a mulher com cuidado e levá-la para onde ela poderia ser tratada. O medo e o peso da noite anterior ainda pairavam sobre aquele vilarejo…, mas, pouco a pouco, as coisas começavam a se mover outra vez.

     A casa do curandeiro era diferente de todas as outras do vilarejo. Enquanto a maioria das moradias parecia castigada pelo tempo, com suas madeiras apodrecendo e telhados frágeis, aquela construção parecia resistir de maneira peculiar. Não porque estivesse bem conservada, mas porque era envolta por um caos calculado: como se o dono não se importasse com a aparência, apenas com a utilidade.

     O aroma que pairava no ar ao nos aproximarmos era intenso e estranho, uma mistura de ervas secas, óleos medicinais e algo levemente ácido. Na pequena varanda da casa, pendiam cordas repletas de folhas desidratadas, amarradas em feixes, chacoalhando com o vento. Várias vidrarias de diferentes formatos estavam dispostas em prateleiras externas, seus líquidos variando de tons âmbar até um azul profundo. Algumas tinham pequenos pedaços de raízes flutuando dentro delas, outras continham pós finos que grudavam no vidro.

    A porta era velha, rangendo ao menor toque, mas quando bati nela, não houve resposta.

    — Ei! Precisamos de ajuda! — insisti.

    O silêncio se arrastou por alguns segundos, antes que uma voz rouca e resmungona ressoasse do outro lado.

    — E quem não precisa de ajuda? Vão embora, não tenho comida.

    Troquei um olhar com Selene, que bufou de irritação.

    — Não temos tempo pra isso.

    Bati novamente, mais forte dessa vez.

    — Tem uma mulher ferida! Você é o curandeiro, certo?

    — E daí? Não é problema meu.

    Selene cerrou os dentes, seu pé já se erguendo em um movimento que eu conhecia bem.

    — Selene, espera…

     O estrondo ecoou quando a porta cedeu ao chute, se escancarando contra a parede de madeira. O interior da casa estava mergulhado em penumbra, iluminado apenas por auras amareladas de lamparinas penduradas por ganchos. O cheiro era ainda mais forte ali dentro, impregnando cada canto com essências herbais e defumadas.

    O curandeiro, um homem de idade avançada com cabelos pretos desgrenhados e um rosto cheio de rugas, arregalou os olhos ao ver Selene entrar carregando a mulher ferida nos braços.

    — O que pensa que está fazendo?!

    — Salvando ela… e a sua consciência — Selene respondeu sem hesitar.

     Ela colocou a mulher sobre uma mesa de madeira rústica no centro do aposento, entre potes de barro e rolos de pergaminho repletos de anotações. O curandeiro abriu a boca para reclamar mais uma vez, mas ao ver o estado da ferida, resmungou algo inaudível e foi buscar seus instrumentos.

    O processo de tratamento começou rapidamente, e enquanto ele aplicava compressas e verificava os ferimentos, os moradores que nos ajudaram a carregar a mulher começaram a murmurar entre si.

    — Esse vilarejo está amaldiçoado…

    — Tudo começou quando as plantações começaram a morrer…

    — Nem mesmo ervas estão crescendo direito.

    O curandeiro, sem desviar o olhar do que fazia, murmurou:

    — Até mesmo as ervas medicinais mais comuns estão escassas. Nem lembro a última vez que consegui encontrar manjericão-de-safira por perto. Esse solo costumava ser fértil… agora é como se a própria terra tivesse adoecido.

    Um arrepio percorreu minha espinha. Eu já tinha uma suspeita… e pensando com calma, agora parecia quase óbvio.

    — Isso pode ter sido causado pelo demônio da gula que derrotamos…

    Os olhares dos moradores se voltaram para mim, e Selene cruzou os braços, reforçando:

    — Ele consome a vida ao seu redor. Formas de vida mais fracas são drenadas primeiro. Isso explicaria por que nem mesmo animais apareceram por aqui.

    — Um demônio? Aqui no vilarejo?

    Selene deu um passo adiante, e contou aos moradores o que havia ocorrido na noite passada. O curandeiro ao ouvir o que ela dizia, franziu o cenho, refletindo sobre aquilo enquanto fazia os últimos curativos.

