Capítulo 40: A Primeira e a Última Gota.
O grito do ancião dos Salfos cortou o ar como uma lâmina.
— Ataquem! Destruam tudo!
E então, o inferno se abriu diante de nós.
Estávamos firmes na entrada do acampamento Resai, mas eu sentia o chão vibrar com cada passo do exército inimigo que descia a colina; uma maré carmesim, com escudos erguidos e olhos injetados de ódio. As catapultas começaram o estrondo. Rochas do tamanho de bestas voavam pelo céu opaco, girando como presságios.
— Sophia! As rochas! — gritou Hernán, já em posição.
Ela nem hesitou. Do seu lado, vi sua mão girar com precisão, o arco já tensionado com flechas de eletricidade.
Três disparos geraram três explosões no céu. As rochas se despedaçaram em faíscas e poeira antes que pudessem nos alcançar. Os fragmentos caíam a metros da muralha, inúteis. Mas os guerreiros Salfos não paravam.
Hernán avançou, espada em mãos, mas o ancião Resai ergueu o punho e bradou com uma voz que reverberou como trovão entre as tendas.
— É chegada a hora. Pelo nosso povo, por nossos filhos… avancem!
E então eles vieram. Saltando por cima das muralhas, os Resai se lançaram à luta com fúria. Aquela visão me tirou o fôlego; dezenas, centenas deles, armados com ferramentas rústicas, machadinhas de pedra e uma coragem que não cabia no peito. Eles gritavam. Em voz alta, clara… e com determinação.
— Desde quando… eles sabem falar? — Cratos murmurou ao meu lado, os olhos arregalados.
— É uma longa história — respondi, sentindo o coração disparar — mas agora… agora eles voltaram a ter uma chance.
Hernán se uniu à linha de frente como um vendaval. Cada golpe de sua lâmina tombava um Salfo. Vi corpos caindo como marionetes partidas, enquanto a poeira da luta envolvia tudo numa dança brutal. Ele era uma sombra em movimento, leve, mas devastador.
Fiz menção de correr para junto dele, mas Cratos me segurou pelo braço.
— Você e Sophia ficam. Protejam o acampamento. Se algum deles passar por nós, não podemos arriscar os Resai que estão abrigados.
Assenti, cada um deveria cumprir seu papel para conseguirmos sair dessa confusão. Ao meu lado, Sophia mantinha o arco pronto, os olhos atentos. Nos entreolhamos e mesmo sem dizer nada o pensamento era nítido: a luta tinha começado, e nós protegeríamos o que fosse preciso.
Ao longe, o ancião dos Salfos gritava mais ordens, mas algo havia mudado em sua voz… Desespero, como se as coisas não estivessem saindo como planejado.
O som do aço contra o aço se espalhou como um trovão constante. O campo à frente do acampamento era uma colisão de vontades; lanças e escudos quebrando, gritos rasgando o ar e os Salfos caindo diante da fúria de um povo que sofreu por tanto tempo.
Do topo das muralhas, vi Hernán girar no ar, aterrissar e cortar dois inimigos em um único movimento fluido. A espada dele parecia viva, acompanhando sua respiração, como se a raiva acumulada tivesse virado parte do fio. Um Salfo tentou acertá-lo pelas costas, mas um dos Resai interceptou o golpe com o próprio corpo e rugiu antes de cravar os dentes no pescoço do inimigo. A cena me tirou o fôlego por um instante.
— Eles… eles não estão apenas lutando. Estão dando suas vidas para acabar com essa guerra! — murmurei, sentindo a pele arrepiar.
Cratos também se lançou na batalha como um gigante furioso. Com cada passo, o chão tremia. Seu machado desarmava os ataques e esmagava armaduras como se fossem cascas secas. Os Salfos tentavam cercá-lo, mas era como lutar contra um furacão em chamas, nada que se aproximasse saía intacto.
— Algo passou pelo flanco leste! — gritou Sophia.
Virei-me a tempo de ver dois Salfos avançando em direção às tendas. Corri, puxando minha espada e me jogando na frente deles. Eles riram, como se eu fosse apenas mais uma garota. O riso morreu quando a lâmina riscou o ar e acertou o primeiro no ombro, derrubando-o. O outro tentou reagir, mas Sophia disparou uma flecha elétrica que o fez convulsionar e cair de joelhos.
— Fique atenta! — ela gritou, preparando a próxima flecha. — Eles estão tentando capturar reféns!
— Eles não vão passar por aqui — respondi, girando a lâmina nas mãos, respirando fundo.
Meus braços já pesavam, mas minha vontade não fraquejava.
