Capítulo 34: O Banquete do Abismo.
Despertei com a sensação de estar sendo levada pelas nuvens, mas o baque surdo dos meus sentidos voltando à realidade me lembrou que não havia nada de etéreo naquilo. Eu estava sendo carregada, e cada passo ecoava nas paredes frias da masmorra.
— Onde…? — murmurei, tentando entender o que estava acontecendo.
— Ei, você voltou. — A voz de Hernán era baixa, carregada de alívio. — Está segura. Estamos descendo para o próximo andar.
Girei levemente a cabeça e vi Sophia andando ao nosso lado, seu rosto estava manchado pela batalha, mas os olhos vivos. Atrás, Cratos arrastava seu machado como se o peso dele não fosse nada comparado ao que acabáramos de enfrentar.
— O guardião…? — Minha garganta arranhava ao falar.
— Foi derrotado — disse Sophia. Havia algo na forma como ela olhava para mim que misturava admiração com incredulidade. — Se você não tivesse o mantido ocupado por tanto tempo… estaríamos todos mortos.
Aquelas palavras demoraram a se fixar dentro de mim. Eu… tinha mesmo feito aquilo? Lutei com tudo o que tinha e… um pouco mais. O guardião, a máscara, aquela aura elétrica que me envolveu como um instinto de sobrevivência… tudo parecia um borrão agora.
Cratos se aproximou.
— Quando você desmaiou… seu cabelo voltou a ser preto. — Seu olhar era direto. — Que poder é esse?
Suspirei. Eu mesma queria saber.
— Eu não sei — respondi com sinceridade. — Não é algo que eu controlo. Parece surgir quando eu estou prestes a perder tudo. Como se… apesar de não o possuir, ele ainda estivesse ali.
Eles me ouviram em silêncio. Não senti julgamento, apenas curiosidade… e talvez uma ponta de preocupação.
— É como se fosse uma ilusão, uma máscara de mim mesma. Uma força que só aparece quando eu mais preciso… e desaparece logo depois. — Respirei fundo, apoiando a cabeça no ombro de Hernán. — Mas foi real o bastante para criar uma chance de mudar não apenas o meu destino, como das pessoas ao meu redor…
— E foi isso que fez — disse Hernán. — Você virou o rumo da batalha ao nosso favor, nos deu mais uma chance de lutar!
Aquelas palavras me atingiram com uma força inesperada, toda batalha passava pela minha mente como uma lembrança distante… eu realmente fui capaz de enfrentar aquela monstruosidade…
Ficamos em silêncio por um tempo. A exaustão ainda me consumia, mas algo dentro de mim me empurrava para manter a mente alerta. Então, lembrei.
— Esperem… antes do quinto andar, eu encontrei uma mensagem, acredito que ela contava sobre o guardião. Se existirem outras pistas para os andares seguintes, precisamos descobri-las.
Eles assentiram e passaram a examinar as paredes do corredor. Eu observava enquanto os aventureiros se espalhavam. Meus olhos ainda ardiam, e o corpo doía em lugares que eu nem sabia que podiam doer. Ainda assim, uma parte de mim se recusava a descansar completamente.
Um dos aventureiros mais a frente gritou:
— Aqui! Achei algo!
Nos aproximamos. Gravada na parede, com letras trêmulas mas claras, havia uma inscrição:
“Aos que vierem depois: Aqueles que se ergueram sob o julgamento das láminas devem buscar o oásis no coração do Abismo.”
Oásis.
Aquela palavra parecia algo impossível dentro daquele lugar. Olhei para os rostos ao meu redor; ninguém comemorava. Acho que, assim como eu, todos estavam presos entre o alívio e a desconfiança que a torre causava.
— Isso é estranho… — murmurei. — Parece indicar algo que será útil para o grupo, mas precisamos ficar de olhos abertos.
— Por enquanto, vamos continuar — murmurou Cratos.
Seguimos em frente, descendo o que pareciam ser os últimos degraus até o sexto andar. Ainda não sabíamos o que nos aguardava, mas havia algo diferente no ar: uma quietude quase gentil, como se o próprio abismo estivesse, pela primeira vez, nos oferecendo um instante de trégua.
Cada degrau rangia com o peso daqueles que sobreviveram, e cada passo adiante carregava a memória dos que ficaram para trás. Quando cruzamos a última curva e chegamos ao sexto andar, a expectativa de que poderia ser mais um campo de batalha fez meu coração apertar, mas a visão que nos recebeu parecia… impossível.
