Capítulo 3: Aqueles de Corações Valentes.
Eu não conseguia parar de pensar naquilo… uma moeda de ouro vermelho. Como alguém pode ser tão rica ou insana ao ponto de pagar por uma simples refeição com algo assim?
Enquanto ainda tentava me recompor do choque, percebi que Selene me observava com um olhar curioso, como se nunca tivesse visto uma garota na vida. Seu olhar penetrante me incomodava, e, para evitar aquele silêncio estranho, decidi quebrá-lo.
— Me perdoe a pergunta, mas… o que está olhando desse jeito?
— Você!
Franzi o cenho. Aquela resposta direta me deixou desconcertada e atrasei um pouco a resposta.
— Como assim? Tem algo no meu rosto?
— Não é isso… — Selene hesitou, mas então prosseguiu. — Por um breve momento, quando se aproximou com os pães, pude sentir algo diferente vindo de você.
Algo diferente? O que ela quis dizer com isso? Mas pensando bem, agora pouco, eu também havia sentido algo ao me aproximar dela. Pude sentir ligeiramente uma aura que a envolvia, como uma camada fina de calor, mas era algo acolhedor.
— Eu também senti algo! — respondi tentando decifrar o que significava aquele sentimento.
— Ah, é? Poderia me contar mais sobre essa sensação? — Os olhos de Selene brilharam.
— Era… como se uma aura quente estivesse te envolvendo.
Selene ficou em silêncio por um instante, me analisando como se buscasse uma resposta invisível. Então, murmurou para si mesma.
— Você sentiu a minha aura? Mas isso não faz o menor sentido… a menos que…
Enquanto Selene ponderava sobre aquela situação, um arrepio percorreu minha pele. O ar ao nosso redor parecia ter esfriado de repente, como se uma pressão invisível envolvesse o ambiente. Então, o silêncio foi rasgado por um som distante: um grito inesperado.
O som cresceu rapidamente, multiplicando-se em dezenas de vozes até se tornar um coro de puro pânico. Pela janela entreaberta da estalagem, ouvi o peso de passos apressados contra o chão. Uma maré humana se deslocava de maneira desordenada, as vozes carregadas de medo berravam.
— CORRAM!
— ESTÁ VINDO!
— MEU DEUS!
Selene levantou-se lentamente e se aproximou da janela, observando a movimentação.
— O que é toda essa confusão? — sua voz soou tranquila, mas atenta.
Eu estava paralisada com o terror que era transmitido pela multidão.
— Não sei, mas as pessoas que estavam no mercado estão correndo desesperadas nessa direção!
Foi então que as sirenes começaram. O som agudo e insistente preencheu o ar, enviando um arrepio pela minha espinha. O que quer que estivesse acontecendo, era grave.
A cidade, que há poucos instantes estava em paz, agora pulsava em caos. Selene afastou a cortina com pressa e, antes que eu pudesse reagir, saltou pela janela com uma facilidade impressionante. Lá fora, as ruas estavam tomadas por pessoas em fuga, seus rostos contorcidos de puro pavor. Foi então que eu vi.
No meio da multidão, ao longe, uma figura se movia lentamente em direção à praça do mercado. Minha respiração quase falhou enquanto encarava tamanho terror. Selene se virou para mim e, ao notar minha expressão preocupada, sorriu levemente.
— Vai ficar tudo bem. — Sua voz foi suave, mas firme.
Havia uma ternura inesperada em suas palavras, e de alguma forma aquilo me confortou.
— Aliás, qual é o seu nome, garota? — Indagou Selene enquanto se preparava.
— Ashley — respondi, hesitante.
— Prazer em conhecê-la, Ashley. Espero que possamos retomar nossa conversa depois, mas agora tenho algo que preciso resolver.
Antes que eu pudesse desejar-lhe boa sorte, Selene partiu. Seus movimentos eram graciosos, quase dançantes, enquanto deslizava habilmente pela multidão, desviando das pessoas com uma leveza impecável. Ela seguia em direção ao perigo, sem hesitar.
Eu, no entanto, fiquei para trás, com o coração acelerado e uma sensação incômoda no peito. Por um momento, tentei me agarrar às palavras de Selene e acreditar que tudo ficaria bem, mas uma inquietação persistente não me deixava em paz. Algo estava errado. Então, como um raio cortando meus pensamentos, a lembrança veio subitamente. Tia Sienna! Ela pode estar em perigo!
Meu coração disparou, e sem hesitar, saltei pela janela e corri em direção ao mercado. Atrás de mim, ouvi o atendente da estalagem gritar algo sobre eu estar louca, mas não parei. Eu não podia me dar ao luxo de hesitar ou me esconder. Eu prometi a mim mesma que não faria isso nunca mais.
