Capítulo 37: O Fardo do Silêncio.
O cheiro de sangue seco se misturava ao das ervas esmagadas. E, pela primeira vez desde que pisei naquele andar, não havia névoa entre meus olhos e a verdade.
Eles estavam em toda parte; corpos de criaturas feridas, deitadas sobre panos rasgados, algumas cobertas por mantos escuros, outras gemendo baixinho como se até a dor temesse fazer barulho demais. O que antes haviam chamado de “selvageria” agora me parecia apenas… sobrevivência. Uma mãe Resai tentava alimentar uma criança que tremia. Um ancião tinha as pernas enfaixadas com folhas que exalavam um aroma amargo. Nenhum deles nos olhava com raiva, mal tinham tempo para isso.
Caminhei entre as tendas em silêncio, sentindo Hernán ao meu lado, calado também. Nossos olhos se cruzaram por um momento, e não foi preciso dizer nada. A pergunta estava em nossos rostos, como poeira grudada à pele: no meio dessa guerra, quem é o monstro?
Hernán me entregou um punhado das ervas recém-colhidas. Enquanto ele começava a amassar as folhas com as mãos, extravasando o aroma amargo que já impregnava o ar ao redor, eu o imitei em silêncio. Em poucos segundos, nos abaixamos lado a lado diante de um dos Resai feridos: uma criatura de pelagem acinzentada, com os olhos semicerrados e a respiração irregular.
Ele recuou, assustado, como se esperasse que outra flecha o atingisse.
— Ei… — sussurrei, com a mão espalmada. — Não estamos aqui para machucar vocês.
Apliquei a mistura sobre o ferimento profundo em seu braço, onde uma flecha havia atravessado a carne. O Resai se encolheu ao toque, mas em seguida, seus olhos se arregalaram. A pele começou a se fechar numa velocidade antinatural, e o sangue cessou de escorrer. A expressão marcada pela dor cedeu espaço a algo que eu não via desde que pisamos naquele acampamento: alívio.
Por um instante, ele apenas me olhou; olhos grandes, úmidos, quase humanos, antes de apontar para uma fileira de tendas, onde outros Resai se contorciam em sofrimento. Seus gestos eram claros. Ajude-os.
— Isso é… totalmente diferente do que esperávamos — murmurou Hernán ao meu lado, fazendo brotar mais ervas com um gesto do pulso.
— É… — respondi, enquanto me movia para o próximo ferido. — Pela primeira vez… sinto que estou fazendo algo certo aqui.
Começamos a nos mover de tenda em tenda, tratando dos Resai um a um. Eles ainda hesitavam, mas não fugiam. Alguns seguravam nossos braços com delicadeza, agradecendo com olhares silenciosos e gestos humildes. Eu não sabia seus nomes. Eles não sabiam os nossos. Mas algo se erguia ali: uma ponte trêmula, frágil, feita de dor e esperança.
Foi então que uma voz, ríspida como lâmina, cortou o ar:
— Prendam eles!
Virei-me de súbito. Um Resai de idade avançada: o mais velho que havíamos visto. Apontava para nós com uma clava curta. Atrás dele, dezenas de guerreiros armados surgiam de entre as tendas, formando um semicírculo ao nosso redor.
— Eles são humanos — vociferou o ancião. — Estão nos enganando. Vieram ajudar os malditos Salfos! Não se deixem enganar!
Antes que eu pudesse reagir, os Resai que havíamos curado avançaram. Três deles se colocaram entre nós e os soldados, braços abertos, gesticulando freneticamente em súplica. Um deles caiu de joelhos, apontando para o braço onde a flecha havia atravessado. Outro levantou o cesto de ervas como se fosse uma oferenda.
A expressão do ancião vacilou por um segundo. Não o suficiente para que abaixasse a arma. Mas algo em seus olhos mudou: dúvida.
E ali, naquela dúvida, eu soube que a guerra ainda não tinha nos engolido por completo.
O silêncio que se seguiu foi espesso como a névoa. Os olhos do ancião se estreitaram ao nos encarar: não como quem vê inimigos, mas como quem vê mais um possível erro. Ou mais uma ameaça.
— Por que estão aqui? — ele perguntou, a voz marcada pelo tempo e por algo mais profundo. Sofrimento.
Hernán deu um passo à frente, as mãos à vista, o tom calmo.
