Capítulo 31: O Quinto Andar.
Descíamos em silêncio. O som de nossos passos ecoava pelas paredes de pedra, cada batida abafada como um aviso que ninguém sabia interpretar. As tochas haviam se apagado lá atrás, substituídas pela chama viva que Cratos mantinha em sua mão. Sua luz tremeluzente desenhava sombras estranhas nas paredes, que pareciam se mover por conta própria.
O quinto andar não nos recebeu com enigmas ou construções curiosas. Ele nos engoliu em sua atmosfera.
O teto era alto demais para que víssemos onde acabava, como se fôssemos formigas em um templo antigo esquecido pelo tempo. Colunas partidas se erguiam em posições aleatórias, como lápides de um campo de guerra. O chão estava coberto por uma fina camada de poeira negra, que se agarrava às botas e parecia pesar mais a cada passo. E bem no centro…
Uma estátua.
Alta, desproporcional, feita de um material cinza-esverdeado que brilhava levemente sob a chama de Cratos. Ela tinha a forma humanoide, mas seus traços eram errados. Múltiplos braços repousavam cruzados sobre o peito. O rosto era dividido em três partes distintas: uma sorrindo, uma neutra, outra distorcida em dor.
A tensão entre os mais atentos era nítida. Sophia apertou minha mão, e percebi que estava tremendo levemente. Hernán olhava em volta como se procurasse armadilhas invisíveis. Mas outros… outros estavam cegos pela confiança.
Luzes começaram a ascender automaticamente ao redor à medida que avançávamos pelo andar.
— Se for outro quebra-cabeça com estátuas, vai ser moleza — disse um aventureiro com um sorriso torto, avançando sem cautela. — Com essa quantidade de aventureiros, nem a torre segura a gente.
Ele deu mais dois passos em direção à estátua.
Então, veio o som: Um corte seco. Curto. Limpo.
Por um momento, ninguém entendeu o que havia acontecido. Até que sua cabeça rolou até nossos pés, os olhos ainda arregalados em espanto. O corpo caiu logo depois, sem força, como se a torre tivesse decidido apagar sua existência ali mesmo.
Então a estátua se mexeu.
Não com lentidão. Não com o ranger de pedra.
Com precisão. Com raiva. Com vida.
Aquilo estava desperto.
Em segundos, os que estavam próximos foram dilacerados. Um braço alongado atravessou o peito de uma arqueira, outro cortou dois aventureiros ao meio com um movimento só. O caos tomou o salão. Gritos, correria, armas caindo. Os que estavam um pouco mais afastados tentavam fugir, tropeçando uns nos outros, mas…
Eles não tinham chance.
— Então eles realmente existem… — disse um aventureiro de meia idade.
— Do que está falando? — Indagou outro em puro desespero.
— Os Guardiões da Torre do Abismo, já ouvi dizer que existem alguns deles dentro da torre, mas não imaginaria que apareceriam tão cedo!
O guardião os caçava como um predador. Não andava: deslizava, surgia onde queria. Um a um, os que tentaram fugir caíram.
— Recuem! Recuem para cá, agora! — gritou Hernán, sua voz sobrepondo os gritos. — Sozinhos, vocês vão morrer! Reúnam-se!
O sangue já manchava o chão. A poeira negra agora era vermelha. Vi uma jovem parada, tremendo, olhando para o vazio, murmurando “eu só queria ir pra casa” como um mantra inútil. Outro segurava a espada sem firmeza, dizendo entre soluços que pensou estar seguro, que “isso não era parte do plano”.
Foi então que o guardião parou.
Virou-se para nós: os poucos que não fugiram, e falou com uma voz que parecia vir de dentro das paredes:
“A torre não perdoa os que viram as costas, o abismo deve ser enfrentado de cabeça erguida.’’
Meu coração parou por um segundo… A frase na parede.
Era um aviso. E nós o ignoramos.
— O que faremos? — sussurrei.
— Não importa, seja guardião ou o que for — respondeu Cratos, seus olhos queimando como chamas. — Vamos acabar com ele.
