Capítulo 36: O Crepúsculo dos Inocentes.
O cheiro de carne queimada ainda estava no ar. Sentia a fumaça prender-se em meus cabelos, na pele, até mesmo no fundo da garganta. Tudo em mim parecia pesar mais do que deveria; as pernas, os olhos, o coração.
A névoa alaranjada começava a dissipar lentamente. Cada passo de volta ao salão dos Salfos soava abafado, como se o chão absorvesse até o som. Eu ainda ouvia os cânticos em minha mente, mesmo após o silêncio ter voltado. Um silêncio incômodo. Quase cúmplice.
No salão, fomos recepcionados com sorrisos largos. Um dos Salfos, adornado com colares feitos de pequenas presas e folhas trançadas, se aproximou com entusiasmo.
— Heróis! Heróis! — exclamou, com as mãos erguidas, como se esperasse que dançássemos junto a ele. — Venham, juntem-se a nós. Esta vitória também é de vocês!
Ninguém respondeu de imediato. Olhei ao redor e vi o desconforto nos olhos dos outros. Sophia desviou o olhar. Cratos cruzou os braços. Hernán, como eu, apenas observava.
— Agradecemos… mas estamos cansados — respondi, tentando soar neutra.
O Salfo hesitou. Seu sorriso perdeu um pouco do brilho. Seus olhos, antes calorosos, tornaram-se rígidos por um instante. Só por um instante.
— Claro — respondeu, curvando-se levemente. — Descansem. A guerra ainda não acabou, e precisamos de vocês fortes amanhã.
Seguimos para os aposentos preparados para nós. O lugar era espaçoso e bem estruturado, com esteiras de palha grossa, almofadas artesanais e mantas de um tecido leve e perfumado. Mas havia algo… errado.
Observei as marcas no chão, o desgaste das paredes, a forma como tudo parecia ter sido usado; não dias atrás, mas meses. Como se não fôssemos os primeiros a ocupar aquele espaço.
— Isso aqui não foi preparado agora — murmurou Sophia, correndo os dedos por uma marcação na parede. — Outros já estiveram aqui.
— Mas isso não faz sentido — disse Cratos. — Se outros aventureiros chegaram antes… por que essa guerra ainda continua?
O silêncio que se seguiu trouxe mais respostas do que qualquer palavra poderia. Hernán olhava fixamente para a porta. Como se algo lá fora ainda estivesse prestes a acontecer.
Pouco tempo depois, duas mulheres dos Salfos entraram trazendo cestos de frutas exóticas e pratos fumegantes. A carne tinha um aroma forte, quase adocicado. As frutas brilhavam como se tivessem sido enceradas. Agradecemos com acenos, mas poucos se animaram a comer.
Eu e Hernán sequer tocamos na comida.
— Vocês não vão experimentar? — perguntou um dos mais jovens do grupo, já na metade do prato. — Eu estava faminto depois de tanta ação.
— Faminto é? Perdi completamente a fome… — murmurou Hernán.
O grupo se dividia silenciosamente entre os que ainda acreditavam que tudo fazia parte do desafio, e os que começavam a duvidar até da luz do fogo.
Mais tarde, tentamos descansar. Deitei-me, mas o sono não vinha. A escuridão do quarto parecia pulsar. A cada vez que fechava os olhos, via as chamas. Ouvia os gritos.
Quando finalmente adormeci, fui arrancada do sono por um leve toque no ombro.
Abri os olhos devagar. Hernán estava agachado ao meu lado, fazendo sinal para que eu não fizesse barulho. Seus olhos estavam mais atentos que nunca.
Levantei-me em silêncio, pegando meu equipamento. O frio da noite me atravessou quando deixamos os aposentos. Caminhamos até um pátio lateral, onde a névoa era menos densa.
— O que está acontecendo? — sussurrei.