O céu estava tingido de fumaça, o som de batalha ecoava até onde a névoa alcançava, e por um instante, pensei ouvir o próprio mundo chorar. As vozes dos Resai se misturavam aos gritos de guerra dos Salfos. Mas diferente da primeira vez que os vimos lutando, agora posso entender o que queriam dizer esse tempo todo.
— Por nossos filhos!
— Pelo sangue derramado!
— Por nosso povo!
E então algo quebrou dentro de mim. Aquela luta era mais do que um embate entre dois povos. Era o grito sufocado de quem foi silenciado. A última chance de mostrar ao mundo que os Resai não eram selvagens: eram sobreviventes.
Olhando para frente, vi o ancião dos Salfos, de pé entre seus soldados, o rosto contorcido, os olhos arregalados. Ele não esperava resistência. Não assim. Ele havia apostado no medo. E agora via um povo que não tinha mais nada a perder.
— Precisamos fazer algo para impedir que eles avançem — gritei para Sophia.
— Então faremos — ela respondeu com firmeza, e disparou uma flecha que explodiu no meio de um grupo de inimigos, abrindo caminho entre o caos.
O campo de batalha parecia respirar em agonia. O chão já não era mais visível sob a mistura de terra e sangue, as armas desgastadas, as forças no limite. Cada golpe que trocávamos com os Salfos parecia arrancar um pedaço da nossa alma; e ainda assim, resistíamos.
Hernán e Cratos continuavam na linha de frente, como muralhas prestes a ceder, mas que se recusavam a cair. Vi Hernán tropeçar por um instante, o suor escorrendo da testa, o peito arfando. Cratos rugiu, afastando dois inimigos com o machado, mas sua respiração também já era irregular. Eles estavam exaustos.
Do alto da muralha de estacas, Sophia disparava flechas de eletricidade com precisão. Ela atingiu cada catapulta explodindo-as em fagulhas e estilhaços. Ela era a única coisa que impedia que o acampamento fosse reduzido a escombros. Eu me mantinha firme, a espada em minhas mãos, derrubando qualquer inimigo que ousasse ultrapassar nossas defesas. Mas o número deles começava a minguar… e o nosso apesar de algumas baixas se mantinha firme.
Foi então que aquele momento tomou forma: como se o tempo desacelerasse.
O ancião dos Salfos estava encurralado. Cercado pelos corpos dos seus homens, olhos arregalados, expressão em fúria. Hernán avançou com os olhos em brasa, erguendo a espada.
— Você vai pagar… Por tudo. Pelos aventureiros, pelos Resai. Pelos que morreram sem saber a verdade.
Mas antes que ele pudesse dar mais um passo, a voz rouca e firme do ancião Resai cortou o ar:
— Hernán.
Ele parou, virando-se.
— Deixe isso comigo.
O ancião Resai atravessou o campo com uma calma estranha, como se todo aquele caos ao redor não o afetasse. Os poucos Salfos remanescentes tentaram bloqueá-lo, mas ele os derrubou sem hesitar. Sua machadinha girava como se fosse extensão do seu corpo, e o som do impacto era seco, decisivo.
Quando os dois anciões finalmente se enfrentaram, a tensão no ar se tornou insuportável.
— Finalmente nos encontramos — disse o ancião Resai, o olhar fixo como pedra. — Aquele que causou toda a desgraça entre os povos da floresta.
— Não causei nada — rosnou o ancião dos Salfos. — Errado está quem se opõe à ordem. À pureza. À arte que extraímos daqueles… sacos de tinta.
Mordi os lábios. A forma como ele falava dos Resai como objetos, como coisas, me revoltou de um jeito que nunca senti antes.
— Você amaldiçoou meu povo. Matou nossas crianças. Pintou suas vestes com nosso sangue — retrucou o ancião Resai. — E mesmo agora, chama isso de puro?
— E agora, vejo que a maldição se quebrou — cuspiu o Salfo. — E os malditos voltaram a falar demais.
A tensão explodiu em movimento.
— Vamos acabar com isso de uma vez por todas! — gritou o ancião Resai, e partiu para cima do rival com a machadinha em punho, o grito de cada Resai ecoando com ele.
O ancião dos Salfos pegou uma lança caída e a ergueu para se defender.
O impacto entre os dois fez o chão vibrar. Era uma dança violenta entre o passado e o presente. O machado do ancião Resai girava com precisão ancestral, como se cada golpe carregasse o peso de gerações caladas. A lança do Salfo se movia com frieza e estratégia, tentando manter a distância, perfurar, desestabilizar.
Hernán cerrou os punhos.
Eu e Sophia nos aproximamos também, os olhos atentos.