As ruas estavam caóticas. Pessoas corriam em todas as direções, gritos de pavor enchiam o ar, e eu precisava lutar contra a maré humana para avançar. Empurrões, cotoveladas, passos apressados, todos fugiam sem olhar para trás, tomados pelo pânico. E foi nesse turbilhão de medo que um som diferente me atingiu: Um choro.
Olhei ao redor, tentando encontrar a origem, e então a vi: uma criança caída no meio da rua. Pequena, indefesa, ignorada pelos adultos que só pensavam em escapar. Meu corpo agiu antes que minha mente processasse o que estava fazendo. Corri até ela, colocando-me entre seu corpo frágil e a multidão apressada. Braços me empurravam, corpos me atingiam, mas permaneci firme, protegendo-a.
Com esforço, consegui levá-la até um canto seguro. Ajoelhei-me ao seu lado e, ofegante, ergui seu rostinho sujo de poeira e suor. Seus olhos grandes e assustados brilhavam com o reflexo do terror ao redor. O caos rugia como uma fera invisível, mas eu precisava que ela me ouvisse. Toquei seu queixo de leve, forçando-a a olhar para mim.
— Ei… — sussurrei.
Uma lágrima escorreu por sua bochecha, e sem pensar, enxuguei-a com cuidado. Forcei um sorriso, mesmo que meu próprio coração estivesse apertado.
— Vai ficar tudo bem.
A menina hesitou. Sua respiração era trêmula, interrompida pelo medo, mas então, num fio de voz, repetiu minhas palavras como se precisasse desesperadamente acreditar nelas.
— Vai ficar tudo bem…
Seus pequenos dedos apertaram minha mão, e naquele instante, algo mudou. O terror deu espaço para uma centelha de esperança.
De repente, através da poeira que se erguia no ar, avistei duas figuras. Um casal, os olhos desesperados varrendo o local. Suas expressões eram de puro desespero, os passos apressados pela angústia de encontrar algo, ou alguém.
A garotinha percebeu antes de mim. Seus olhos brilharam, e sua voz cortou o ar.
— Mamãe! Papai!
Sem hesitar, ela correu. A mulher foi a primeira a vê-la. Num instante, seu rosto desmoronou em alívio, e ela se jogou no chão para abraçar a filha. O pai logo se uniu ao abraço, apertando-as contra o peito como se quisesse protegê-las do mundo. Ele tentou falar, mas a voz falhou, então apenas afagou os cabelos da menina, segurando-a como se nunca mais fosse soltá-la.
A menina falou algo para eles e apontou discretamente para mim. Não pude ouvir o que diziam, mas seus olhares foram o suficiente.
“Obrigado.”
Ambos eram adultos corescidos, mas, por algum motivo, não senti aqueles olhares de desprezo velado que alguns lançam. Talvez fossem pessoas boas. Acenei para eles enquanto seguia para o mercado, e um sentimento desconhecido preenchia meu peito, uma mistura de calor e inquietação.
Entretanto, à medida que me aproximava, algo mais denso se instaurava no meu subconsciente, um peso estranho, como se o ar estivesse ficando rarefeito. O caos ao redor começou a se justificar assim que cheguei ao meu destino. Meus olhos captaram um vislumbre daquilo, e meus músculos travaram. Eu nunca tinha visto algo assim, muito menos dentro dos muros da cidade… Como essa coisa conseguiu entrar sem ser notada?
A criatura parecia vinda das profundezas mais obscuras do oceano. Seu corpo era fluido, constantemente se transformando, como se feito de água viva. Os contornos se distorciam entre formas humanóides e bestiais, membros alongando-se e encolhendo como tentáculos esculpidos em correntes marinhas. Sua pele, se é que poderia ser chamada assim, era translúcida e brilhava num tom azul-esverdeado, trazendo à mente as regiões mais sombrias e desconhecidas do mar. Mas foram os olhos que me congelaram no lugar: dois orbes vermelhos, brilhantes, que exalavam um perigo silencioso, quase hipnótico.
A coisa movia-se cercada por uma fina neblina, umidade exalando de sua forma instável, e, onde quer que tocasse, poças d’água se expandiam como se o próprio oceano estivesse tentando engolir aquele lugar. Os guardas estavam em combate, mas a luta era desigual, muitos deles já estavam no chão, alguns provavelmente sem vida. A criatura disparava jatos d’água tão concentrados que partiam rochas ao meio. O mercado, que outrora pulsava com vozes e aromas acolhedores, agora era apenas um rastro de destruição.
