Capítulo 41: As Caixas de Pandora.
Eu me juntei aos outros logo após a batalha. O cheiro de terra úmida e o cheiro metálico ainda pairavam no ar, e as cinzas do conflito lentamente se acomodavam no chão como se o mundo, enfim, respirasse em paz. Estávamos exaustos, cobertos de poeira, suor e marcas do combate… mas vivos, juntos. Os Resai também se reuniam, com semblantes marcados pela dor e pelo alívio. Não mais curvados, não mais calados. Eles eram, enfim, livres.
Reuni Sophia e Cratos ao redor da fogueira recém-acendida e, com poucas palavras, contei tudo o que Hernán e eu havíamos vivido: o sangue, as mentiras, os olhares cheios de medo… e a verdade, sufocada por tanto tempo. Falei do dom roubado dos Resai, da maldição que os silenciou e das crianças que nunca voltaram para casa. Nenhum de nós tentou esconder a dor na voz. E ninguém, ali, precisou de muitas perguntas.
Em gesto de gratidão, os Resai nos ofereceram mais daquelas frutas em forma de lua, com casca prateada e aroma adocicado. Sophia mordeu a dela e arquejou em surpresa.
—É como mel com névoa — disse, rindo.
Cratos provou em silêncio, assentindo com os olhos fechados como se estivesse saboreando mais do que o próprio gosto da fruta.
Foi quando uma luz pálida começou a se formar no céu. A princípio sutil, como a primeira estrela da noite, mas logo intensa o suficiente para nos fazer silenciar. Todos ergueram os olhos. Uma pequena chave descia do alto, flutuando como se presa a fios invisíveis, guiada por algum destino maior que o nosso.
Por um instante, havíamos esquecido. Aquilo era a Torre do Abismo.
Hernán foi o primeiro a se mover. Estendeu a mão e, no exato momento em que seus dedos tocaram a chave, um brilho nos envolveu por completo. Os Resai, todos eles, se posicionaram lado a lado. Sorriam, como quem se despede de velhos amigos. Nenhuma palavra foi dita, mas a despedida estava nos olhos. Eles sabiam. E nós também.
A luz nos engoliu.
Quando abri os olhos novamente, estava deitada ao lado dos outros. O frio da pedra sob meu corpo contrastava com a última brisa quente da floresta. Nos erguemos devagar, como se estivéssemos despertando de um sonho ou de uma lembrança que não queríamos soltar.
— Tudo aquilo foi real…? — perguntei, sem perceber que a pergunta escapava pelos meus lábios.
Hernán esboçou um sorriso cansado. De um de seus bolsos, retirou uma daquelas frutas em forma de lua e a mostrou para todos.
— Com certeza foi real.
Ficamos ali por alguns segundos. O silêncio nos envolvia como um véu sutil de respeito. Por aqueles que não conseguiram. Por tudo que vimos. Por tudo que fizemos.
Mas a torre ainda nos esperava. Com a chave em mãos, Hernán se aproximou da porta. O oitavo andar estava adiante.
A escadaria parecia se estender infinitamente, os degraus de pedra rangendo sob nossas botas, como se protestassem contra cada passo. O silêncio entre nós era denso, preenchido apenas pelo som rítmico da descida e pela expectativa do que nos aguardava. Sabíamos que cada andar nos moldava, que as provas não eram apenas físicas… e talvez por isso todos estávamos mais atentos que nunca.
Foi Sophia quem quebrou o silêncio. Apontando para uma das paredes curvas e envelhecidas pela umidade. Me aproximei. Cravadas em entalhes profundos estava a próxima escitura na parede.
Ela leu em voz alta:
“Aos que vierem depois:
Diante da abundância, tenha cuidado.
Onde houver ouro, pode haver sofrimento.
Busquem não o brilho, mas a ausência dele.
Nem tudo que pulsa é vida, e nem toda caixa quer ser aberta.
A chave jaz onde o desejo oscila.”
Ficamos em silêncio por alguns segundos. Cratos coçou o queixo, pensativo.
— Isso é… meio vago. — Hernán assentiu.
— Mas já nos guiamos com menos. — Eu ainda processava aquelas palavras. Algo naquela escrita me incomodava não por parecer falsa, mas por parecer anbígua demais.
Cratos foi o primeiro a quebrar o encanto do momento.
— Não confiem cegamente nessas inscrições, se esse próximo andar for traiçoeiro, é melhor entrarmos preparados. — Seu tom não era de desconfiança total, mas de um guerreiro que aprendeu a não se deixar guiar apenas por palavras bonitas.
Seguimos até a próxima porta. Era larga, mais ornamentada que as anteriores, com ferragens douradas e entalhes que remetiam a baús, correntes e fechaduras. Troquei um olhar rápido com Hernán. Ele assentiu.
Entramos em formação de combate, armas em mãos, sentidos à flor da pele.
Mas assim que atravessamos, fomos pegos pelo inesperado.
