Capítulo 27: Primeiro Andar - Onde os Fracos Afundam.
Deixei a guilda sem dizer uma palavra. O caminho até a praia parecia mais longo do que eu lembrava, talvez porque, dessa vez, eu carregava algo diferente comigo: o peso de uma decisão que ainda estava se moldando em meu peito.
As ruas de Nautiloria estavam calmas. As poucas pessoas que caminhavam àquela hora pareciam sombras distraídas por seus próprios dilemas. Mas eu… cada passo meu era firme. Cada passo dizia: “Não vou voltar atrás.”
Quando o cheiro salgado invadiu minhas narinas e o som do mar tomou o lugar dos meus pensamentos, soube que estava perto. E ali estava ela: a praia. Trêmula sob o brilho do sol, com as ondas subindo e recuando como se respirassem.
Havia um grupo de chromagos azuis próximos à margem, cercados por aventureiros ansiosos. Eles criavam esferas d’água ao redor deles, transportando-os com calma até a entrada da torre submersa. Era quase poético… se não fossem negócios.
— Tem gente que sabe como fazer dinheiro até nas situações mais adversas — murmurei, com um sorriso enviesado.
Mas essa não era uma opção que eu precisasse considerar. No reino da água, aprendemos a nadar antes mesmo de aprender a escrever direito. Crescer cercada por lagos, rios e canais nos ensinava uma coisa ou outra.
Amarrei o cabelo com rapidez. Ajustei a adaga na cintura. E então, respirei fundo antes de me lançar ao mar. A água gelada colou à minha pele como uma memória esquecida. A resistência do mar, as braçadas ritmadas, o som abafado… tudo isso me era familiar.
A entrada da torre não era longe. Mas naquele instante, parecia que eu nadava em direção a algo maior.
Vi os olhares de alguns aventureiros de dentro das esferas, surpresos. Mas apenas os ignorei.
Logo, a caverna se revelou: uma abertura entre as pedras, quase como a boca de uma criatura adormecida. E, dentro dela, uma estrutura colossal aguardava, com uma presença que parecia tão antiga que fazia o tempo girar mais lento.
Em frente aos portões da torre jazia um obelisco coberto por algas ondulantes, nele havia algumas palavras entalhadas que emitiam um brilho azulado. O primeiro nome esculpido se destacava do restante: Torre do Abismo 33.
Sob o nome, uma inscrição em espiral me fez parar. Minhas mãos tocaram as letras úmidas, sentindo o musgo, sentindo o frio.
“Torre de Nualdra – Onde a Serpente do Mar dorme entre ilusões afogadas.”
E logo abaixo, o que parecia uma espécie de poema. Gravado em linhas que pareciam respirar com a água:
“Não temas o silêncio das profundezas,
Pois é nele que tua voz terá que gritar.
A verdade não se mostra à luz,
Mas no reflexo distorcido das sombras”
Engoli seco… “O que esse poema queria dizer?” Não tinha tempo para pensar nisso agora, mas aquilo me intrigou, sem mais resquícios de relutância, entrei.
O primeiro andar me recebeu com gritos. Lâminas batendo, água espirrando, criaturas deformadas avançando. Corpos humanoides de pele viscosa, olhos opacos e guelras pulsantes se moviam como predadores de um pesadelo: mas aquilo era real… até demais!
Um deles me viu. Disparou na minha direção, arrastando os pés como se o chão fosse instável. Não pensei duas vezes. Desviei para o lado e cravei a adaga sob seu queixo com um movimento ágil. Não foi bonito. Não foi limpo. Mas foi o suficiente.
A criatura tombou com um som úmido e pesado, e seu sangue escuro se espalhou como tinta na água, e então… ela se dissipou em meio ao chão molhado da torre.
Ofeguei. Mas… percebi algo.
Meu corpo está mais leve.
As sessões de treino com Selene, os dias correndo, lutando, sobrevivendo… tudo tinha deixado marcas. Não eram cicatrizes visíveis, mas estavam ali. Eu não era mais a mesma garota que fugia pelas ruas em busca de moedas perdidas.
Mesmo sem magia, lutei. E venci.
