Índice de Capítulo

    A criatura pulou sobre as patas curtas com uma agilidade absurda, a língua chicoteando o ar e os dentes rangendo com fome. Um baú com dentes… Eu pisquei, atônita por um segundo. Era a primeira vez que via algo assim fora das páginas de um bestiário.

    — Isso é novo… — murmurou Cratos, erguendo o machado.

    — Um mímico! — exclamei, dando um passo para trás. — É uma criatura que assume a forma de objetos atrativos para capturar presas. Eles se disfarçam como baús, portas, até bancos! São criaturas traiçoeiras.

    O mímico se lançou em um salto desajeitado, mirando Cratos. Com um movimento rápido, ele girou o corpo e enfiou o cabo do machado entre as mandíbulas da criatura, impedindo que ela se fechasse.

    — Isso deve segurá-lo por um tempo! — gritou, os pés escorregando contra o chão de pedra com o peso da criatura.

    — Recua um pouco! — ordenou Sophia. Sua mão já puxava duas flechas de eletricidade.

    Ela disparou uma em cada uma das patas do monstro. A eletricidade percorreu o corpo do mímico e ele se retorceu, mas ficou travado no lugar. Foi o suficiente para Hernán avançar com um salto, a capa ondulando atrás de si. A espada brilhou sob a luz opaca da torre e cravou fundo nas costas da criatura.

    O baú gritou… ou fez um som próximo a isso, e o rangido dos dentes parou aos poucos, como se a fome tivesse, enfim, cessado. O corpo se contorceu uma última vez antes de cair, inerte, com a língua pendendo mole para fora. Só aí percebi que havia prendido a respiração.

    — Bom trabalho, todos! — disse Hernán, limpando a lâmina da espada em um pedaço de tecido.

    Cratos bufou, empurrando o corpo do mímico com o pé.

    — Com essa sorte, acho que é a última vez que abro um baú nessa torre.

    Hernán soltou uma risada curta.

    — Pelo menos você sobreviveu inteiro. Sua barba quase virou lanchinho.

    Eu sorri, observando os três. Já tinha visto esse trio em ação antes, mas algo naquela sincronia me fascinava. Eles funcionavam como um só, mesmo em meio ao caos.

    — Vocês foram incríveis — comentei, ainda olhando para o corpo do mímico. — Nem pareceram hesitar mesmo contra uma criatura tão grande.

    — Criaturas grandes? Estamos acostumados. — Sophia deu de ombros. — Desde que não voem. Ou se mexam rápido demais.

    — Ou explodam — murmurou Cratos, e todos riram de leve.

    Respirando mais aliviados, voltamos aos baús que haviam sido abertos. O de Sophia que abrigava o bracelete com safiras, intacto. Os outros, todos armadilhas. Observamos o formato, os metais, os detalhes… Nenhum padrão claro. Baús grandes, pequenos, enferrujados, ornamentados… cada um era único.

    — Então não dá pra confiar em nada disso — disse Hernán, ainda observando o próprio braço, onde a manga estava estraçalhada.

    — Parece que o único padrão aqui é o perigo em potencial — murmurei. — Vamos ter que continuar… com mais cautela.

    Nos entreolhamos por um momento e, sem dizer mais nada, seguimos em frente entre os corredores da cobiça. Ainda havia dezenas de baús ao redor… e uma chave escondida em algum deles.

    Continuamos andando com cautela. O som de nossos passos ecoava entre os inúmeros baús dispostos como armadilhas de um museu abandonado, cada um mais distinto que o outro: uns reluzentes como joias recém-lapidadas, outros velhos e cobertos de musgo, parecendo esquecidos há séculos no fundo do oceano.

    Cratos parou diante de um baú de metal com rebites dourados. Respirou fundo, apertou o cabo do machado e abriu com um puxão brusco. Por um segundo, nada aconteceu. E então, uma nuvem de tinta rosa explodiu diretamente em seu rosto.

    — Argh! — ele tropeçou para trás, cuspindo. — Que porcaria é essa?

    Ao ver que Cratos estava bem Hernán se segurou para não rir, mas não conseguiu.

    — Acho que ele te batizou como digno… de um banho.

    — Pelo menos agora sabemos que nem todas são mortais — comentei, tentando manter a seriedade, mas foi difícil.

    Sophia escolheu um baú de madeira escura com tiras prateadas. Ela se abaixou, analisou a tampa por um instante e depois o abriu cuidadosamente com a ponta da adaga. Lá dentro, repousava uma pequena bolsa de couro. Quando ela a abriu, moedas antigas escorregaram para sua palma. Tinham o brilho opaco e pareciam de certa forma antigas.

    — Algumas são mesmo tesouros… — murmurou, e guardou as moedas consigo.

    Me aproximei de um baú pequeno, baixo, com detalhes entalhados como folhas enroladas. Quando toquei na tampa, ela abriu sozinha. Arfei, pronta para saltar para trás, mas dentro só havia um frasco de vidro. Peguei com cuidado. Um líquido azul esverdeado chacoalhava lá dentro, viscoso como mel. Sophia se aproximou, pegou o frasco e cheirou.