Nenhum inimigo. Nenhuma armadilha visível. Nenhum som de emboscada.
Somente baús.
Centenas… de baús.
Espalhados como uma floresta de madeira e metal, de todos os tamanhos, cores e formatos; alguns cobertos de joias, outros simples e empoeirados. Alguns semiabertos, a maioria fechada, como se esperassem para serem abertos.
— Que pressentimento péssimo… — murmurei.
Caminhávamos em silêncio pelo oitavo andar, os olhos varrendo cada canto daquele salão repleto de baús. Cada passo ecoava de maneira quase solene pelas paredes de pedra, como se a própria torre nos observasse, esperando nossa próxima escolha. A tensão pairava no ar, ninguém sabia ao certo o que fazer.
— Será que… isso tudo é a recompensa por termos chegado até aqui? — perguntou Hernán, observando maravilhado os baús adornados com metais preciosos e pedras cintilantes.
— Nenhuma recompensa seria tão suspeita — Sophia rebateu, com a voz carregada de desconfiança. — Isso aqui grita emboscada. Esses baús estão implorando para serem abertos.
Cratos cruzou os braços.
— Então o que faremos? Vamos ficar aqui encarando eles e esperar pelo melhor?
Eu respirei fundo, lembrando-me da ultima linha da escritura na parede antes de entrarmos ali.
— A chave… a chave deve estar dentro de um dos baús. Mas como saber qual? Não sabemos o que nos espera ao abrir qualquer um deles.
Um breve silêncio se instaurou. Nossos olhos se encontraram, mas ninguém tinha uma resposta concreta. Era como se estivéssemos cercados por possibilidades e, ao mesmo tempo, de incertezas.
— Talvez devêssemos tentar abrir alguns para entender o padrão. Cada um escolhe um diferente. — sugeriu Hernán, com um tom cauteloso.
— Isso é loucura. — Sophia franziu o cenho. — Não devemos nos precipitar.
— Tem alguma ideia melhor? — Hernán devolveu.
Ela hesitou. Por fim, balançou a cabeça, contrariada.
— Ainda acho arriscado… mas vamos lá.
Nos separamos em silêncio. Cratos foi o primeiro a escolher, apontando para um enorme baú de madeira escura ao fundo. Sophia parou diante de um pequeno baú ornamentado com tons azulados e ferragens delicadas. Hernán escolheu um reluzente, cravejado de joias cintilantes. Eu fiquei com um mediano, de madeira envelhecida e dobradiças um pouco enferrujadas. Havia algo naquele baú desgastado pelo tempo que chamou minha atenção.
Hernán foi o primeiro a agir. Ergueu a tampa lentamente. Um click seco soou no ar.
Por um momento, nada.
E então; uma lâmina de vento cortou o ar como uma flecha invisível. Hernán recuou com reflexo, desviando por pouco. A manga da túnica dele se desfez em pedaços.
— Por pouco… — ele resmungou. — Melhor tomarmos cuidado.
— Eu avisei que seria arriscado — exclamou Sophia claramente irritada.
Sophia se aproximou do próprio baú. Criou uma pequena adaga de eletricidade e, com ela, ergueu a tampa a uma certa distância. Um brilho prateado reluziu lá dentro. Um bracelete com safiras.
Ela o pegou cuidadosamente, analisando a peça em silêncio.
— Parece que nem todos os baús são armadilhas. Alguns têm recompensas. Mas não sabemos o que cada baú esconde — disse, franzindo o cenho.
Engoli em seco e voltei minha atenção para o meu. Abri com o máximo de cautela. Nada aconteceu. Mas uma pedra na parede, bem ao lado, se moveu discretamente. Antes que eu pudesse reagir, ouvi Sophia gritar:
— Abaixe-se!
Me joguei no chão no mesmo instante, sentindo o vento cortante passar por cima da minha cabeça. Uma flecha se cravou com violência na parede do outro lado.
Fiquei arfando, o coração disparado.
— Está tudo bem? — Sophia correu até mim.
— Estou. Quase virei espetinho, mas estou. — murmurei, ainda assustada.
— Pessoal… — A voz de Cratos nos interrompeu, carregada de urgência. — Acho que fiz merda.
Viramo-nos para ele e, por um instante, tudo pareceu congelar.
O baú diante de Cratos… se movia.
Dentes pontiagudos surgiram de dentro, a madeira rangendo como mandíbula deformada. Uma língua grotesca e úmida chicoteava o ar, enquanto patas horrendas se esticavam sob o corpo do que agora claramente não era mais um baú.
— Isso não é um baú… — murmurei, me colocando de pé e puxando a espada. — É um monstro.
— Pelo menos descobrimos que não está em um dia de sorte — disse Cratos com um pequeno riso.
A criatura soltou um rugido grotesco e avançou com a língua estalando no ar… instintivamente, empunhamos nossas armas. No fundo, sabíamos: o verdadeiro desafio daquele andar estava só começando.
Fim do Capítulo 41: As Caixas de Pandora.
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