E ali, no meio do caos, entre estranhos gritos e o brilho distorcido da luz azul, senti algo dentro de mim se aquietar.
Rose estava em algum lugar aqui. E eu… eu estava pronta para encontrá-la.
Ainda ofegava do embate com aquela criatura, quando ouvi passos se aproximando na água rasa. Minhas mãos foram direto à adaga, mas parei ao reconhecer as vozes que vinham logo em seguida.
— O que uma garota tá fazendo sozinha nesse lugar? — disse uma voz firme, familiar.
Me virei devagar, e ali estavam eles. Cratos, Hernán e Sophia: o trio que tinha observado com curiosidade na guilda. Agora, estavam aqui, com olhares mistos de surpresa e duvida.
— Vocês? — falei, com um certo tom de alívio.
— É, a gente mesmo — disse Cratos, cruzando os braços. — Você tá aqui por vontade própria?
— Vim por alguém — respondi. Minha voz saiu mais firme do que esperava. — Rose. Ela desapareceu hoje de manhã… disse que viria pra cá.
Os três trocaram olhares, e algo neles mudou. O tom brincalhão sumiu por um momento.
— A gente também tá procurando alguém — disse Hernán, coçando a nuca. — Nosso mentor. Como dissemos, ele foi um dos primeiros a entrar quando a Torre apareceu.
— Não estamos aqui pela recompensa. — Completou Sophia. — Sabemos que não temos força pra selar uma Torre do Abismo…, mas com tanta gente entrando de uma vez, talvez a gente consiga chegar até onde eles estão.
Cratos assentiu com um meio sorriso.
— Pensando bem, seria bom se viéssemos juntos. Você parece determinada… e pelo visto sabe se virar.
Observei os três. Não havia desconfiança em seus rostos, só uma espécie de convicção silenciosa, como se estivéssemos todos presos ao mesmo tipo de esperança desesperada. E então assenti.
— Vamos juntos, então.
Eles sorriram. Sophia foi a primeira a falar, apontando para um espaço mais adiante.
— Observamos alguns grupos. Parece que pra sair desse andar, precisamos reunir pedras de energia. Elas vêm dessas criaturas que aparecem de tempos em tempos.
Antes que pudesse perguntar mais, ouvi o som: sploch… sploch… sploch. Poças escuras se formavam na água à nossa frente, e delas, os mesmos seres deformados começaram a se erguer, suas peles escorregadias brilhando sob a luz azulada da torre.
— Vamos! — gritou Cratos. — Se outro grupo chegar primeiro, ficamos sem nada!
Fiquei um pouco atrás, observando.
Sophia foi a primeira a atacar. Puxou o arco…, mas ao olhar para sua aljava percebi algo inusitado: não tinha flechas.
— Está sem flechas? — perguntei, surpresa.
Ela apenas sorriu.
— Não preciso delas.
Estendeu a mão em direção à aljava vazia. Da palma aberta, uma flecha de eletricidade surgiu, crepitando com um som agudo e vibrante. Ela disparou.
A criatura foi atingida direto no peito. Se debateu por segundos antes de desmanchar numa poça escura. No chão, uma pedra brilhante cintilava. Sophia a pegou, girando entre os dedos.
— Uma a menos.
Cratos avançou em seguida, seu machado brilhando com chamas tênues. Com um rugido, desceu o golpe sobre outra criatura, que explodiu em água e vapor. O impacto fez a água do chão saltar, respingando até mim.
Hernán, com sua espada longa, fez um gesto com a mão livre. Grama alta brotou à frente, envolvendo as criaturas. Ele desapareceu no meio da vegetação criada, e em poucos segundos, a grama caiu cortada junto dos corpos das criaturas. Era um balé de precisão silenciosa.
Fiquei ali, vendo a coordenação deles, o domínio dos poderes, o companheirismo. Meus dedos apertaram o cabo da adaga. Eu não era como eles. Mas havia algo em mim… algo que não podia mais ignorar.
Avancei. Enfrentei uma das criaturas de frente. Ela veio em um salto, os braços tentando me agarrar, mas desviei, me abaixei, girei e cravei a lâmina em seu flanco. Gritei ao empurrá-la, sentindo seu corpo se dissolver ao meu toque. Uma pedra caiu no chão. Peguei-a.
