Capítulo 21: Sombras em Nautiloria.
O sol ainda estava baixo no horizonte quando comecei meu treinamento matinal. O ar fresco da manhã preenchia meus pulmões enquanto eu alternava entre corridas e algumas flexões, o corpo já se acostumando à repetição exaustiva dos movimentos. Meus músculos ardiam, mas eu não parava. Eu não queria parar.
Rose observava com um olhar curioso, sentada sobre uma pedra, os dedos distraidamente brincando com uma pequena folha. Eventualmente, ela quebrou o silêncio.
— Por que você está fazendo isso? — perguntou, inclinando a cabeça para o lado.
Parei por um instante, limpando o suor da testa antes de responder.
— Cansei de deixar meu destino à mercê dos outros. — Minhas palavras saíram firmes, carregadas de convicção. — Percebi que, se quero ser livre, preciso ser forte.
Rose estreitou os olhos, ponderando minha resposta.
— Ser forte realmente significa ser livre?
Dei de ombros, respirando fundo antes de retornar aos exercícios.
— Se eu fosse mais forte, não teria sido arrastada por tantas circunstâncias. Eu escolheria para onde ir. Eu decidiria o que fazer.
Ela permaneceu em silêncio por um tempo, seus olhos verdes analisando cada um dos meus movimentos. Então, soltou um pequeno suspiro.
— Acho que entendo, mas nem sempre isso é verdade.
Antes que pudesse dizer mais alguma coisa, a voz de Selene cortou o ar.
— Por hoje, já chega. — Ela se aproximava, os braços cruzados e um olhar avaliativo sobre mim. — Vamos partir, estamos nos aproximando da capital do Reino da Água, Nautiloria, e quero chegar antes do entardecer.
— Nautiloria, pensei que iriamos ao Reino de Fogo, o que deseja encontrar na capital do Reino da Água?
— Preciso encontrar uma pessoa em Nautiloria antes de seguirmos.
Deixei escapar um suspiro, sentindo a exaustão se espalhar pelos músculos. Peguei minha bolsa e a joguei sobre os ombros, sentindo o peso familiar contra minhas costas antes de partir.
Enquanto caminhávamos, Rose manteve-se ao meu lado, seu olhar ainda carregado de curiosidade.
— Então, de onde você vem? — perguntei, puxando assunto enquanto atravessávamos um trecho de mata onde a luz do sol filtrava-se por entre as folhas.
Ela hesitou por um momento antes de responder.
— De um lugar bem distante do Reino da Terra. Mas agora estou aqui em busca de um artefato.
— Um artefato?
— Sim. Algo que possa curar uma conhecida minha de uma certa condição.
Suas palavras carregavam um peso que não passou despercebido. Por um instante, achei que ela fosse dizer mais alguma coisa, mas tudo que fez foi erguer os olhos para o caminho à frente, como se aquilo fosse tudo que precisasse ser dito.
Continuei, enquanto ouvia o som das folhas se movendo ao vento. Eu não sabia exatamente o que nos esperava em Nautiloria, mas uma coisa era certa: o caminho ainda era longo, mas tínhamos motivos para segui-lo.
A estrada se estendia diante de nós, ladeada por vegetação baixa e árvores espaçadas, permitindo que o céu azul se exibisse entre as folhas. O cheiro da brisa salgada misturava-se no ar, indicando que a cidade costeira não estava longe. A cada passo, a ansiedade e a expectativa cresciam em meu peito. Eu nunca tinha saído de Rivendrias e, agora, estava prestes a entrar na capital do Reino da Água, Nautiloria.
Porém, quando o destino parecia finalmente ao nosso alcance, um imprevisto se apresentou.
Uma carroça tombada bloqueava o caminho, seus barris de madeira espalhados pela estrada. O responsável, um homem de meia-idade com roupas simples de mercador, tentava desesperadamente empurrar a carroça de volta à posição correta, resmungando baixinho para si mesmo.
— Precisam de ajuda? — perguntei, me aproximando.
O mercador ergueu os olhos, suando sob o calor da manhã.
— Se puderem me ajudar a levantar isso, ficarei em dívida com vocês.
Rose e eu nos entreolhamos antes de nos posicionarmos ao lado da carroça. Selene observou de braços cruzados por um instante antes de finalmente suspirar e juntar-se a nós. Com esforço e um último empurrão sincronizado, a carroça voltou à posição.