— Queremos ouvir. Entender o lado de vocês. O que aconteceu entre os Resai e os Salfos?
O ancião permaneceu imóvel por um instante que pareceu longo demais, como se decidisse ali se valíamos seu fôlego. Finalmente, seus olhos se voltaram para mim, como se buscassem algo: talvez mentira, talvez esperança.
— E por que deveríamos confiar em vocês?
Hernán hesitou. Eu não. Dei um passo também, sentindo o peso daquelas palavras dentro do peito.
— Porque a verdade… se a verdade foi a que nos contaram, me recuso a acreditar em uma verdade tão cruel.
O ancião respirou fundo, ponderando sobre a minha sinceridade, após um tempo calado ele abaixou a clava e começou a falar.
— Antes de tudo isso, antes de toda fúria, da dor, da maldição… éramos um povo de paz. Vivíamos da terra. Das folhas, dos frutos, da água limpa. Não nos importávamos com riquezas, nem com aparência. O povo Resai via beleza na simplicidade… e isso era suficiente.
Ele olhou em volta, para os poucos Resai que o cercavam, quase todos quietos, murmurando entre si em sons ininteligíveis.
— Então… os Salfos chegaram. Túnicas brancas, vozes suaves, sorrisos fáceis. Diziam vir em paz, e vieram com presentes. Aceitamos. Eles dançaram com a gente. Comeram do nosso návolu, um fruto sagrado branco como névoa matinal, de gosto doce e rareza encantadora. Pareciam maravilhados com tudo. E nós, ingênuos, pensamos que aquilo era amizade.
A imagem deles me veio à mente com clareza, os Salfos e Resai, dançando em torno das fogueiras. Um contraste belo… e agora, perturbador.
— No fim da celebração, uma criança tropeçou. Caiu e ralou o joelho. Foi algo bobo, comum, mas… pouco sangue escorreu. Vermelho. Vivo. Forte. Alguns Salfos se aproximaram, e eu me lembro de como olharam para aquilo. Com um brilho estranho nos olhos. Algo que eu, na época, não soube identificar. Curiosidade? Fascínio? Hoje… entendo. Era desejo.
Meu estômago se revirou. Olhei para Hernán, que estava imóvel, o maxilar travado.
— Na manhã seguinte — continuou o ancião, a voz agora mais baixa — um grupo de Resai veio até mim. Disseram que suas crianças não voltaram para casa. Isso nunca acontecia. Nós éramos livres para sair e explirar a natureza, mas elas sabiam quando era hora de retornar. E seus pais… seus pais sabiam que havia algo errado. Então reunimos um grupo e seguimos qualquer pista que pudéssemos encontrar. Marcas no solo. Galhos quebrados. Tudo isso nos levou à cidadela dos Salfos.
Ele franziu a testa, como se os detalhes ainda ferissem.
— Achei que talvez tivessem se encantado com o brilho das armaduras… ou com os campos onde cultivavam uma planta branca e fibrosa parecida com o návolu. Fui ao portão. Disse que procurávamos nossas crianças e queríamos saber se haviam sido vistas. Eles nos receberam com lanças. Disseram que estavam em ritual sagrado. Que não podiam receber visitas no momento. Viramos as costas, e eu senti que algo estava errado… mas foi aí que ouvimos.
Ele fechou os olhos por um instante.
— O grito. “Socorro!” A voz de Lirna, filha da minha irmã. Uma só palavra. Mas foi tudo.
— E o que aconteceu? — sussurrei, mesmo sabendo que não queria ouvir a resposta.
— Arrombamos os portões. Invadimos. Corremos. Mas… já era tarde. O que vimos naquele dia assimbra meus pensamentos até hoje. As crianças estavam penduradas de cabeça para baixo, sangrando lentamente sobre bacias metálicas. O sangue escorria, coletado como se fosse um ingrediente raro. Algumas ainda estavam vivas. Outras… não se moviam.
Minha garganta apertou. Quis dizer algo, mas nenhuma palavra conseguiu sair.
— E havia mais — disse ele, os olhos fixos nos meus. — Tecidos. Pendurados para secar. Tintos com o sangue delas. Vermelhos… belos, como os olhos dos Salfos achavam que deveriam ser. Era isso. Eles viram a cor daquele sangue e acharam bonito… tudo para suas malditas decorações!