— Nada disso está certo — respondeu ele. — Aqueles Salfos… a forma como agem, o jeito que nos tratam… — fez uma pausa. — Não consigo me livrar da sensação de que estamos sendo manipulados. E eu preciso de alguém que esteja vendo a mesma coisa que eu.
Olhei para ele. Ele possuía olhar de alguém que carregava um plano em silêncio há um bom tempo.
— E o que você pretende fazer?
Ele hesitou, depois falou com firmeza:
— Vamos encontrar os Resai…
Fiquei com os olhos arregalados por um momento, Hernán realmente acreditava que não estávamos seguros ali.
A escuridão da noite não nos acolhia: ela nos observava. Os Salfos mantinham vigias espalhados pelo vilarejo. Vultos imóveis nas sombras, olhos atentos como se o próprio sono fosse um inimigo. Espiávamos pelas frestas até que um intervalo entre as rondas nos permitiu agir.
Naquele momento a névoa era nossa aliada. Espessa, úmida, sufocante. O mundo reduzia-se a alguns passos à frente, envolto em branco. Nos movíamos como sombras entre sombras.
Nos aproximamos de um dos muros laterais, não muito alto, feito de pedras entalhadas com alguns símbolos antigos. Hernán ajoelhou-se e tocou o solo. As vinhas brotaram como serpentes silenciosas, entrelaçando-se até formar uma escada natural.
— Vai — Hernán sussurrou.
Subi, sentindo as folhas úmidas sob os dedos. Do outro lado, rolei com cuidado e caí em silêncio sobre a terra fria. Hernán me alcançou logo em seguida. Ficamos agachados por um momento, escutando os arredores. Nada além do som distante de algum instrumento rítmico vindo da celebração… Aquilo ainda acontecia.
Quando nos afastamos o suficiente, Hernán tirou algo da mochila: uma pequena lanterna de metal escurecido com um cristal amarelo preso no centro. Assim que girou a base, a pedra brilhou com uma luz quente, suave, e a escuridão cedeu alguns metros de caminho à nossa frente.
Andamos em silêncio. A névoa começava a rarear conforme deixávamos o território dos Salfos para trás. Nossos passos sobre a terra úmida eram abafados, mas não havia como afastar a sensação de que cada movimento era observado por olhos invisíveis.
Logo chegamos ao campo onde o andar havia começado. A batalha, os gritos. As mortes. O chão ainda carregava marcas da guerra travada: pequenas pegadas, manchas escuras que o tempo não teve tempo de apagar.
Hernán se ajoelhou mais uma vez. Tocou o solo com os dedos, os olhos fechados, como se escutasse um sussurro vindo da própria terra.
— Eles vieram por aqui — disse, apontando com a cabeça para nordeste. — As pegadas são mais leves. Estavam em retirada. Mas há marcas de rodas… eles levaram feridos.
— Está certo disso? — perguntei.
— Confie em mim.
Seguimos em silêncio, descendo por um declive coberto de vegetação rasteira. A lanterna revelava pequenas flores cerradas pela noite e galhos que se enroscavam nos tornozelos. Com o tempo, a névoa se dissolveu por completo. O mundo parecia mais real agora… e, de certo modo, mais perigoso.
Não demorou muito até que víssemos ao longe o brilho de tochas. Um ponto dourado tremeluzente na escuridão.
— Ali — murmurei.
Nos aproximamos com cuidado. A vegetação era mais densa, e nos permitia observar sem sermos vistos. Um acampamento rudimentar estava montado ao pé de uma encosta. Cercas de madeira improvisadas, barracas costuradas de couro e tecido, pequenos soldados em constante movimentação. Mas havia algo diferente neles. Nos olhos, nos gestos.
Não era selvageria. Era medo. E, mais que isso… Preocupação.
Hernán se virou para mim com a expressão de quem está prestes a tomar uma decisão arriscada.
— Vamos descobrir a verdade.
— Estamos fazendo a coisa certa? — perguntei em voz baixa, observando o acampamento à distância.
