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    Descemos em silêncio, cada passo ecoando como uma lembrança amarga do que deixamos para trás. Ninguém dizia nada, mas todos carregavam o peso dos gritos que ouvimos antes da porta selar o destino daqueles homens. Por mais que tentássemos não pensar naquilo, naquele momento era impossível esquecer.

    Logo à frente, uma nova inscrição entalhada na parede de pedra chamou nossa atenção. Dessa vez seu tom era mais enigmático do que ameaçador.

    “Aos que vierem depois: Todas as escolhas parecem brilhar como ouro… até que você perceba que não havia ouro algum.”

    Troquei um olhar com Sophia. Ela ergueu uma sobrancelha, mas não disse nada. Cratos apenas bufou, e seguimos.

    Quando atravessamos a porta sob o arco de pedra que levava para o próximo andar, fui tomada por uma sensação de desorientação.

    O espaço à nossa frente se estendia muito além do que qualquer outro andar que havíamos visto até então. O chão era rachado e coberto de marcas de batalha, a paisagem se estendia sobre colinas baixas e crateras fumegantes. A névoa pesada turvava a visão à distância, e o ar… o ar tinha um cheiro metálico, denso, como sangue seco misturado a ferrugem.

    Começamos a andar com cautela, tentando decifrar o que nos aguardava ali. Foi quando ouvimos o som. Passos pequenos, centenas deles, e então gritos agudos em línguas que não compreendíamos.

    Não demorou para vermos criaturas que vinham de todos os lados. De um lado, marchavam seres diminutos: um pouco maiores que uma criança humana, com armaduras de couro acinzentado bem ajustadas, escudos circulares e lanças finas. Tinham feições quase humanas, com olhos grandes e expressivos, cabelos cuidadosamente presos e pequenas capas vermelhas que tremulavam com o movimento. Seus movimentos eram coordenados, disciplinados. Suas vozes ordenadas lembravam cantos em coro.

    Do outro lado, surgia um exército de semblante mais selvagem. Criaturas que apesar de serem semelhantes em tamanho, sua aparência era mais grotesca. Suas peles eram acinzentadas, os dentes proeminentes e os olhos brilhavam em tons de âmbar. Vestiam-se peles mal costuradas, e empunhavam machadinhas e clavas. Em vez de uma marcha organizada, avançavam aos pulos e gritos, como se estivessem em êxtase com o caos.

    Ficamos paralisados entre os dois exércitos, como peças que alguém esqueceu de mover no tabuleiro. Foi então que um dos pequenos guerreiros do lado mais selvagem apontou em nossa direção e gritou algo que fez os outros pararem por um instante. Seus olhosarderam com fúria.

    — Acho que fomos confundidos com inimigos — disse Hernán, já puxando sua espada.

    Não houve tempo para negociação. Uma leva de criaturas selvagens partiu em nossa direção, rugindo como animais em caça. Nos espalhamos por instinto, formando um círculo improvisado tentando cobrir os flancos.

    Saquei a adaga da bainha e mantive uma postura defensiva, levantei a adaga a altura do peito e para minha surpresa… sua lâmina estava quebrada.

    — Mas o quê…?!

    — Droga, esquecemos de te avisar — disse Hernán, surgindo ao meu lado enquanto aparava com precisão algumas das criaturas que investiam contra mim. — Aquela luta contra o guardião foi demais para sua adaga. Ela já estava trincada em vários pontos… ainda me pergunto como você conseguiu lutar com ela. Quando você perdeu a consciência, a lâmina se partiu de vez.

    A adaga que Selene me deu quando deixamos Rivendrias…

    — Mas a sua espada é de uma qualidade absurda, ela não sofreu dano algum. — Continuou sem tirar os olhos dos inimigos.

    A espada dela… ela já havia me salvado mais de uma vez, vejo que mesmo de longe ela continua me guiando. Retirei a espada da bainha e me preparei para auxiliar no combate. Fiquei com a sensação clara de que a espada em minhas mãos era mais pesada do que da última vez que a empunhei, e mesmo com um pouco de dificuldade para manuseá-la conseguia me proteger.

    A batalha durou mais do que esperávamos. Foi uma luta caótica e tensa. As criaturas atacavam com ferocidade, porém careciam de técnica. Mesmo com a ajuda do outro exército que avançava com vigor em direção as criaturas, a sensação era que não pareciam ter fim, elas vinham aos montes, como enxames que pareciam brotar das colinas, dezenas de criaturas apareciam uma atrás da outra. Após algum tempo finalmente vencemos, mas não sem alguns arranhões e o cansaço nos dobrando os joelhos.

    Quando as criaturas restantes começaram a recuar, conseguimos ter um momento para recuperar o fôlego. O outro exército se aproximou sem levantar armas. Um deles, com uma armadura mais elaborada e traços delicados no rosto, ergueu uma bandeira improvisada em sinal de trégua. Ele falava em uma língua estranha, mas para nossa surpresa, uma espécie de tradução mágica ecoou em nossas mentes.

