Capítulo 32: Última Chance.
A poeira ainda não havia baixado. O chão tremia sob meus joelhos. O ar estava pesado, sufocante, como se a própria torre nos pressionasse com o peso de nossas falhas. O corpo de Sophia jazia ao meu lado, ferido, sua respiração curta, os olhos semicerrados. Sangue manchava suas roupas e escorria lentamente até tocar a palma da minha mão. Eu mal conseguia respirar.
Cratos estava desacordado, enterrado entre os escombros. Hernán ainda tentava se manter de pé, mas o corte em sua perna dificultava cada passo. Os aventureiros que restaram estavam espalhados, exaustos ou paralisados de medo. Alguns sequer conseguiam levantar a arma do chão.
O guardião ainda estava lá. Imponente. Intocado. O olhar vazio de suas máscaras, vasculhava o ambiente como um predador paciente, frio e preciso. Nós havíamos dado tudo… e não tinha sido o suficiente.
Meu peito ardia em frustração. Por mais que minha mente gritasse para reagir, meu corpo parecia colado ao chão… rasguei a manga do meu manto com os dentes e os dedos trêmulos. Não tinha tempo pra pensar, precisava agir. Pressionei o tecido contra o peito da Sophia, tentando estancar o sangue que não parava de sair: escorria quente, espesso, grudava nas minhas mãos como tinta.
— Você tem que fugir… agora…— ela sussurrou, quase sem voz.
— Não. — Minha resposta saiu antes de eu pensar. — Não vou deixar você aqui. Vai ficar tudo bem…
Ela moveu a mão, como se cada centímetro fosse um esforço absurdo, e tirou um pingente do pescoço: uma pedra amarela envolta em fios dourados. Colocou-o na minha mão.
— Leve isso… para minha família… em Voltagris…
Voltagris… soava como um trovão distante.
Fechei os dedos em volta do pingente e segurei a mão dela com a outra. Os olhos dela estavam pesados. Os meus também. Mas eu não ia deixá-la. Eu não ia fugir. Nunca mais.
— Nós vamos sair daqui juntas. — A voz me escapava baixa, quase implorando, mas firme. — Você vai entregar isso pessoalmente, ouviu? Vai ficar tudo bem… vai ficar tudo bem!
Repeti isso algumas vezes, baixinho, como se pudesse invocar um pequeno milagre com palavras. Fechei os olhos por um segundo, tentando me desligar do caos ao redor; dos gritos, das lâminas, do som dos corpos caindo. Mas naquele momento era só eu e ela. Só nós duas.
— Acho que perdi muito sangue e… estou alucinando…— murmurou ela, e sua voz me puxou de volta. — Mas… que cabelo bonito…
Abri os olhos, confusa. E então vi.
O sangue dela… estava sumindo. Evaporando em minha pele, como fumaça. E meus cabelos… meus cabelos estavam ficando… azuis. Um azul vívido, profundo, como o mar viva sob a luz da lua.
— Meu poder ilusório…— sussurrei, sem acreditar. — Não sei se serei capaz de fazer algo…, mas… veio em boa hora.
Senti como se algo dentro de mim tivesse sido destravado, como se um rio tivesse encontrado um caminho através das pedras que o bloqueavam. A energia subiu pelas minhas veias, me preenchendo. Me fazendo tremer. Era demais. Era intenso. Era…
Mas não tive tempo pra respirar.
O rugido me atingiu como um soco. O Guardião vinha. Gigante. Implacável. Aço e fúria encarnados. Outro grupo de aventureiros tombava sob suas lâminas, como folhas ao vento. Não dava mais pra fugir. Não dava mais pra hesitar.
Agarrei minha adaga com força e me levantei.
— Vamos ver se isso ainda funciona…
Fechei os olhos por um segundo, tentando sentir a energia. Água… fluidez… movimento… Lembrei do rio que passava sob a ponte de Rivendrias, do som dele. Imaginei aquela corrente sendo puxada até a lâmina.
Foi quando aconteceu.
Um estalo atravessou meu corpo. Um choque seco, brutal. Senti meus músculos contraírem todos de uma vez, a dor cortando por dentro como mil agulhas. Caí de joelhos, me debatendo. Perdi o ar, a visão turvou. Era como se o próprio poder tentasse me rejeitar.
Mas passou…
Como uma onda que bate forte e depois recua, deixando a praia encharcada. Eu ainda estava aqui. Tremendo, sim. Mas viva…
Levantei a cabeça… e tudo parecia diferente.
