Capítulo 24: O Silêncio das Profundezas.
A movimentação dentro da guilda explodiu após o anúncio de Aqua. As conversas ferviam como ondas revoltas, vozes se cruzando entre ordens, planos e empolgação. Ela, com sua postura imponente, ergueu o braço para acalmar o frenesi.
— Quero todos preparados ao amanhecer. Afiem suas lâminas, descansem bem e estejam prontos. Amanhã, formarei o primeiro grupo de exploradores para verificar se a caverna encontrada realmente é uma Torre do Abismo.
Aquelas palavras pareciam ter um peso diferente para todos ali. Para mim, soaram indiferentes, afinal não sabia ao certo o porquê de tanta comoção, tudo aquilo parecia uma porta que se abria para algo maior. E, ainda assim, tudo era tão incerto.
Ficamos mais um tempo na guilda após o anúncio. Rose conversava animadamente com alguns membros sobre o que ocorreu na praia, enquanto Selene se encostava perto de uma estante com os braços cruzados, observando o burburinho com uma expressão entre entediada e calculista.
Foi então que ela se virou pra mim, com o olhar de quem havia tido uma ideia genial.
— Já que vamos ficar um tempo por aqui, acho que você devia fazer logo sua licença de aventureira.
— Como disse? — Perguntei, surpresa.
— Você não vai precisar dela imediatamente, claro, — ela respondeu, dando de ombros — mas vai precisar em algum momento. Melhor resolver isso enquanto temos tempo.
Fui com ela até o balcão novamente, onde uma atendente de olhar atento nos recebeu com um sorriso treinado.
— Olá. Desejam algo?
— Eu gostaria de fazer uma licença de aventureira — disse Selene, direta como sempre. — Para ela.
A atendente olhou para mim, depois para Selene, depois de novo para mim. Seus olhos se estreitaram um pouco.
— Ela parece nova. Muito nova… Não?
— Talvez… — respondi, antes mesmo de pensar se isso era um problema.
A mulher suspirou, como se aquele fosse um obstáculo frequente.
— Sem estar corescida, não pode obter uma licença plena.
— Não precisa se preocupar, estou treinando-a pessoalmente — afirmou Selene com uma feição despreocupada. — Essa garota é mais surpreendente do que parece.
A atendente ponderou por um instante antes de continuar.
— Mesmo assim ela apenas pode tentar uma licença de nível aprendiz… se passar nos testes, claro.
— Testes? — questionei, erguendo uma sobrancelha.
Ela assentiu.
— Um teste escrito e um prático. Nada tão difícil se tiver conhecimento e noção básica de combate. O teste teórico é sobre conhecimentos gerais e raciocínio lógico. O prático é uma luta amistosa contra um novato da guilda.
— Uma luta? — repeti, engolindo seco.
Selene cruzou os braços, sorrindo de leve.
— Isso vai ser divertido… talvez mais para mim do que para você, mas o que importa é o processo não é mesmo? — afirmou Selene rindo discretamente.
A atendente anotou algo em um caderno.
— As provas teóricas são realizadas no final de cada tarde. Se quiser, pode tentar amanhã mesmo. A depender dos seus resultados, marcamos o teste prático.
Rose que ouvia a conversa de canto se aproximou apressadamente.
— Ei não me deixe de fora, eu também quero participar!
A atendente deixou um leve riso escapar e começou a anotar algumas informações nossas.
Fiquei alguns segundos em silêncio, sentindo o peso das palavras se acomodarem dentro de mim. Não era só uma licença. Era o primeiro passo. Meu primeiro passo… para me tornar algo mais.
A lua já começava a despontar no céu quando deixamos a guilda e seguimos de volta para a estalagem. As ruas de Nautiloria estavam mais silenciosas, mas ainda havia um ou outro grupo de aventureiros passando com armaduras tilintando e conversas abafadas. Eu observava tudo em silêncio, tentando não deixar que minha animação transparecesse demais.
O interior da estalagem era acolhedor, iluminado por lanternas de cristal que emitiam uma luz alaranjada e suave. Subimos, deixamos nossos pertences e fomos direto para os banhos, onde a água quente ajudou a relaxar meus músculos que só agora pareciam entender o quanto o dia havia sido cansativo.
Na sequência, descemos para o salão comum, onde o jantar já estava sendo servido. Cada mesa de madeira recebia pratos fumegantes e cheirosos: guisado de carne marinado em ervas da costa, legumes grelhados com manteiga e alho, e um pão rústico levemente adocicado, com crosta crocante e interior macio. Ao centro, uma travessa de arroz com pedaços de lula e camarões dava um perfume salgado ao ambiente.
— Isso tá com uma cara boa demais — disse Rose, já se servindo com entusiasmo. Eu peguei um pouco também, mesmo sem ter tanta fome, apenas para acompanhar.
— Você tá quieta — ela comentou depois de algumas garfadas, me observando de soslaio. — Tá tentando esconder que tá animada?
— Eu? Não tô animada… — tentei negar, levando o garfo à boca.
Ela deu uma risada curta.
— Aham, claro. E eu sou uma monja do silêncio eterno.
Desviei o olhar, mas sorri sem perceber. Talvez eu estivesse mesmo animada… só um pouco.