Não havia mais ar suficiente ali. Senti o mundo girar, e por um instante só o som da minha própria respiração preenchia meus ouvidos. Hernán desviou o olhar, as mãos cerradas.
— Aquelas bandeiras vermelhas, são um sinal que a primeira gota de sangue derradada nessa guerra ainda não secou… — murmurou ele.
O ancião seguiu, a expressão endurecida.
— Não apenas por vingança. Por amor. Por raiva. Por desespero. Lutamos para salvar o que restava. E perdemos muito… só descansaremos quando o último dos Salfos cair.
Um silêncio se fez. O mesmo silêncio angustiante de antes. Mas agora… eu entendia o que havia por trás dele.
— E por que só o senhor consegue falar? — perguntei, finalmente dando voz à pergunta que me incomodava desde que chegamos.
O ancião suspirou, tocando o colar que usava. Um amuleto feito de madeira antiga e pedra escura, polido pelo tempo.
— Isso… é o que me protegeu. Quando percebemos que os outros povos não vinham, que nossos pedidos de ajuda não eram ouvidos, entendemos. Os Salfos haviam lançado uma maldição. Para nos isolar. Para que nossas vozes… não fossem mais compreendidas.
Meus olhos se arregalaram.
— Eles selaram nossa voz. Apenas murmúrios escapavam, ruídos sem forma. Apenas eu fui poupado. Acredito que este colar que herdei do lider anterior me protegeu do feitiço. É graçad a isso que ainda posso contar essa história.
Olhei em volta, para os Resai que nos rodeavam. Os olhos cheios de dor, de desconfiança, de palavras que jamais poderiam dizer. E então voltei a encarar o ancião.
— Eu… sinto muito — murmurei, embora soubesse que isso não bastava. — Obrigada por confiar em contar isso. Mesmo sem ter razão pra confiar.
Ele não respondeu de imediato. Apenas me encarou com olhos cheios de séculos. Então, disse:
— Uma coisa que aprendi com os Salfos é que não podemos confiar em palavras… se querem provar que não são como eles… então me mostrem.
E com isso, ele se virou, como se já tivesse dito o suficiente.
Mas dentro de mim, algo mudava. A história dele agora corria em meu sangue. E se dependesse de mim, ela não terminaria assim.
O ancião deu alguns passos em minha direção. A raiva em sua voz havia cedido espaço a um pesar mais contido, e quando ele se ajoelhou ao lado dos feridos, percebi que suas mãos tremiam não de medo, mas de preocupação genuína. Observou os Resai caídos, feridos, fracos. Um deles sussurrava algo entre os lábios, tentando formar palavras que não saíam. Mais uma vez, aquele silêncio dolorido. E ainda assim… o ancião cuidava de cada um deles com o cuidado de um pai.
Meus olhos se perderam por um instante na cena. Era difícil entender como um povo tão pequeno conseguia carregar um fardo tão grande. A revelação ainda pesava em mim. A maldição, os gritos das crianças, o sangue transformado em tinta… aquilo queimava em meus pensamentos.
E no meio de tudo, algo mais; o silêncio deles agora fazia sentido. Era um silêncio forçado. Imposto. Como alguém que grita sob a água e nunca é ouvido. E pensar que, durante todo esse tempo, eles viveram sem poder contar sua própria história.
— Ashley… — chamou Hernán, me despertando.
Virei-me para ele e vi seus olhos fixos no meu pulso.
— O que é aquilo… que está brilhando?
Olhei instintivamente e… prendi a respiração. O bracelete. Aquele que Daniel me deu em Rivendrias antes de eu partir. Um presente simples à primeira vista: couro escuro, entrelaçado com uma pedra central. Só que agora… a pedra pulsava. Uma luz suave, como se algo dentro dela tivesse despertado.
— Eu… não sei — murmurei, surpresa.
Foi então que o colar do ancião começou a vibrar com intensidade. Ele se endireitou num pulo, os olhos arregalados, e apontou para mim.
— O que estão tramando?! — sua voz transbordava fúria e medo. — O colar… ele nunca reagiu assim! Estão tentando nos enganar?! Querem nos amaldiçoar de novo?!
— Não! — ergui as mãos, instintivamente. — Eu não sei o que está acontecendo! Eu juro!