    — Vocês não são deles — disse o guerreiro. Sua voz soava suave, quase infantil. — Foram atacados por engano em nosso confronto. Venham conosco. Aqui, encontrarão abrigo. E talvez… um propósito.

    Troquei um olhar rápido com o grupo. Nenhum de nós respondeu de imediato, mas todos pareciam cansados o suficiente para aceitarem um momento de paz.

    Seguimos o exército pela trilha irregular, ladeada por colinas que pareciam esconder olhos atentos em meio à névoa. As criaturas marchavam em silêncio agora, quase solenes, como se nossa presença representasse mais do que um simples reforço. Um deles: o que havia falado conosco antes, guiava o grupo à frente, segurando a bandeira vermelha como uma tocha em meio à penumbra.

    Cratos andava ao meu lado, com a mão ainda repousando sobre o cabo do machado.

    — Eu não gosto disso — murmurou ele, encarando os arredores. — Algo parece errado…

    —Eles parecem diferentes… — respondi, tentando acreditar no que dizia. — Mas não podemos baixar a guarda.

    —Aparentemente são civilizados — completou Sophia, em tom neutro. — Mas isso não quer dizer muita coisa nesse lugar.

    O caminho nos levou até uma estrutura de pedra escura parcialmente enterrada numa encosta. Havia estandartes rubros pendurados ao vento, e pequenas torres de vigia onde outros soldados das criaturas mantinham olhos atentos.

    A entrada principal era protegida por portões de madeira espessa e adornos entalhados com símbolos circulares, quase artísticos. Quando nos aproximamos, os portões se abriram com lentidão cerimonial, revelando o que parecia um vilarejo murado dentro de uma fortaleza.

    As construções não eram muito mais altas do que nós. Um conjunto de residências circundava o que parecia ser a residência principal da fortaleza, que se destacava em meio as outras devido ao seu tamanho.

    Lá dentro, fomos recebidos com olhares curiosos, mas respeitosos. Havia crianças; ou o que pareciam ser crianças, brincando com bonecos de madeira, e outros soldados ao redor de uma fogueira baixa, entoando cantos e dançando. A base vibrava com uma estranha sensação de lar em meio ao caos daquele andar.

    Fomos conduzidos a um salão decorado com tapeçarias vermelhas e armas antigas presas às paredes. No centro, sobre uma plataforma de pedra polida, uma criatura de aparência mais velha nos aguardava. Seu rosto era coberto por marcas tribais e seus olhos, opacos, pareciam guardar décadas de exaustão.

    — Sejam bem-vindos à cidadela de Seromintos, lar do povo Salfos, filhos da pedra e da honra — disse, com a voz grave ecoando entre as colunas. — Eu sou Velkia, ancião desta fortaleza. E vejo que o destino lhes trouxe até nós no momento certo.

    Nos curvamos brevemente como forma de reverência. Foi Hernán quem falou primeiro:

    — O que está acontecendo aqui? Por que essa guerra?

    O ancião inspirou profundamente antes de responder.

    — Há ciclos incontáveis, travamos uma guerra sem fim contra os Resai, selvagens sem alma que querem tomar tudo que é nosso. Antes, tínhamos o dobro deste território, mas eles avançam, dia após dia. Já não temos mais guerreiros suficientes… E se perdermos a cidadela, não sobrará ninguém.

    Ele deu um passo à frente.

    — Se nos ajudarem a repelir a investida dos Resai, prometo que encontraremos para vocês o caminho para a saída. Nossos sábios sabem como identificar as passagens. Mas precisamos da vitória.

    Houve um silêncio breve. Eu sentia todos à minha volta ponderando a proposta. Cratos fechou os punhos. Hernán esfregou o cabelo, pensativo. Sophia estreitou os olhos em direção ao ancião.

    Fomos levados a um aposento reservado para discutirmos. Lá, longe dos ouvidos dos Salfos, sentamos sobre almofadas ásperas e deixamos o cansaço nos dominar por um instante.

    — O desafio desse andar deve ser derrotar os Resai — disse Hernán, convicto. — Faz sentido. Um exército inimigo, uma batalha que eles não conseguem vencer sem ajuda…

    —Parece… direto demais — retrucou Sophia. — Tudo nessa Torre insiste em brincar com nossos sentidos e intuições.

    — A informação que temos é de que eles precisam de ajuda — disse Cratos. — E nós precisamos encontrar uma saída. Temos força. Podemos dar conta, mas mantenham os olhos abertos.

    Todos olharam para mim, como se esperassem meu veredito. Eu queria dizer que sim. Que podíamos fazer isso. Mas algo me incomodava. Uma ponta de dúvida que crescia como uma farpa debaixo da pele.