Hernán tomou a frente, girando sua espada com precisão.
— Entrem em postura defensiva! Posição de formação! Se ele vier, estaremos prontos!
Sophia invocou suas flechas elétricas. Cratos aumentou o fogo no machado. Eu respirei fundo e assumi minha posição, tentando controlar a tremedeira.
A batalha mal havia começado e já tínhamos perdido metade do grupo.
As ordens de Hernán cortavam o ar como relâmpagos, firmes e certeiras. Os que restaram ao seu lado se moveram com uma sincronia que só a experiência e o desespero conseguem forjar. Cratos avançava como uma chama viva, seu machado incendiando o ar, enquanto Sophia disparava flechas em sequência. Disparos de energia cruzavam o salão, lâminas cortavam o silêncio, feitiços tilintavam no ar… mas nada parecia o bastante.
Eu me mantinha mais atrás, com os que não conseguiam reagir. Um rapaz chorava de joelhos, as mãos sujas de sangue que talvez nem fosse dele. Uma garota tremia contra a parede, o arco caído a seus pés. Aproximei-me e me ajoelhei ao lado dela.
— Ei… você consegue me ouvir? — toquei seu ombro com cuidado. — Precisamos de você. Todos aqui estão lutando. Você também pode…
— Eu… não… ele matou todos… ele matou…
— Eu sei. Mas se ficar parada, vai morrer também. E eu não quero ver mais ninguém morrer aqui — minha voz saiu mais firme do que eu esperava. Uma parte de mim sabia que, se eu mesma não acreditasse nisso, ninguém mais acreditaria.
Ajudei-a a se levantar. Seus olhos ainda estavam vazios, mas ela firmou os pés. Era um começo.
Ao fundo, ouvi um grito. Vi um dos conjuradores ser atravessado por uma das lâminas do guardião: lâminas que brotavam de seus braços em ângulos impossíveis, como se ele pudesse moldar seu corpo à vontade. Outro aventureiro tentou atacá-lo pelas costas e teve o peito aberto por um único golpe circular.
— Isso não é possível! — alguém gritou.
— A gente o acertou! — disse outro, em choque. — Eu vi! Ele estava sangrando!
O guardião tinha feridas. Algumas queimaduras, cortes profundos nas juntas. Mas à medida que o tempo passava, essas feridas… sumiam. Como se o próprio andar estivesse o curando. Como se a torre quisesse mantê-lo inteiro.
— Ele tá se regenerando — murmurou Cratos entre dentes cerrados. — Isso não é uma luta. É uma execução lenta.
Hernán reagia com estratégia, reposicionando o grupo, tentando manter todos em movimento constante para evitar serem alvos fáceis. Mas era visível. As fileiras estavam mais curtas. As vozes, mais fracas. A confiança… se esvaía como fumaça.
E eu… ficava ali.
Tentando ajudar os outros a ficarem de pé. Tentando dizer palavras que eu mesma precisava ouvir. Tentando não tremer demais.
Porque, bem no fundo, eu sabia. Eu não era como eles.
Enquanto pensava nos enigmas, nas pistas, nos padrões… eu me sentia viva. Mas aqui, no campo de batalha, no meio da morte e do medo… eu não passava de um peso a ser protegido.
“Até quando eu consigo ser útil?” pensei, apertando os punhos. “Será que só sou capaz de ajudar quando o inimigo está olhando nos meus olhos?”
Mais um grito. Outro corpo no chão.
Eu cerrei os dentes e me obriguei a olhar para a criatura. Para aquele monstro que caçava meus companheiros um a um. Para aquela coisa que não recuava, que não sangrava o suficiente, que ria… sim, ria cada vez que matava mais um.
Não.
Eu não podia continuar assim.
Mesmo que eu morresse tentando. Mesmo que eu falhasse. Mesmo que meu corpo tremesse, eu precisava lutar. Precisava fazer parte disso. Precisava ser mais do que alguém que assiste o fim.