— A luta deles marcará o fim dessa guerra. — disse com firmeza.
Cratos apenas observava, braços cruzados, mas havia um brilho estranho em seu olhar: respeito, talvez?
O machado cortou o ar, arrancando um pedaço do manto do Salfo. A lança respondeu com um estocada rápida, rasgando a lateral do ancião Resai. Ele cambaleou, mas rugiu, girando o corpo e acertando o ombro do inimigo com a base da arma, fazendo-o cair de joelhos. O Salfo gritou, levantou-se e o empurrou para longe, mas ambos sangravam agora.
A batalha em volta parecia silenciar por um instante, como se o aguardassem o desfecho.
Eu sentia o coração martelar contra o peito.
A última página daquela história sangrenta estava sendo escrita bem diante de nossos olhos.
Ambos sangravam. Ambos cambaleavam. Mas enquanto o ancião dos Salfos arfava como uma fera acuada, o ancião Resai se erguia com olhos inflamados, como se cada batida de seu coração empurrasse a memória do seu povo para seus braços.
O Salfo tentou uma última investida. Ergueu a lança e correu, mirando o peito do adversário. Mas o Resai girou o corpo com precisão e desviou por um triz. Com a outra mão, puxou a lança de lado e a cravou no solo. O Salfo caiu de joelhos, ofegante, derrotado; a lança inutilizada, o braço ferido, a convicção dilacerada.
O ancião Resai caminhou lentamente até ele, o machado erguido sobre a cabeça. A luz do sol, finalmente livre da névoa, refletiu na lâmina, e naquele instante tudo pareceu suspenso… até a própria guerra.
Ele parou a poucos passos do inimigo caído e, com uma voz firme e ancestral, disse:
— A última gota de sangue será derramada… para que a primeira seque.
E então desceu o machado.
O golpe foi limpo. Definitivo. O corpo do ancião dos Salfos tombou sobre a terra que tanto profanou. Não houve aplausos. Não houve gritos. Apenas silêncio.
Um silêncio que não doía.
Cratos abaixou a cabeça. Sophia fechou os olhos por um instante. E eu… senti algo dentro de mim, como se, pela primeira vez desde que tudo isso começou, um ciclo tivesse sido encerrado.
O campo de batalha, antes ensurdecedor, agora só pulsava com respirações pesadas, passos arrastados e o ranger das armas sendo abaixadas.
A guerra havia terminado.
A poeira fina ainda flutuava no ar, misturada às últimas cinzas do que foi um confronto. Os corpos dos caídos, tanto Salfos quanto Resai, jaziam sobre o solo quente, e embora a dor da perda fosse inevitável, havia algo mais presente nos olhos de todos ao redor: esperança.
O ancião Resai permaneceu em pé por longos segundos, a machadinha ainda firme na mão, o olhar cravado no corpo inerte do antigo inimigo. Quando por fim se virou, encarando seu povo e a nós, não disse palavra alguma. Mas o que veio em seguida não exigia fala. Um Resai jovem, de pele marcada por cicatrizes e olhos brilhantes de emoção, avançou e ergueu seu punho cerrado ao céu. Em resposta, dezenas de Resai ergueram os seus também, batendo com força no próprio peito. Um, depois outro, depois todos, entoaram em uníssono:
— Liberdade! Liberdade!
Aquela palavra que lhes havia sido negada, arrancada junto com sua voz, agora rompia o ar com a força de um trovão. Gritavam não apenas pelo fim da guerra, mas pelo direito de existir. Pelo sangue derramado de seus filhos. Pela dor de anos silenciados. E agora, por um futuro que eles próprios poderiam construir.
Meus olhos marejaram. Hernán estava ao meu lado, sujo de terra e suor, mas sorrindo. Sophia observava tudo em silêncio, com as mãos cruzadas e uma expressão serena de quem, apesar do caos, encontrava ali um propósito cumprido. Cratos apoiava-se no machado cravado no chão, e pela primeira vez parecia estar em paz.
Uma das crianças Resai se aproximou de mim e colocou um colar de sementes ao redor do meu pescoço. Tocou meu ombro e balançou a cabeça, com um sorriso gentil. Eu soube, naquele gesto simples, que não havia necessidade de palavras. Nós os tínhamos escutado. E isso, por si só, já era suficiente.
No fim, não fomos heróis de uma lenda. Não salvamos reinos ou conquistamos glória. Mas talvez, só talvez, tenhamos feito o suficiente para que os Resai tivessem, enfim, uma chance de florescer mais uma vez.
Fim do Capítulo 40: A Primeira e a Última Gota.
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