— Obrigado, moças! Ah, vocês são um presente dos deuses! — O mercador riu, passando a mão na testa suada. — Se forem para a cidade, posso oferecer uma carona até os portões.
Não recusamos. Subimos na carroça, sentindo o balanço da estrada sob nós enquanto nos aproximávamos de Nautiloria. O tempo parecia se arrastar e, ao longe, as primeiras torres azuladas da cidade começaram a surgir, brilhando sob a luz do sol.
Os portões eram grandiosos, de um azul profundo com entalhes que lembravam ondas se quebrando. Guardas em uniformes azul-marinho estavam posicionados de ambos os lados, verificando documentos e pertences dos viajantes antes de permitirem a entrada.
Quando chegou nossa vez, um dos guardas nos avaliou com um olhar treinado.
— Nomes e origem?
— Ashley de Rivendrias.
— Selena.
— Rose Hemlock.
O guarda franziu o cenho diante da resposta vaga de Selene, mas não insistiu.
— Propósito da visita?
— Negócios — respondeu Selene sem hesitação.
O homem pareceu ponderar, mas ao ver a carroça do mercador deu de ombros e fez um gesto para um outro guarda, que realizou uma breve inspeção em nossos pertences antes de nos deixar passar.
— Bem-vindas a Nautiloria. Não causem problemas.
Rose estava com uma expressão confusa antes de seguir com a pergunta.
— Selena? Pensei que o seu nome fosse Selene…
— Aah, eu disse isso para evitar dores de cabeça, digamos que talvez eu seja um pouco famosa entre os Reinos… isso pode ser um empecilho as vezes — respondeu Selene com uma expressão de exaustão.
— Se é assim, talvez da próxima recomendo um nome um pouco mais diferente do seu — afirmou com um tom risonho.
Assim que cruzamos os portões, fui tomada por um deslumbramento que me fez prender a respiração.
Nautiloria era diferente de qualquer coisa que eu já tinha visto. As ruas eram largas, pavimentadas com pedras polidas que refletiam o brilho do sol. Mas o que mais chamava a atenção eram as vias fluviais que se entrelaçavam por entre as construções, como rios artificiais que percorriam a cidade. Pequenos barcos deslizavam suavemente por elas, transportando mercadorias e pessoas com a mesma naturalidade com que carruagens circulavam por Rivendrias.
As construções eram refinadas, torres de pedra clara adornadas com detalhes azulados, algumas com cúpulas envidraçadas que capturavam a luz do dia e faziam a cidade brilhar. O ar era úmido, carregado pelo cheiro fresco da água misturado ao aroma de especiarias vindas das barracas de mercado.
As ruas estavam cheias de vida. Mercadores anunciavam seus produtos, desde tecidos exóticos até joias cintilantes inspiradas nos tons do oceano. Trovadores tocavam melodias animadas nas esquinas, e o riso das pessoas ecoava pelo ambiente. Homens e mulheres de diferentes reinos se misturavam, alguns trajando vestes tradicionais, outros vestidos com roupas mais refinadas, evidenciando sua origem nobre.
Meus olhos não sabiam para onde olhar primeiro. Rose parecia compartilhar do mesmo fascínio, girando sobre os próprios pés para absorver tudo ao redor.
— É como outro mundo.
Selene, por outro lado, manteve-se impassível.
— É só mais uma cidade…
Para mim, aquilo não era apenas uma cidade. Era o primeiro passo para um mundo muito maior do que eu jamais imaginara.
O burburinho da cidade nos envolvia enquanto caminhávamos em direção à praça central. A cada passo, eu descobria novos detalhes que tornavam Nautiloria ainda mais fascinante. O som suave da água fluindo nos canais se misturava ao riso das crianças e às melodias tocadas por músicos de rua. As construções ao redor pareciam ainda mais refinadas conforme nos aproximávamos do coração da cidade.
A praça central se revelou um espetáculo à parte. No centro, uma fonte grandiosa se erguia, esculpida em mármore azul e branco, com figuras aquáticas dançando em meio aos jatos d’água que se entrelaçavam no ar antes de caírem suavemente no grande lago circular abaixo. Ao redor da fonte, pequenos jardins floridos traziam um toque vibrante à paisagem, com plantas exóticas que pareciam brilhar sob a luz do sol. Algumas árvores frondosas forneciam sombra aos transeuntes, e várias pessoas estavam ali: sentadas em bancos, conversando, descansando ou simplesmente admirando a beleza do local.