O Guardião ainda vinha, mas… algo estava estranho. Seus movimentos… estavam lentos. Como se o tempo tivesse esticado ao meu redor. Como se, por fim… eu conseguisse ver seus movimentos.
Agarrei a adaga novamente, sentindo o peso da lâmina, e a energia começou a pulsar no momento que a segurei… faíscas azuis brotaram da lâmina.
— Mas o quê…?
Olhei para minhas mãos; pequenos raios percorriam meus dedos. Meu corpo inteiro brilhava com uma aura azulada, viva, vibrante. Meus cabelos flutuavam levemente, como se o ar ao meu redor estivesse carregado demais pra se manter calmo. Contrariando o que eu esperava aquilo… não era água como da última vez. Era eletricidade. A energia pulsava como um raio me atravessando por dentro.
— Isso… é o meu poder ilusório dessa vez? — murmurei, em espanto.
O rugido metálico cortou meus pensamentos… o Guardião saltou, descendo com a lâmina em punho. Me movi sem pensar. A adaga brilhou em minha mão, e o choque se espalhou pelo meu braço quando apararei o golpe com precisão. No mesmo movimento, girei o corpo e cravei a lâmina em seu peito.
O impacto foi tão intenso que ele foi arremessado para trás, caindo com estrondo no chão rachado da arena.
Ouvi alguém gritar meu nome; virei a cabeça.
Era Hernán. Ele me olhava como se eu tivesse acabado de ressuscitar.
— Ashley?! O que foi que…? Como…?
— Nem eu sei! — gritei de volta, ofegante, com os olhos fixos no Guardião que já se erguia novamente.
— O que disse? Não consigo te entender — Hernán parecia confuso.
O Guardião se colocou de pé, as dobras do corpo se torciam e soavam com raiva. Seus olhos escuros em cada máscara brilharam de forma intensa. Ele investiu de novo: desta vez com fúria, ele não parecia estar se divertindo.
As lâminas giravam em suas mãos como redemoinhos mortais. Mas agora eu via. Eu via tudo. Cada movimento, cada brecha. A adaga encontrava o aço empunhado pelo Guardião, faíscas voavam no impacto. Desviei, contra-ataquei, cortei seu flanco. Uma das lâminas caiu. Ele cambaleou. Mas não caiu.
Não. Ele gritou.
Um som rouco, horrível, que parecia vir do fundo de algum lugar obscuro. Levou as mãos ao rosto e retirou a máscara feliz. Por um segundo, vi um vazio estranho por trás daquela armadura viva. Então, ele colocou outra: uma máscara nova. O sorriso havia sumido. A nova expressão era de dor. Raiva. Desespero.
Seus quatro braços começaram a se fundir, a derreter e moldar… e diante dos meus olhos tomaram a forma de lâminas finas, longas, curvas. Como se ele fosse feito para matar e tivesse, até agora, brincado conosco.
Ele avançou. E desta vez, mais rápido.
— Droga… — murmurei, pulando para trás.
Ele atacou, uma, duas, três vezes; as lâminas se moviam como relâmpagos. Bloqueei por puro instinto, por um reflexo que nem sabia que tinha. Ainda assim, uma das lâminas passou rente demais. Conseguir bloquear a tempo, mas a força do impacto me jogou para trás, escorregando no chão, ofegante.
Me apoiei nos cotovelos, sentindo o corpo gritar. Estava me aguentando. Por pouco. Aquele poder parecia drenar a minha energia rápido… rápido demais.
Foi aí que senti o peso em minha cintura: A espada de Selene.
Virei o rosto e a encarei. Seu cabo vermelho, o leve brilho carmesim no núcleo da lâmina. A mesma lâmina que cortou o Demônio da Gula com uma facilidade quase cruel.
— É, Selene… — sussurrei. — Quem diria que mesmo de longe ainda estaria me apoiando.
Agarrei a espada, desembainhei com um estalo que cortou o ar, e me levantei. Ainda com a adaga na outra mão. Os olhos do Guardião pareciam cravar em mim com mais intensidade. Ele percebeu que algo mudou. E ele estava certo.
Respirei fundo e deixei a eletricidade correr pelos braços, fluindo nas lâminas, zumbindo ao redor do meu corpo.
— Vamos adicionar mais uma arma… pra equilibrar o jogo.
Assumi a postura de batalha, a adaga e a espada brilhando em minhas mãos. Me senti influenciada por Selene, pois pela primeira vez naquela luta, eu sorri.