    — Eu não sei… — murmurei. — E se esse não for o verdadeiro desafio? E se estivermos sendo levados a acreditar numa escolha que pode acabar ferrando tudo?

    Um silêncio incômodo caiu sobre o grupo. Todos pareciam considerar profundamente o que eu havia dito.

    Antes que pudéssemos continuar, uma confusão começou ao lado de fora, quando saímos para averiguar a situação, fomos pegos de surpresa. O ataque não veio com o estrondo de tambores ou gritos de guerra, mas com o som de uma flecha cortando o ar.

    Um dos vigias caiu da torre antes mesmo de poder gritar. Então tudo desabou em caos. Gritos. Passos apressados. O som metálico de armas sendo erguidas. As muralhas tremeram sob o impacto das investidas, e os Salfos correram por todos os lados, assumindo suas posições enquanto as portas principais da cidadela eram mantidas com estacas de ferro e correntes.

    — Eles chegaram! — gritou um dos soldados, os olhos arregalados. — Os Resai estão atacando a cidadela!

    A pilha de duvidas nos fizeram hesitar por um momento, mas não havia tempo para incertezas agora, Sophia puxou seu arco e começou a disparar flechas para obstruir a passagem dos Resai, Cratos pegou uma das estacas e reforçou o portão, Hernán ergueu vinhas para os Salfos subirem de volta as torres de vigilância, eu os segui, a adrenalina me empurrando apesar do nó que se formava em minha garganta.

    Do lado de fora, a batalha tomava forma como um pesadelo sem fim. Os Resai surgiam da névoa, as criaturas avançavam com tudo que tinham para derrubar o portão. Mas seus olhos… havia algo ali que me prendia. Não era apenas selvageria, era… medo?

    Combinamos nossos ataques com os dos Salfos, repelindo investidas e abrindo espaço onde podíamos. Mas algo estava errado. A maneira como os Resai lutavam: não havia ódio ali, apenas desespero.

    Em um dos flancos, vi Hernán duelando contra um deles. O Resai caiu de joelhos diante do dele, com as mãos abertas, sem arma alguma. Hernán ergueu a espada, pronto para o golpe final, mas eu vi algo que parecia não estar certo.

    — Espera! — gritei enquanto corria até eles.

    A criatura ergueu os olhos para nós. Tentava dizer algo. A boca se movia, mas nada saía. Ela então apontou para a própria garganta, depois para a boca, insistente. Seus olhos imploravam.

    — Ele… ele não quer lutar — murmurei. — Está tentando se comunicar.

    Hernán hesitou. Deu um passo para trás, confuso. E então; o som seco de uma flecha cortando o ar. O corpo da criatura se contorceu. Sangue jorrou de sua garganta. Ela tombou.

    Viramos rapidamente. Um soldado Salfos se aproximava, com o arco ainda em mãos.

    — Foi por pouco — disse ele, com um meio sorriso. — Essas criaturas são traiçoeiras. Tomem mais cuidado. Nunca hesitem.

    Ele passou por nós como se fosse apenas mais um dia normal.

    Eu encarei o corpo. O sangue escorria pelo chão, tingindo a terra de vermelho escuro. A névoa parecia mais espessa agora. A batalha terminou pouco depois. As tropas dos Resai recuaram ou caíram onde estavam. Fomos chamados de heróis pelos Salfos, aclamados por termos ajudado a conter mais um ataque.

    Mas o sabor da vitória era amargo.

    Nos reunimos perto de uma fogueira improvisada. Cratos limpava a lâmina, Hernán mantinha o olhar fixo no chão.

    — Aquilo… não foi certo — disse ele, por fim.

    — Não mesmo — respondi. — Aquela criatura parecia querer dizer algo a todo custo.

    — E se não forem monstros? E se a Torre estiver brincando conosco? – Hernán cerrou os punhos.

    Foi então que senti: Um cheiro espesso, queimado. Enjoativo. Me levantei de repente.

    — Vocês estão sentindo isso?

    — Fumaça — disse Cratos. — Vindo ao norte.

    Atravessei corredores e pátios até ver a claridade laranja iluminando a névoa. Me aproximei.

    E então vi.

    Os Salfos haviam reunido os corpos dos Resai; empilhados como madeira, e ateado fogo. Dançavam ao redor das chamas, entoando cânticos de vitória. Riam. Alguns atiravam mais óleo, como se aquilo fosse uma celebração.

    Os corpos eram engolidos nas chamas. Alguns gritos escaparam da pilha de corpos até o momento que já não podiam mais ser ouvidos.

    Fiquei ali, paralisada, incapaz de desviar o olhar… E pela primeira vez desde que entrei na Torre, tive medo de algo além de nossos inimigos.

    Fim do Capítulo 35: A Alvorada dos Condenados.

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