Selene parou e olhou em volta, como se procurasse algo. Então virou-se para mim.
— Ashley espere aqui, preciso encontrar uma pessoa — disse, com um tom firme.
Tentei perguntar algo, mas ela já estava indo. Suspirei. Pelo visto, só me restava esperar.
Rose, ao meu lado, cruzou os braços e observou a movimentação da praça por um tempo, até que seus olhos brilharam com uma ideia.
— Ashley, por que não vamos dar uma olhada nas bancas de comida? Tenho certeza de que há algo delicioso por aqui.
Ponderei por um momento. Não era uma má ideia, mas…
— Selene disse para esperarmos aqui.
— Oh, por favor. Vamos só olhar, não vamos fugir da cidade ou algo assim. Além disso, podemos voltar antes que ela perceba.
Ela me lançou um olhar esperançoso. Suspirei.
— Tá bom, mas só um pouco.
Seguimos até um grupo de barracas que vendiam diversos tipos de comida. O aroma era irresistível: especiarias, ervas frescas e algo assado que me fez salivar. Havia frutas cristalizadas, pães recheados, espetinhos de frutos do mar grelhados e outras iguarias que nunca tinha visto antes. A barraca mais próxima estava cercada por clientes, então esperamos pacientemente nossa vez.
De repente, uma mulher vestida com roupas finas e adornada com joias passou diretamente na frente de todos, ignorando completamente a fila. Franzi o cenho, surpresa com a naturalidade com que ela fez aquilo. Antes que eu pudesse reagir, Rose cruzou os braços e, com um tom calmo e paciente, chamou a atenção da mulher.
— Ei, senhora, não é assim que uma fila funciona. Poderia ir para o final, por favor?
A mulher virou-se lentamente, como se sequer considerasse que alguém pudesse questioná-la. Ela nos analisou com um olhar desdenhoso antes de erguer o queixo.
— Cidade maldita. Deixam coisas como vocês andarem livremente por aí… E ainda mais as que não sabem seu lugar.
Meu corpo enrijeceu. Eu sabia exatamente o que ela queria dizer. Minhas mãos se fecharam ao lado do corpo enquanto uma sensação desagradável se espalhava pelo meu peito. Eu não deveria me importar com palavras vindas de alguém assim, mas… Não era a primeira vez que escutava algo do tipo.
Rose permaneceu encarando a mulher, sem desviar o olhar.
— O que foi, verdinha? — a mulher continuou, sua expressão se contorcendo em desprezo. — Você e sua serva não ouvem direito? Sumam da minha frente.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, tentei puxar Rose para irmos embora, mas ela permaneceu imóvel.
— Rose? — chamei baixinho.
Quando ergui a cabeça para vê-la, Rose permaneceu imóvel. Seu silêncio fez a mulher erguer uma sobrancelha, como se estivesse esperando que a afronta fosse esquecida. Mas então, algo sutil começou a mudar. O brilho nos olhos de Rose se tornou mais afiado, e sua expressão despreocupada se desfez, dando lugar a algo mais frio. Eu vi, mesmo sem precisar olhar diretamente: seus cabelos começaram a escurecer, passando do seu verde para tons arroxeados, como folhas murchando sob um vento gélido.
A mulher à nossa frente notou a mudança e franziu o cenho, hesitando por um segundo, mas se recompôs rápido.
— Mas o que é isso? O que temos aqui… Além de insolente, também é uma aberração.
Rose inclinou a cabeça, um sorriso seco surgindo em seus lábios.
— Aberração? Interessante escolha de palavras, vinda de alguém que precisa se esconder atrás de joias e títulos para se sentir superior. Se seu ouro compensasse sua falta de cérebro, talvez você conseguisse entender o conceito de fila.
A mulher recuou um passo, como se tivesse sido atingida por um golpe invisível.
— Como se atreve!
— Ah, me atrevo com muita facilidade. Especialmente quando vejo uma idiota que acha que uma fila não se aplica a ela. Mas sabe de uma coisa? — Rose inclinou-se levemente para frente, baixando a voz. — Pessoas como você fedem. Não de um jeito literal, embora esse perfume exagerado seja um problema à parte. Falo do cheiro de podridão, de arrogância vazia, de gente que precisa pisar nos outros para se lembrar que existe.