Uma mesa gigantesca estendia-se pelo centro do salão, coberta por comidas de todos os tipos, das mais simples às mais refinadas. Frutas maduras, carnes assadas, sopas fumegantes, pães dourados, bebidas coloridas. À volta da mesa, móveis confortáveis, sofás acolchoados, poltronas com almofadas, até tapetes macios, mas tudo por algum motivo, contrastava absurdamente com o chão molhado de pedra escura. Era como cair num sonho… ou em uma armadilha muito bem montada.
— Isso só pode ser uma ilusão — murmurou Sophia, parando ao meu lado. — Ou uma espécie de armadilha.
— Tudo aqui é. — Cratos apoiou o machado no ombro, mas seu olhar percorria cada canto do salão com cautela.
— Então… será que é veneno dessa vez ou algo que vai nos fazer dormir pra sempre? — alguém murmurou com um riso envergonhado entre os aventureiros da retaguarda.
Hernán se adiantou com outros dois aventureiros, todos parados diante da mesa como crianças diante de um banquete. Foi quando um deles; um homem magro com cicatrizes nas têmporas. Ele deu um passo ousado, pegou uma maçã e a levou à boca, mesmo sob os protestos de seu companheiro.
O silêncio tomou conta de tudo.
Ele mastigou. Engoliu. E… nada aconteceu.
— Está boa. — Disse, espantado. — Está realmente doce.
Os olhares se cruzaram. Dúvida. Desejo. Medo. Aos poucos, os aventureiros começaram a se servir, ainda com gestos contidos, como se esperassem que tudo explodisse a qualquer segundo. Mas nada explodiu. Nada os atacou. Pela primeira vez desde que entramos na torre… havia paz.
Fomos os últimos a baixar a guarda.
Sentamos ao redor de uma pequena fogueira que Cratos improvisou no canto da sala.
— Se pararem para pensar, estamos sentados ao redor de uma fogueira embaixo d’água — comentou Sophia, rindo com um pão nas mãos. — Esse lugar gosta de brincar com meu senso de realidade.
— Se isso é um delírio coletivo por comer comida envenenada, pelo menos é confortável — murmurou Hernán, com um pedaço de carne já a caminho da boca.
Cratos, por outro lado, parecia incomodado.
— O que mais me intriga é que só sobraram oito de nós. — Ele olhou em volta. — Vinte e três pessoas desceram para o quinto andar, e agora… somos os oito que sobraram.
O silêncio voltou. Apesar de duras, as palavras de Cratos nos trouxeram de volta a realidade. Não estavamos alí sem que o preço fosse pago, e aquele momento de paz veio com um preço enorme. Apesar de estarmos exaustor o crepitar do fogo parecia zombar da nossa tentativa de descanso.
— Isso aqui pode parecer uma recompensa — falei, tentando encontrar sentido. — Um alívio para os que passaram pelo inferno. Mas não sei se foi justo.
— Nada aqui é — respondeu Sophia. —Mas precisamos aceitar o que temos… e continuar seguindo em frente.
Alguns dos aventureiros próximos começaram a conversar entre si. Um deles: um rapaz de rosto cansado e roupas remendadas, contou que entrou na torre para pagar a dívida da mãe, prometeu parte das recompensas que conseguisse a um lorde local.
Outro, de fala mansa e cabelo preso em tranças, revelou que seu irmão desapareceu meses atrás, e que ele só queria encontrá-lo, mesmo que fosse um corpo, mas não tinha nenhum tipo de riqueza para pagar por uma equipe de busca ou colocar um pedido de missão no mural da guilda. Nenhum deles falava com ódio. Parecia mais… resignação.
— E vocês? — nos perguntaram. — Por que resolveram entrar nesse buraco maldito?
— Procuramos nosso mestre — respondeu Hernán sem hesitar. — Ele estava no primeiro grupo de expedição que a Guilda enviou para selar a torre.
— Ele é uma pessoa muito importante para nós — completou Sophia. — E se houver uma chance de que ele esteja vivo, queremos encontrá-lo.
Olhei para o fogo e me mantive em silêncio. Minha razão… por algum motivo parecia pífia após ouvir suas histórias. Arriscar a minha vida por alguém que conheci a pouco tempo… provar o meu valor para outra pessoa… tudo aquilo não parecia nada agora.
O restante do grupo começou a se preparar para descansar enquanto podiam.
Sophia se aproximou e sentou ao meu lado, lançando um olhar curioso.
— Ei, Ashley… como está se sentindo?
— Acho que estou bem. — respondi, ainda incerta.
Ela franziu o cenho, como quem tenta decifrar um enigma.
— Desde que vi aquilo, não consegui parar de pensar. — inclinou-se um pouco mais e sussurrou — Como você conseguiu usar aquela energia daquele jeito?
A pergunta me pegou de surpresa.