Mas antes que qualquer explicação fosse possível, uma onda de luz se expandiu ao nosso redor. Como uma explosão sem som. Tocou cada centímetro do acampamento e atravessou o chão como névoa viva. Todos foram jogados para trás levemente, como se um vento os tivesse empurrado por dentro. Minha visão se embaralhou. Tentei piscar, mas não enxergava com clareza. Apenas uma luz que dançava por trás das pálpebras.
E então… silêncio. De novo.
Mas dessa vez… era diferente.
— O que foi isso? — ouvi alguém dizer. Em voz alta.
Virei-me, tonta, e vi uma jovem Resai de pé, tocando os próprios lábios, como se não acreditasse no que acabara de sair deles. Mais vozes se seguiram. Espantadas. Curiosas. Emocionadas.
— Eu… estou falando?
— Estamos… estamos falando! Eu consigo falar!
As expressões ao redor se transformavam diante dos meus olhos: da confusão à descrença. Da descrença à alegria. A comoção tomou o acampamento como fogo em palha seca. Risos, lágrimas, gritos de nomes. Um coro de palavras guardadas por anos ecoando pelo vale.
— O que… o que você fez?! — a voz do ancião soou, trêmula.
Balancei a cabeça, o coração acelerado.
— Eu não sei! Eu juro! Eu não fiz nada!
— Mas fez — ele disse, e sua voz já não era de acusação, mas de espanto. — O colar… e seu bracelete… eles brilharam juntos. Algo se conectou. Algo foi quebrado. E nós… nós estamos livres.
Ele olhou para mim com olhos úmidos, como se visse um milagre andando de pé.
— Você… de alguma forma, livrou meu povo. Eu… eu agradeço!
— Mas eu não entendo — falei, ainda confusa. — Como?
Hernán me puxou de lado. Seu olhar estava mais sério do que o de costume.
— Você não me disse que possuía um artefato capaz de ampliar o efeito de outro.
— Eu não tenho. Pelo menos… não que eu soubesse. Daniel só disse que era um presente. Uma lembrança de Rivendrias e de nossa amizade.
— Esse bracelete é mais do que uma lembrança. Ele reagiu ao colar do ancião, Ashley. O que quer que seja… pode ser chave para coisas maiores.
Permaneci em silêncio, olhando para o bracelete em meu pulso. A luz já havia se apagado, mas eu ainda sentia seu calor. Algo havia acontecido ali. Algo impossível de explicar, mas real demais para ignorar.
Enquanto os Resai celebravam, enquanto lágrimas e vozes enchiam o ar, eu e Hernán nos afastamos um pouco, caminhando até uma das tendas.
— Estamos no caminho certo — ele disse. — Eu sinto isso.
— É… — respondi, ainda com os olhos no bracelete. — Talvez este sétimo andar seja mais do que apenas um desafio.
E em silêncio, caminhei ao lado dele.
***
Acordei com a luz suave atravessando as cortinas finas do aposento. O aroma das flores brancas que os Salfos espalhavam por todos os cantos, ainda pairava no ar. Me espreguicei, sentindo o conforto das almofadas sob o corpo diferente do chão duro com esteiras, aquilo quase parecia luxo.
Mas, ao olhar ao redor, franzi a testa.
— Ué… cadê a Ashley? — murmurei, notando o espaço vazio ao meu lado.
Hernán também não estava.
Me levantei com calma e fui até onde Cratos terminava de calçar as botas. Ele coçava os cabelos bagunçados, ainda meio sonolento.
— Bom dia, Cratos. Você viu a Ashley e o Hernán?
Ele bufou, ajeitando a ombreira.
— Bom dia Sophia, não os vi — seguiu. Mas ontem à noite os dois estavam com uma cara esquisita… inquietos, sei lá. Aposto que estão aprontando alguma coisa.
Cruzei os braços, arqueando uma sobrancelha.
— Você acha?
— Não sei, mas eles devem estar em algum ritual maluco desses baixotes.
Dei uma risada curta, mas por dentro algo se remexia. Talvez fosse só uma sensação boba. Talvez… não.
Fiquei alguns segundos parada, olhando a porta entreaberta que levava ao pátio da cidadela. A brisa entrava leve, como se nada estivesse errado. Mas meu coração, mesmo sem razão aparente, já começava a bater diferente.
Fim do Capítulo 37: O Fardo do Silêncio.
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