O burburinho ao redor se tornou evidente. Clientes na barraca cochichavam entre si, e alguns observavam a cena com olhos arregalados. Nem todos pareciam surpresos com a atitude da mulher, mas o que realmente prendia a atenção era Rose. Ou melhor, a mudança nela e a forma como agia.
A nobre apertou os lábios, sua postura rígida como vidro prestes a rachar.
— Isso é um ultraje! Guardas!
— Vai chamar alguém para resolver sua incompetência agora? Que previsível. Achei que, para se sentir tão superior, pelo menos soubesse resolver os próprios problemas sem correr para pedir ajuda. Mas vá em frente, grite por alguém. Talvez eles fiquem tão impressionados quanto eu com sua falta de vergonha na cara.
Risos começaram a ecoar ao redor, o público começava a notar a ridicularização que Rose fazia sem esforço.
A mulher abriu a boca, mas nada saiu. Sua expressão se contorceu em fúria, um rubor subindo-lhe à pele. Sem outra saída, virou-se bruscamente e saiu marchando, os saltos batendo forte contra as pedras do chão.
— Isso não ficará assim — disse ela enraivecida.
Um silêncio momentâneo pairou, antes de um riso abafado surgir novamente entre as pessoas ao redor. Alguns olhares eram cautelosos, outros intrigados. Mas Rose não parecia se importar com nenhum deles. Ela apenas passou a mão pelos cabelos, soltando um suspiro exagerado.
— Que perca de tempo.
Eu soltei o ar que nem percebi que estava prendendo. Meu coração ainda martelava no peito, mas Rose já havia se virado para mim, como se nada tivesse acontecido.
— Então? Vamos pegar nossa comida ou quer esperar outra madame aparecer?
Demorei um segundo para responder, ainda assimilando tudo. Mas então, apenas assenti, tentando ignorar o peso dos olhares ao nosso redor.
Pegamos algumas das iguarias da barraca: um pão recheado e espetinhos de frutos do mar grelhados. Nos afastamos para sentar em um dos bancos mais tranquilos da praça. O burburinho ao redor parecia distante, mas minha mente ainda estava presa no que tinha acontecido há pouco. Rose mordia seu pão com desinteresse, como se ainda tivesse algo preso na garganta.
— Você precisa se impor mais — disse, sem rodeios.
Revirei os olhos, dando uma mordida pequena na minha comida.
— Isso só causaria mais problemas.
Rose soltou uma risada baixa e sem humor.
— Ah, então é a falta de poderes que te faz ser assim? — inclinou a cabeça para o lado, os olhos afiados. — Pensei que estava treinando para ser forte. Afinal, ser forte não é ser livre?
As palavras caíram pesadas. Um nó se formou no meu estômago. Ser forte é ser livre. Foi exatamente isso que me fez decidir seguir Selene. Então por que ainda parecia que eu estava presa?
— Não importa o quanto alguém seja forte — Rose continuou, casual, mas com algo cortante na voz — se for refém dos próprios medos, nunca será livre.
Baixei o olhar, sentindo o peso do que ela dizia. Eu sabia que Rose poderia ser agressiva quando estava assim, mas havia verdade em suas palavras. Mesmo que eu treinasse, mesmo que um dia ficasse mais forte, o que adiantaria se eu sempre recuasse? Se continuasse hesitante, sempre pisando em falso?
Antes que eu pudesse responder, algo chamou minha atenção. A alguns metros dali, sob a sombra de uma árvore, um pequeno grupo de pessoas conversava entre si. Meus olhos passaram por eles sem muita preocupação, até que um estranho incômodo cresceu dentro de mim. Algo familiar na postura, na disposição das figuras. Franzi o cenho e olhei de novo. A memória bateu antes mesmo que eu processasse completamente.
Eles pareciam com o grupo que estava em Rivendrias antes do ataque da criatura de água.
Minha respiração vacilou. O coração acelerou no peito. Um arrepio percorreu minha espinha.
— Precisamos encontrar a Selene. Agora.
O tom da minha voz fez Rose me encarar com mais atenção, mas eu já estava de pé, os músculos tensos. Precisávamos ir. Rápido.
Fim do Capítulo 21: Sombras em Nautiloria.
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