    — Sinto muito pela morte dos donos da estalagem…, mas se estiverem certas… a morte desse demônio pode significar que as coisas podem voltar ao normal. Mas pode levar tempo.

    Silêncio. Pela primeira vez desde que chegamos, os moradores pareciam ter um fiapo de esperança. Pequeno, hesitante…, mas real.

    Selene encostou-se à mesa, cruzando os braços e lançando um olhar avaliador para os moradores ao redor.

    — Vocês pediram ajuda para alguma cidade próxima?

    Houve um breve silêncio antes que um dos homens assentisse, seu rosto ainda marcado pela exaustão.

    — Mandamos aves mensageiras para Rivendrias…, mas a resposta que recebemos foi que eles próprios foram atacados recentemente. Não poderiam enviar ninguém para nos ajudar.

    Minha respiração vacilou ao ouvir isso. Rivendrias… A cidade que havíamos deixado para trás. Então eles ainda estavam lidando com as consequências do ataque.

    Uma mulher idosa juntou as mãos em súplica, sua voz carregada de emoção.

    — Os Deuses devem ter guiado vocês até aqui…, se não fosse por vocês, talvez já estivéssemos mortos.

    Selene suspirou, passando a mão pelos cabelos.

    — Então, eu mesma irei buscar suprimentos.

    Os moradores se entreolharam, esperançosos, mas Selene ergueu uma das mãos antes que qualquer um pudesse agradecer.

    — Mas vou ser sincera… O que tenho guardado não será suficiente para todos.

    Antes mesmo que ela terminasse de falar, um dos moradores já estava correndo para fora, e logo outros o seguiram, espalhando-se pelo vilarejo com um único propósito.

    Eu e Selene trocamos um olhar confuso, mas não demorou muito para entendermos o que estavam fazendo.

     Pouco tempo depois, os moradores começaram a voltar, alguns carregando pequenas bolsas de pano, outros segurando sacolas de couro apertadas contra o peito. O tilintar metálico preencheu o ar quando começaram a despejar o conteúdo diante de nós. Moedas de todos os tamanhos e materiais se acumularam, uma quantidade modesta, mas carregada de significado.

    — Por favor, nos ajude!

     O pedido veio em uníssono, as vozes se misturando em uma súplica sincera. Olhei para Selene e vi algo raro em seu rosto: hesitação. Mas não era do tipo ruim. Era um vislumbre de vulnerabilidade… de alguém que não estava acostumada a ser necessária dessa forma.

    Ela respirou fundo e esticou os braços, pegando uma sacola maior para juntar todo o dinheiro.

    — Bem…, ainda me resta energia para mais uma boa ação.

    Os moradores suspiraram de alívio, alguns sorrindo, outros enxugando discretamente lágrimas de cansaço. Selene virou-se para mim enquanto amarrava a sacola cheia de moedas ao redor da cintura.

    — Vou precisar que você fique aqui. Tente descansar um pouco enquanto eu vou até Rivendrias.

    Minha testa franziu imediatamente.

    — Mas, você vai voltar aquele caminho todo? Eu irei com você.

    Selene apenas bufou, um sorriso debochado surgindo em seu rosto.

    — Você só vai me atrasar.

    — Como assim?! — questionei, indignada.

     Então, sem aviso, a aura vermelha ao redor de seu corpo se intensificou. O calor no ambiente cresceu quando chamas se condensaram atrás dela, tomando forma. Primeiro, meros traços incandescentes… depois, estruturas nítidas. E, por fim, asas.

    Enormes e flamejantes, batendo uma única vez e levantando fagulhas ao redor.

    Eu não consegui dizer nada. Apenas olhei, impressionada, enquanto Selene girava os ombros, testando sua forma de voo.

    Ela lançou-me um último olhar antes de abrir um meio sorriso.

    — Tente não morrer de tédio sem mim… sem morrer na verdade.

    Então, com um poderoso impulso, ergueu-se no ar, deixando para trás um rastro de luz carmesim contra o céu.

    Eu a observei desaparecer na direção do horizonte, o calor de sua magia ainda pulsando no ar ao meu redor. Selene tinha partido para Rivendrias. E eu… precisava descobrir o que poderia fazer por essas pessoas até sua volta.

    Fim do Capítulo 16 – Famintos por Ajuda.

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