— Eu… eu não sei do que está falando. — inclinei a cabeça, confusa.
— Não imaginei que tivesse poderes de eletricidade — ela continuou, com os olhos fixos em mim — principalmente porque seu cabelo estava azul. Mas a forma como você se fundiu à energia… foi como se vocês fossem uma só. Isso me deixou curiosa. Como fez aquilo sem se machucar?
Ela apontou para as próprias luvas e botas.
— Esses equipamentos são feitos com um material especial. — explicou, conjurando uma flecha de eletricidade entre os dedos. — Eles impedem que a energia me cause ferimentos. Nunca vi ninguém no Reino da Eletricidade usar a energia de forma tão… imprudente. Mas foi incrível.
— Ah… eu não saberia explicar. — respondi, tentando encontrar as palavras. — Foi como se simplesmente acontecesse. Num instante, eu tentava controlar a energia. No seguinte, uma dor absurda tomou conta do meu corpo… como se milhares de agulhas me perfurassem ao mesmo tempo.
Sophia me escutava com atenção, como se cada palavra carregasse um segredo valioso.
— Mas, do mesmo jeito que a dor surgiu, ela sumiu. — continuei. — Quando abri os olhos, meu corpo estava estranho… mais leve, embora dormente. Como se algo dentro de mim tivesse acelerado. Era como se tudo em mim vibrasse… na mesma velocidade daquela energia.
Um brilho surgiu nos olhos de Sophia. Fascínio, talvez.
— Vibrar junto à energia… — murmurou.
Ela retirou uma das luvas e tentou conjurar outra flecha. Quando a segurou, um estalo seco cortou o ar, seguido por um leve grito de dor.
— O que está fazendo, Sophia? — perguntou Hernán, rindo. — Teve insônia e decidiu se nocautear?
— Claro que não! — respondeu, balançando a mão com dor. — Só estava tentando replicar o que a Ashley fez.
— Aquilo foi impressionante mesmo. — disse ele, agora mais sério. — Não sei como, mas você se movia tão rápido que mal dava pra acompanhar.
Cratos se virou em nossa direção com uma expressão séria, mas um pouco confusa.
— Sophia agora não é hora para experimentos, precisamos descansar enquanto a torre não está tentando nos matar — se virou para Hernán e continuou. — Isso também vale para você, lembre-se que sem suas ervas curativas estariamos muito piores agora, mas eu sei bem quanta energia isso te custou, vá descansar, eu ficarei o primeiro turno de vigia.
Eles assentiram e cada um de nós tentou se acomodar no que o andar nos oferecia. Peguei algumas almofadas e me deitei por cima do tapete.
A noite ou o que consideramos noite, passou tranquila. Pela primeira vez desde que entrei na torre, consegui fechar os olhos e descansar sem medo de acordar cercada por monstros.
Acordei com o barulho de algo caindo.
— Mas que droga… — reclamava um dos aventureiros que estava deitado em um dos sofás.
Quando abri os olhos… tudo havia sumido.
A mesa, os móveis, até os tapetes. Como se nunca tivessem estado ali. No centro do salão, pendendo do teto como um presente dos deuses ou dos demônios da torre, havia uma única chave.
Cratos a pegou.
— A torre decidiu que é hora de continuar.
Foi quando um dos aventureiros se afastou do grupo. O homem da maçã.
— Eu não vou. — Disse, com os olhos baixos. — Eu sobrevivi ao quinto andar. Cheguei até aqui. Isso já é mais do que eu esperava. Não quero arriscar mais.
O aventureiro de tranças, colocou a mão no ombro dele.
— Talvez… talvez devêssemos esperar. Outros grupos podem chegar. Podemos formar uma nova aliança com quem vier depois.
— Se alguém vier — retrucou Sophia, séria. — E se vierem, em que estado vão estar após lutarem contra o Guardião do quinto andar? Pode levar semanas. Meses. Ou nunca acontecer.
— Nossa melhor chance é seguir e encontrar com o grupo principal — disse Hernán, lançando um olhar direto para eles.
Não houve resposta imediata. Estavamos em uma Torre do Abismo. Cada escolha parecia errada… e ainda assim, tínhamos que escolher.
Hernán tentou uma última vez. Suas palavras foram calmas, firmes, quase fraternas. Cratos foi direto, prometendo proteção mútua. Sophia falou de lógica, de chances reais de sobrevivência. Até eu, hesitante, me aproximei e pedi que viessem conosco. Mas os dois homens mantiveram os olhos baixos, como se já tivessem se despedido do mundo.
— Agradecemos… de verdade —disse o primeiro — Mas é aqui que nos separamos.