As lâminas cruzaram o ar em um rugido agudo. Eu me movia rápido… mais rápido do que achava possível. Cada golpe do Guardião era uma sentença de morte, mas agora… eu conseguia ver. Cada músculo que se tensionava, cada mudança na postura. E antes que ele concluísse um ataque, eu já estava lá, aparando com a adaga, desviando sua trajetória com a espada.
O calor da eletricidade percorria meus braços. Meus pés mal tocavam o chão. Eu não estava apenas lutando.
Eu dançava como um raio que descia do céu.
Girei a adaga, aparando uma lâmina que desceu como uma guilhotina, e ataquei com a espada em um arco amplo. O aço cortou o ar, e uma onda de choque azul se lançou contra o peito do Guardião, o som explodindo como um trovão.
Ele cambaleou, o peito fumegando. Mas no instante seguinte, as rachaduras metálicas começaram a se fechar.
— Tão rápido assim…?
Ele riu. Um som grotesco, como um eco metálico de algo que um dia teve alma.
— Desista. O tempo não está a seu favor, garota esguia.
— Vai pro inferno — respondi entre os dentes, e saltei.
Desta vez, deixei a adaga acumular energia. Uma esfera de eletricidade crepitante se formou na ponta da lâmina. Lancei-a sem hesitar. A esfera atingiu o ombro do Guardião, e seus movimentos vacilaram. Faíscas envolveram suas articulações, retardando seus passos, tornando sua forma menos precisa, mais lenta.
— Está sentindo isso? — avancei, desferindo um corte horizontal com a espada.
A lâmina brilhou, e a onda de choque rasgou o ar, atingindo seu flanco. Uma das lâminas se soltou. O corpo do Guardião girou com o impacto, e eu aproveitei; outro corte, desta vez vertical. A energia se acumulou, e uma nova onda de choque explodiu, abrindo uma fenda no peito dele.
O chão tremeu. Hernán, ao fundo, gritou algo que não consegui entender. Eu só via o inimigo diante de mim. Ofegante. Ferido.
Mas então…
As fendas começaram a fechar novamente.
— Isso não é normal… — murmurei, recuando. — Não importa o quanto eu o machuque…não importa quantas vezes ele caiu em batalha!
Ele se reergueu, o sorriso da máscara em agonia mais perverso do que antes.
— Você não entende… Eu fui feito para isso. Para resistir. Para manter os indesejados longe. Eu não caio. Eu não morro.
A Torre… até aqui nenhuma das soluções foram fáceis e diretas, a falta de combates e a formação do grupo, nos deu a falsa sensação de que os desafios foram fáceis…, mas não são…
— Claro que não… porque tem algo te mantendo inteiro. — Observei os arredores. Cada canto, cada detalhe da sala. — Alguém… ou alguma coisa está te curando.
A eletricidade rugia ao meu redor, mas eu sabia: não conseguiria mantê-la por muito mais tempo. Meu corpo começava a reclamar, meus músculos pesavam, meus pensamentos se tornavam nebulosos.
— Eu preciso… descobrir.
Aparei mais um golpe, cambaleando com o impacto. Meus pés deslizaram pelas pedras quebradas do chão. Usei a adaga para lançar outra esfera de eletricidade, acertando-o no joelho e desequilibrando-o por um segundo. Era tudo o que eu precisava.
— Selene… como você fazia parecer tão fácil?
Recordei sua postura. O modo como ela deixava o corpo guiar os ataques. Como cada movimento tinha propósito. Força e intenção.
Imitei sua postura. Espada atrás, adaga adiante. Respirei. Me concentrei.
Ataquei.
A adaga se moveu em zigue-zague, lançando descargas a cada feixe de movimento. A espada cortava o ar com precisão; corte horizontal, onda de choque. Ele recuou. Corte vertical, mais uma onda. Saltei sobre ele e cravei ambas as lâminas em seus ombros, empurrando-o contra o chão.
O corpo dele tremeu. Mas não se desfez.
— Não adianta, Ashley… — sussurrei pra mim mesma. — Isso só vai continuar. Ele vai continuar. Até você cair. A não ser…
Me virei para trás. Olhei em volta.
— Onde está? Onde está a maldita fonte que o mantém em pé?
Ele se ergueu de novo. As lâminas se remodelando. Mais raiva. Mais velocidade. Mais dor vindo na minha direção.
E cada segundo me deixava mais fraca.
— Eu preciso achar essa coisa… antes que minha energia acabe.
Me reposicionei. A espada de Selene firme em minha mão direita. A adaga vibrando na esquerda. Meu tempo estava acabando… se não descobrir logo como derrotar esse Guardião… será o fim!
Fim do Capítulo 31: Última Chance.
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