Fechei os olhos por um segundo. Respirei fundo. Senti o calor das lágrimas ameaçando cair, mas as engoli junto com o medo. E busquei, dentro de mim, algo. Qualquer coisa. Uma faísca. Um fogo. Uma cor.
Porque se esse era o abismo… então eu enfrenta-lo de cabeça erguida!
Eu me ergui em meio ao caos. Meus pés pesavam, o medo ainda arranhava as bordas da minha mente, mas algo havia mudado. Era como se o calor da batalha queimasse as dúvidas por dentro. Eu não tinha poder…, mas tinha algo mais. Coragem. Talvez fosse só teimosia. Mas era tudo o que eu tinha.
Avancei.
O guardião era um borrão letal entre os aventureiros, seus braços metamorfoseando-se em lâminas negras e flexíveis, açoitando o ar com precisão quase cruel. Um dos conjuradores caiu a poucos metros de mim. Eu corri. Cheguei a tempo de empurrá-lo para fora do alcance da lâmina seguinte. Uma dor lancinante percorreu meu ombro quando a lâmina me atingiu de raspão… ou talvez nem tão de raspão assim. Mas eu ainda estava viva.
O guardião virou-se em minha direção, mas antes que pudesse avançar, raízes espessas irromperam do chão, enroscando-se em seus pés.
— Agora! — gritou Hernán, concentrado, seu corpo iluminado por um brilho verde intenso.
Da lateral, Sophia deslizou com precisão de caçadora. Suas mãos dançaram no ar, puxando flechas de pura eletricidade. Ela atirou uma, depois outra, depois outra… não parecia querer acertar diretamente, mas as flechas se fincaram no chão ao redor do guardião.
— Veremos se você conduz bem a corrente — murmurou ela.
As raízes e a grama alta que Hernán havia invocado começaram a brilhar com energia amarelada, transformando-se em uma armadilha viva. No instante seguinte, uma rede de eletricidade se formou ao redor do inimigo e um estalo alto ecoou pelo andar, o guardião estremeceu violentamente, suas lâminas tilintando no ar.
— Cratos! — rugiu Hernán.
Um estrondo flamejante anunciou a chegada de Cratos, que vinha correndo como um cometa. Seu machado estava envolto em fogo, e seu corpo parecia pulsar com calor. Ele saltou alto, as chamas deixando um rastro no ar, e gritou:
— QUEIME NO INFERNO!
O golpe desceu com a fúria de uma tempestade solar. O impacto explodiu em fogo e fumaça, jogando detritos em todas as direções. Por um momento, o silêncio dominou o andar.
O guardião havia caído…
Todos prenderam a respiração. Um dos aventureiros deixou escapar um riso nervoso.
— Conseguimos… nós realmente conseg…
Um som metálico rasgou o ar.
Do meio da fumaça, o guardião emergiu em um salto que parecia impossível, girando no ar com suas lâminas estendidas. Um redemoinho de destruição. Um golpe em arco varreu o campo.
Cratos foi atingido em cheio e lançado contra a parede com um estrondo brutal. Seu corpo caiu inerte entre os escombros. Hernán ergueu uma muralha de raízes em frente ao grupo, mas não a tempo; o impacto quebrou parte da defesa e o lançou para trás, sangrando.
Sophia tentou recuar, mas não foi rápida o suficiente. Uma lâmina cruzou o ar, cortando-a no peito. Ela caiu a poucos passos de mim, ofegante, o sangue tingindo sua roupa.
— SOPHIA! — gritei, correndo até ela.
Seu olhar tremia de dor, mas ela ainda estava consciente. Segurei sua mão.
— Fica comigo, por favor… — disse ela quase sem forças.
Ao redor, os sobreviventes tentavam reagir, mas a formação havia sido quebrada. Sem Cratos, sem Sophia, sem Hernán de pé, a maré virava. O silêncio de antes agora se enchia de gritos.
Tudo parecia desmoronar diante dos meus olhos. Mas mesmo no meio ao horror… eu não larguei sua mão…
Fim do Capítulo 31: O Quinto Andar.
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