Foi então que percebi. Os guardas, todos eles, tinham cores em tons azuis. Chromagos da água. Seus ataques se perdiam na essência da criatura, dissipando-se como gotas em um rio sem fim. Eles estavam lutando contra algo que seus poderes jamais poderiam vencer.
Meu coração acelerou. Se apenas alguém com cores de outro elemento fosse capaz de derrotar essa coisa… alguém como Selene.
Mas não importa para onde eu olhasse, não havia sinal dela. Ela veio para cá, eu sei que veio. Então por que não estava aqui? O que aconteceu?
Os escombros do mercado eram uma prova silenciosa do desastre. As barracas destruídas estavam misturadas às mercadorias, espalhadas pelo chão, frutas esmagadas tingindo a terra com tons vibrantes. O cheiro de pães e especiarias, que preenchia o ar horas atrás, havia desaparecido. A padaria, que antes transmitia aconchego com seu forno sempre aceso e vitrines brilhantes, agora não passava de ruínas. A fachada havia desmoronado, tijolos espalhados em pilhas irregulares, cacos de vidro reluzindo entre os destroços.
A cidade… a paisagem que eu conhecia, agora se desfazia diante dos meus olhos. Mas eu não podia desistir ainda, eu precisava encontrá-la! Eu hesitei por um momento, o coração martelando no peito, e minha própria respiração parecia ensurdecedora no silêncio estranho que tomava o lugar. A porta de madeira pendia de uma das dobradiças, rangendo suavemente ao balançar com o vento. Tudo parecia congelado, como se o tempo tivesse parado no instante da destruição.
— Tia…?
Minha voz ecoou, hesitante, enquanto dava o primeiro passo sobre os destroços. Pequenos cacos de vidro estalavam sob meus pés, um som frágil e incômodo. O balcão onde a tia costumava atender os clientes com um sorriso caloroso estava irreconhecível, coberto por uma fina camada de farinha e cacos de louça quebrada. As prateleiras de madeira, antes repletas de pães e doces recém-saídos do forno, estavam vazias, algumas caídas no chão, deformadas pelo impacto.
A ansiedade crescia a cada passo.
— Tia! — chamei novamente, agora mais alto, enquanto caminhava pelo que restava da padaria.
As memórias do lugar dançavam na minha mente, vivas e em doloroso contraste com o presente. O sabor dos pães, as risadas trocadas entre nós nas manhãs calmas, a sensação acolhedora do ambiente… tudo parecia tão distante agora, como se fosse apenas um sonho.
Atravessando os escombros, alcancei a parte de trás da padaria, onde o forno permanecia de pé, mas agora retorcido e coberto de fuligem. Meu coração deu um salto. Entre um pedaço de parede desmoronada e um saco de farinha rasgado, algo se moveu. Minha respiração ficou presa na garganta.
Corri até lá, tropeçando nos destroços, e encontrei a tia Sienna…, ela estava caída, parcialmente coberta pelos escombros, mas viva.
Ajoelhei-me ao seu lado com o peito apertado pelo alívio e pelo desespero misturados. Com pressa, comecei a remover os destroços, pedaço por pedaço, até libertá-la. Seu rosto estava sujo de poeira e suor, os olhos entreabertos, fracos, mas quando ela me viu, seus lábios rachados se curvaram em um sorriso cansado. Sua voz saiu baixa, quase inaudível.
— Ashley… você veio… conseguiu entregar os pães…?
As lágrimas arderam em meus olhos, mas segurei sua mão com firmeza, sentindo o calor frágil ainda presente.
— Esqueça isso, tia! É claro que eu vim! Vou tirar você daqui, e vai ficar tudo bem!
Ela soltou uma risada fraca, quase um suspiro.
— Vejo que ainda é a Ashley que eu conheço…
Apoiei-a nos ombros, ajudando-a a se erguer com dificuldade. Seus passos eram pesados, mas, pouco a pouco, conseguimos sair da padaria destruída. O cheiro de fumaça e poeira pairava no ar, contrastando cruelmente com as lembranças do aroma doce que antes preenchia aquele lugar.
Foi então que notei. Os fios de cabelo que escapavam da touca desgastada da tia eram de um tom vibrante, alaranjado como o pôr do sol. Em todos esses anos eu nunca havia me questionado sobre isso, mas por algum motivo a pergunta veio à mente.
— Tia Sienna… suas cores. — Murmurei, incapaz de desviar o olhar. — A senhora nasceu no Reino do Fogo?