— Já comemos. Devíamos ir dormir — disse Selene, sem tirar os olhos da janela. — Amanhã vai ser um daqueles dias.
Não discutimos. Subimos em silêncio. Os quartos ficavam no mesmo corredor, mas eram separados. Entrei no meu, acendi a pequena lanterna sobre a mesinha e me joguei na cama. O colchão era duro, mas o travesseiro surpreendentemente confortável.
Deitei de lado, encarando a parede enquanto os pensamentos me consumiam.
O anúncio da torre, o movimento da guilda, aquele grupo pronto para partir a qualquer momento. Era como estar à beira de algo… como se o mundo estivesse se movendo finalmente. Por tanto tempo, eu só observei. Mas agora, mesmo com medo, eu queria atravessar essa linha. Queria deixar de ser alguém que apenas sonha com liberdade e me tornar alguém capaz de conquistá-la.
Adormeci sem perceber.
Na manhã seguinte, fui acordada por batidas leves na porta.
— Levanta, sonhadora — disse a voz de Selene. Abri a porta, ainda meio sonolenta. Ela estendeu dois livros grossos em minhas mãos. — Consegui isso pra você. Vai ajudar no teste.
O primeiro tinha capa em tom de cobre envelhecido e o título em letras fundidas: Os Pilares do Mundo. O segundo era um volume encadernado em couro escuro, com símbolos mágicos prateados brilhando à luz do sol: Bestiário de Criaturas Mágicas.
— Já li um bestiário antes — comentei, folheando o segundo livro com familiaridade.
Mas foi o outro que me chamou a atenção. Abri Os Pilares do Mundo e me sentei ao pé da cama, com o coração acelerando enquanto lia.
Entre as páginas, uma seção falava sobre reinos antigos e mitos ainda não confirmados. Um trecho citava a existência de um possível reino acima das nuvens, “onde os ventos nunca cessam e as terras flutuam em ilhas de pedra sustentadas por magia ancestral”. Era apenas um relato, dizia o autor, algo sem provas concretas…, mas a ideia ficou presa na minha cabeça.
Mais à frente, outro trecho me fez parar. Era sobre as Torres.
Havia dois tipos. As Torres do Abismo, que se aprofundavam nas entranhas do mundo, andares descendentes repletos de monstros, armadilhas e ecos sombrios. Conquistar uma dessas torres significava receber um artefato poderoso…, mas o livro deixava um aviso nebuloso: “há sempre um preço”.
E havia as Torres do Santuário, que se elevavam aos céus em degraus místicos, desafiando o vento e a razão. Nessas, os exploradores enfrentavam provações mentais e enigmas ancestrais. Aqueles que as completavam ganhavam bênçãos divinas: presentes de uma força desconhecida. Desde que fossem merecedores.
Fechei o livro, ainda digerindo tudo aquilo.
Logo após, descemos e seguimos direto para a guilda. Ao chegarmos, vimos um grupo de oito pessoas completamente equipadas diante da líder. Aqua discursava com a mesma força que havia usado no anúncio anterior.
— Lembrem-se, manter o contato pelas runas é obrigatório. Nada de agir por conta própria. Isso ainda é uma missão de reconhecimento.
O grupo assentiu e partiu em direção à praia.
Selene então se aproximou da atendente da guilda.
— Pode adiantar os testes?
— Mas já? — A mulher ergueu as sobrancelhas.
— Já. — Selene cruzou os braços.
A atendente se virou para Rose e eu.
— Estão prontas mesmo antes do tempo? Se quiserem podem se preparar mais no tempo que resta.
— Sim, estou pronta. — Afirmei com um certo tom de segurança, afinal de livros eu entendo bem.
— Já eu acho melhor me preparar um pouco mais. — Afirmou Rose enquanto lia os livros que Selene trouxe
Fui conduzida até uma sala menor, onde me entregaram o teste escrito. As perguntas eram mais difíceis do que eu esperava, mas algumas me pareciam familiares. Reconheci, por exemplo, uma questão sobre Homúnculos da Floresta, pequenas criaturas cogumeloides com olhos grandes que costumavam agir em bando e preferiam locais úmidos. Outras perguntas envolviam lógica, história das torres, comportamento de manadas mágicas e noções básicas de sobrevivência.
Escrevi com atenção, revisando cada resposta antes de entregar. Quando estendi a folha para a atendente, um som ecoou pela guilda: alto, quase como um trovão seco.
A guilda inteira congelou.
— Isso não é possível… — a voz de Aqua veio do andar superior, firme, mas carregada de tensão.
Selene foi a primeira a se mover, subindo as escadas com passos apressados.
— O que aconteceu?!
Aqua apareceu no topo, pálida como a lua.
— Nós… perdemos a comunicação com o grupo que foi explorar a torre.
O silêncio que se seguiu foi absoluto. As runas não falham… A menos que sejam destruídas.
Engoli seco. O coração disparava. Certamente eles foram atacados, por algo que nem mesmo aquela quantidade de pessoas conseguiu lidar.
Aqua então falou, com a voz pesada como aço:
— A partir de agora, a exploração da torre está sob alerta máximo.
Todos da guilda pareciam estar em choque.
— E quem ousar entrar… pode não sair com vida!
Fim do capítulo 24: O Silêncio das Profundezas.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.