O silêncio de Hernán durou alguns segundos, até ele responder com os olhos ainda fixos nas sombras da cerca de estacas.
— Não sei. Mas lembro daquele Resai tentando se comunicar com a gente. Lembra? Ele não atacou. Só… tentou dizer algo. E morreu com uma flecha cravada nas costas.
Assenti, sentindo o estômago revirar.
Foi então que os vimos. Dois Resai mais jovens, sem armaduras ou armas, do lado de fora do acampamento. Carregavam cestos e pareciam colher ervas que cresciam aos pés das árvores. Seus gestos eram pacíficos, concentrados. Não pareciam guerreiros.
Nos aproximamos com cautela, pisando com cuidado entre as raízes. Hernán foi o primeiro a se expor, erguendo ambas as mãos em sinal de paz.
— Não queremos machucar vocês.
Os Resai se assustaram com nossa presença súbita. Um deles largou o cesto, e as ervas se espalharam pelo chão. Ambos deram alguns passos para trás, fazendo sons guturais, com os olhos arregalados.
Pensando rápido, Hernán ajoelhou-se e pousou a palma no solo. De sua mão brotaram pequenas ervas medicinais: flores de pétalas azuladas que cresciam em espirais, emitindo um leve brilho esverdeado.
Os dois Resai observaram aquilo com olhos maravilhados. Aproximaram-se aos poucos, agachando-se para recolher as ervas criadas. Trocaram alguns gestos entre si que não compreendíamos, e então um deles tirou um pedaço de couro curtido e uma pedra negra semelhante a carvão. Escreveu com traços rudimentares, mas compreensíveis:
“Guerreiro planta bom. Resai precisa curar amigos.”
Li em silêncio e depois encarei Hernán. Ele não disse nada, apenas assentiu. O mesmo pensamento cruzava nossas mentes.
— Levem-nos até o líder de vocês — disse ele, apontando para frente com calma. — Podemos ajudar.
Os Resai hesitaram por um instante, então fizeram um gesto com a mão, chamando-nos para segui-los.
Nos aproximamos da entrada do acampamento. Quando os guardas nos viram, um deles ergueu um bastão e emitiu um som alto, gutural, um alerta. Em segundos, fomos cercados. Clavas e machadinhas apontadas para nós, olhos duros e cerrados. O medo apertou meu peito, mas levantei as mãos devagar, assim como Hernán.
— Não queremos lutar! — disse ele.
Os dois Resai que nos guiavam começaram a gesticular freneticamente, tentando se comunicar com os guardas. O mais jovem parecia implorar por algo. O guarda respondeu com sinais ríspidos, quase agressivos. Mas então os jovens mostraram o cesto cheio de ervas, apontaram para Hernán e fizeram mais sinais.
O silêncio se seguiu por alguns segundos que pareceram eternos. O guarda soltou outro daqueles sons guturais, desta vez mais baixo. Os outros Resai baixaram as armas.
Os dois jovens fizeram um gesto com a mão, nos chamando para entrar.
Cruzamos a entrada e fomos tomados por uma nova realidade. Nada ali lembrava a comemoração dos Salfos. O ar era pesado, saturado por um cheiro de sangue seco, fumaça e ervas amargas.
Havia dezenas de tendas espalhadas. Dentro de muitas delas, Resai estavam deitados, feridos. Alguns gemiam, outros estavam desacordados. Vimos curandeiros improvisando bandagens, crianças ajudando a carregar água. Os olhos que nos olhavam não eram selvagens. Eram exaustos.
E pela primeira vez… vi dor onde nos disseram que só havia ira.
Ficamos ali, no meio daquele acampamento estranho, observando em silêncio.
E eu percebi… Talvez estivéssemos no lado errado desde o começo.
Talvez a guerra não fosse sobre certo ou errado, civilizado ou bárbaro.
Talvez… fosse apenas sobre quem conta a história primeiro.
Fim do Capítulo 36: O Crepúsculo dos Inocentes.
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