— Nada mal… — disse Hernán, com um sorriso genuíno. — Às vezes, o que a gente precisa é de coragem pra enfrentar nossos desafios de cabeça erguida.
Aos poucos, reunimos mais pedras. Cada uma brilhava com uma cor sutil, como se reagissem à nossa energia. E então, diante de nossos olhos, as pedras que juntamos começaram a flutuar. Giraram, vibraram, e começaram a se fundir. Um brilho ténue preencheu a sala por um segundo e, quando cessou, uma chave prateada com veios azulados estava ali, flutuando sobre nossas mãos.
— Conseguimos! — gritou Sophia.
Seguimos até a porta do próximo andar. Mas ao nos aproximarmos, vimos outro grupo já esperando ali.
Três homens, com roupas de couro escuro e semblantes endurecidos, aparentavam ter passado dos quarenta. Um deles ergueu a sobrancelha ao nos ver.
— Hã? Um bando de pirralhos conseguiu uma chave? Como fizeram isso?
Cratos respondeu sem se abalar.
— Derrotamos as criaturas que aparecem por aqui. Simples assim.
Os homens riram com desdém. Um deles balançou a cabeça.
— Gastar energia com aquelas coisas feias? Por favor… vamos é passar com vocês quando abrirem essa porta.
— Isso não é uma boa ideia — disse Sophia, séria.
— Cala a boca, garota. Não estraga a festa — retrucou um dos homens.
Hernán deu um passo à frente, visivelmente irritado, mas Cratos estendeu o braço, barrando-o.
— Podem tentar passar, se quiserem. Mas eu não recomendaria.
— Abre logo essa droga de porta e deixa de papo furado! — disse o mais alto deles, impaciente.
Cratos deu de ombros e girou a chave na fechadura. A porta se abriu lentamente, revelando uma passagem envolta em brumas azuladas.
Com um gesto irônico, Cratos os convidou a passar primeiro. Eles riram entre si, balançando a cabeça com ar de superioridade, e entraram.
Por alguns segundos, nada aconteceu.
Então, um som seco ecoou. Vvvvvrrrummmmm…
O rugido de água. Como se um rio tivesse sido liberado.
— Mas que droga é ess… — começou um deles.
Um jato d’água emergiu com brutalidade, arremessando os três para fora da entrada como bonecos de pano. Caíram de costas na água rasa, tossindo e gritando.
Cratos se aproximou, observando-os com um sorriso satisfeito.
— Pelo visto vocês não são aventureiros muito bons…, deveriam saber que só quem conquista os andares tem o direito de descer pela Torre do Abismo.
Ele fez uma pausa, olhando-os de cima.
— Vocês não são dignos de estarem aqui… SUMAM! —Cratos rugiu, sua voz ecoando como um trovão por todo andar.
Os três aventureiros mais velhos, ainda no chão, cuspindo água e tentando se recompor, lançaram olhares furiosos, mas nenhuma palavra saiu de suas bocas. A humilhação os calou mais do que qualquer golpe. Cambaleando, se afastaram em silêncio, suas capas encharcadas arrastando-se atrás deles.
Eu observava tudo com os olhos arregalados. Não pelas cores, mas pela força que aquele grupo carregava, não apenas nos braços, mas no espírito. Pela primeira vez desde que entrei na torre, senti que não estava sozinha.
Cratos girou o machado e apoiou-o no ombro, abrindo um sorriso confiante.
— Vamos, já perdemos tempo demais aqui.
Sophia deu um passo à frente, sacando mais uma flecha de pura eletricidade.
— Prontos para o próximo andar da torre?
Hernán assentiu, e seus olhos verdes brilharam sob a luz.
Respirei fundo e sorri.
— Estou pronta.
E então, juntos, atravessamos a porta que levava ao próximo andar da Torre do Abismo, enquanto atrás de nós, a porta se fechava com um estrondo que parecia selar o destino de todos que não estavam à altura daquele desafio… ou o dos que estavam.
Fim do Capítulo 27: Primeiro Andar – Onde os Fracos Afundam.
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