Ela suspirou, seu olhar se perdendo em memórias distantes, como se a simples menção daquele lugar a levasse de volta a um tempo esquecido.
— Ah, o Reino do Fogo… essa é uma longa história, Ashley.
A curiosidade queimava dentro de mim, uma necessidade quase desesperada de entender. Selene teria algo a ver com o passado da minha tia? Não parecia uma coincidência.
— A cliente de hoje, Selene, pareceu ser uma nobre do Reino do Fogo. A senhora a conhecia?
A expressão de Sienna se alterou no mesmo instante. Sua face antes exausta adquiriu uma tensão inesperada, os olhos levemente arregalados, como se de repente estivesse tentando juntar os pedaços de um quebra-cabeça.
— Uma nobre do Reino do Fogo? Não pode ser… — Murmurou, quase para si mesma. — Não é possível que seja a Selene que eu conhecia, é? Onde ela está?
— Ela saiu da estalagem dizendo que precisava fazer algo. Deduzi que estaria aqui, lutando contra a criatura que causou toda essa destruição, mas não a vi em lugar algum.
Antes que pudéssemos continuar, um grito cortou o ar.
— SAIAM DAÍ!
Olhei para o lado e vi um guarda agitado, seu rosto tenso enquanto gesticulava freneticamente. Em segundos, outro grito rasgou a confusão.
— CUIDADO!
Foi tudo muito rápido. Quando percebi, um chicote de água vinha em nossa direção, avançando com força devastadora. Meu corpo congelou e, num reflexo inútil, fechei os olhos, esperando o impacto. O som cortante do golpe reverberou ao meu redor, um impacto seco contra carne e osso. Mas…, não senti dor.
Meus olhos se abriram lentamente e o pavor tomou conta de mim.
Diante de mim, Sienna cambaleava, seu corpo vacilante absorvendo as consequências do ataque. O choque me paralisou por uma fração de segundo antes que eu corresse para segurá-la, suas pernas cederam, e meu coração pareceu parar no instante em que minhas mãos sentiram a umidade quente se espalhando. O sangue dela encharcava meus dedos.
— Por que você fez isso!? Por que se jogou na frente daquele ataque!?
Minha voz soou trêmula, repleta de desespero. As lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto, a sensação de impotência crescendo como uma fera dentro de mim. Se eu não fosse uma desbotada, se tivesse poder como os outros, as coisas teriam sido diferentes? A culpa se misturava ao medo enquanto olhava para minha tia ferida.
— Ash… Ashley… fuja… — sua voz veio fraca, mas determinada.
— Tia!?
Sua mão trêmula tocou meu rosto, seus dedos quentes limpando as lágrimas que desciam sem controle. Mesmo naquele estado, mesmo ferida, ela esboçou um sorriso.
— Vai ficar tudo bem.
Tentei acreditar nessas palavras, repeti-las como um mantra, mas elas não pareciam ter força.
A criatura se movia. Sua forma líquida ondulava em minha direção, sua presença carregando um peso quase sufocante. Algo nela parecia buscar… algo.
— Fuja… fuja, Ashley…
Mas eu não podia. Não podia simplesmente virar as costas e fugir. Não depois de tudo. Não quando já havia perdido tanto.
— Eu não posso te deixar aqui! Não vou fugir, nem me esconder! Se esse for o meu fim, que seja!
O desespero e a aflição obscureceram a minha visão. Foi nesse instante que senti algo diferente. Uma sensação estranha percorreu meus dedos, uma energia vibrante e desconhecida, como um fio de esperança que parecia cortar a escuridão.
Meu olhar caiu sobre minhas próprias mãos, e um arrepio subiu pela minha espinha ao notar algo incomum. O sangue que antes as manchava desaparecia, evaporando como água sob um sol escaldante. Então, um calor intenso tomou conta do meu peito, minhas batidas cardíacas dispararam e, por um momento, pude ouvir cada pulsação ecoando como tambores dentro de mim.
O brilho azul começou a irradiar nas pontas dos meus dedos.
A criatura lançou uma esfera de água. Eu sequer pensei. Meus instintos assumiram o controle e ergui as mãos num gesto automático. Uma coluna de chamas azuis emergiu do solo, colidindo com o ataque e o despedaçando em milhares de gotas que se dispersaram pelo ar.
Minha respiração ficou presa na garganta. Meus olhos estavam arregalados, meu corpo inteiro tremia, não de medo, mas de algo muito maior.
Abaixei o olhar para a poça d’água ao meu lado. O reflexo tremulante me mostrou algo impossível.
Meu cabelo… estava azul…
Fim do Capítulo 3 – Aqueles de Corações Valentes.
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