— Esperaremos reforços. Se vierem… talvez possamos ajudá-los — completou o outro.
Sabíamos que era uma esperança vazia. Mas não havia mais nada a dizer. A escolha final era deles. Apenas assentimos. E viramos as costas.
Seguimos em direção a porta do sétimo andar, com o espírito abalado mas com as energias renovadas. Antes de passarmos pela porta Cratos fez uma breve pausa.
— Talvez seja melhor assim… eles não confiam na capacidade do nosso grupo, por isso estão ficando para trás na esperança de que um grupo mais forte alcance o sexto andar — sua expressão era seria. — Aventureiros que não confiam no seu próprio grupo… são os piores tipos.
Todos se entreolharam, mas ninguém teve a coragem de dizer nada de imediato.
— Mas Cratos, eles não parecem ser pessoas ruins, como pode dizer uma coisa dessas com tanta certeza? — Indaguei.
— Não confunda as coisas Ashley, eles podem ser pessoas boas, mas aqui estamos em uma situação de vida ou morte, eu confio minha vida a cada um de vocês, assim como cada um de vocês confiam suas vidas a mim. — Ele me olhou, não com uma cara irritada, mas sim com uma expressão serena. — Aventureiros de verdade devem confiar em seus companheiros.
Naquele momento, senti que aprendi algo valioso, algo que não se aprende em livros ou histórias fantásticas… o valor dos laços que nos unem pode ser mais poderoso do que eu inaginava…
Seguimos através da porta que levaria ao próximo andar. A escadaria do sétimo andar nos engoliu lentamente. A cada passo, o ar parecia mais denso, como se a própria torre nos observasse. Foi Cratos quem notou a inscrição na parede, pouco antes da primeira curva da descida. Letras gravadas a fogo em uma pedra que parecia mais antiga do que todo o restante da estrutura.
“O sexto andar é um Oásis falso. Uma ilusão construída para acalmar a mente e prender o corpo. Aqueles que ficarem… jamais serão vistos outra vez.”
Meu coração parou por um instante.
— Não… — sussurrei, girando nos calcanhares, correndo de volta.
— Ashley! — ouvi Sophia chamar atrás de mim, mas não parei.
Subi os degraus como uma flecha, ignorando o peso nos músculos, ignorando o medo que pulsava em cada fibra. A cada passo escutava as batidas do meu coração cada vez mais altas, como se contassem os segundos. Quando cheguei proximo à entrada do sexto andar, estendi a mão.
Mas a porta… se fechou.
Um som profundo e metálico reverberou pelas paredes como um trovão.
— NÃO! — gritei, batendo com os punhos fechados. — EI! VOCÊS PRECISAM SAIR DAÍ! SAÍAM! VOCÊS PRECISAM SAIR!
Silêncio. Em seguida o grupo me alcançou a beira da porta.
Por um segundo, esperei que me respondessem.
Então… os gritos começaram.
Não vinham de longe. Pareciam estar do outro lado da porta. Tão próximos quanto fantasmas presos a centímetros da pele. Gritos de dor. De desespero. De arrependimento.
De morte.
Recuei um passo. Depois mais um.
Ninguém disse nada. Nem mesmo Cratos.
A torre havia falado mais alto que qualquer um de nós.
— Isso… isso não é apenas uma torre — murmurou Sophia, com a voz trêmula.
— É um lugar cruel. Brinca com nossas mentes… e se alimenta do que sobra delas — completou Hernán, sombrio.
Eu não conseguia desviar os olhos da porta fechada. Os gritos ainda pairavam no ar, mesmo depois de silenciarem. E o que veio depois… foi pior. Um silêncio pesado, sufocante.
Foi ali que entendi, com uma lucidez amarga: não haveria misericórdia. Não haveria justiça.
Se deixássemos, a torre sorriria diante da nossa esperança. E nos esmagaria com ela: como quem esmaga um inseto que ousou sonhar.
Fechei os punhos. Respirei fundo.
— Vamos descer…
E assim descemos. Sem palavras.
Com os gritos ainda pulsando sob a pele. E o pressentimento de que, lá embaixo, algo ainda nos esperava. Algo pior do que o que deixamos para trás.
Fim do Capítulo 34: O Banquete do Abismo.
Notas do Autor: salve galera, esses tempos está complicadíssimo de atualizar a novel, queimou um bocado de aparelhos aqui em casa incluindo meu PC, estou tentando resolver esse e outros problemas mas assim que possível retorno com mais consistência, talvez esse capítulo tenha alguns erros mas assim que possível revisarei novamente e removerei esta nota, indicando que está tudo de volta nos conformes, até lá espero que não esqueçam da Ashley e amigos ksksksk
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