    — Parece ser um elixir restaurador… mas de baixa potência. Ainda assim, útil.

    — Obrigada, pequenino — sussurrei ao baú, batendo de leve na madeira que se fechou logo em seguida.

    Quando Hernán abriu seu próximo, um estalo sutil foi a única advertência. Do fundo, uma mola disparou… liberando um exército de ratinhos mecânicos que começaram a correr ao redor dos pés dele em círculos emitindo um barulho irritante.

    — O quê…? — Ele olhou para os bichinhos como se estivessem zombando. — Eles estão rindo de mim?

    — Eu tô rindo de você — respondeu Cratos, ainda rosa, limpando o rosto na capa de Hernán.

    — Pelo menos não foi algo perigoso — disse Sophia, pegando um dos ratinhos para examinar. — São só distrações.

    Aos poucos, a desconfiança deu lugar a uma espécie de jogo. Um baú cuspia pó que fazia espirrar, outro lançava uma luz intensa que cegava temporariamente, enquanto outro, quando aberto, só tocava uma música bizarra de flauta, como se zombasse de quem o abriu. Mas havia também outros com pequenas recompensas: um par de luvas, uma pedra de fogo fraca, uma poção de reposição física…

    A torre brincava conosco. Entre promessas e perigos, ela nos fazia duvidar de cada escolha.

    Cratos, ainda com traços de tinta no rosto e uma teimosia que parecia inabalável, limpou as mãos e se aproximou de mais um baú, dessa vez um de madeira clara, pequeno e bem polido.

    — Tá, esse aqui tem cara de confiável — disse, já empurrando a tampa para cima.

    Mas em vez de armadilhas ou tesouros, o que saltou lá de dentro foi… um gato. Um pequeno felino de pelo prateado, com botas pretas, luvas e olhos astutos demais para o próprio tamanho. Ele soltou um som entre um miado e uma risadinha — “hihihi” — e saiu correndo feito uma flecha.

    — Finalmente algo de bom! — Cratos disse com um sorriso orgulhoso.

    A criatura deu uma cambalhota no ar e pousou com elegância sobre um dos baús mais próximos. Sem hesitar, meteu as patinhas nas dobradiças e abriu a tampa de uma vez.

    Click.

    Um jato de fumaça roxa explodiu no ar, e o baú se desfez num brilho mágico.

    — O que… foi isso? — murmurei, já ficando em alerta.

    O gato pulou para o próximo. Click. Dardos dispararam, ricocheteando pelas pedras. Depois, outro baú: uma rede saltou e ficou pendurada no teto.

    — MEU DEUS, CRATOS! NÃO ABRA MAIS NENHUM BAÚ! — gritou Hernán, agachando-se atrás de uma pilastra.

    — Eu não abri! Ele que tá abrindo por conta própria! — Cratos se defendeu, com os olhos arregalados.

    Eu me virei para Sophia.

    — Se ele continuar ativando as armadilhas assim, vai colocar tudo em colapso! A gente precisa pará-lo. Agora!

    Saímos correndo. O gato; ou seja lá o que fosse aquilo, corria com a leveza de uma sombra, saltando entre os baús como se já soubesse o caminho. A cada baú que ele abria, uma nova armadilha se ativava: espinhos surgindo do chão, correntes elétricas cortando o ar, até uma trombeta que soltava sons ensurdecedores para atrasar nosso avanço.

    Tentamos cercá-lo, mas ele sempre escorregava por entre nós com uma gargalhada quase infantil. Foi só quando chegou a um baú maior, coberto por correntes grossas e com uma tampa visivelmente pesada, que ele teve dificuldades. Começou a empurrá-la, fazendo força com o corpo inteiro.

    — Agora! — gritei.

    Saltei por cima de dois baús e me lancei sobre ele, abraçando-o com força.

    — Peguei!

    Ele parou de se mexer por um segundo. Depois, levantou o rostinho felino, e com um sorrisinho presunçoso, disse:

    — Finalmente achei… hehe.

    O silêncio caiu como uma lâmina.

    — O quê? — murmurei.

    Foi quando o som começou. Um rangido profundo, vindo das entranhas do andar. Pedras deslizando, estruturas se movendo, como se o próprio andar estivesse… despertando.

    Todos ao meu redor se levantaram de imediato, formando um círculo instintivamente, com as armas em punho. As paredes vibravam. A vibração chegou ao chão.

    — Se preparem para o pior… — disse Sophia, com os olhos fixos em tudo ao redor.

    Mas o pior não veio de cima. Veio debaixo.

    Senti. O chão tremeu sob meus pés, e em um instante, ele simplesmente desapareceu.

    — Ah não…

    Quando se demos conta, todos estávamos caindo sem forma alguma de nos segurarmos.

    O ar se esvaiu do meu peito. O mundo virou de cabeça para baixo e tudo que eu via se tornou escuridão.

    Fim do Capítulo 42: Queda Livre.

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