Capítulo 45: O Décimo Véu.
A cada passo dado, o ar parecia mais espesso. Havia algo diferente naquele corredor, uma pressão que se enroscava no peito e pesava nos ombros. Caminhar ali me trazia a estranha sensação de estar sendo vigiada, como se a própria Torre nos estudasse, decidindo se merecíamos continuar. Meus olhos percorreram os rostos ao meu redor; Cratos caminhava em silêncio, apertando com força o cabo do machado, seus olhos atentos buscavam movimento em cada sombra; Hernán, mais contido do que o habitual, parecia medir cada passo; Sophia caminhava à frente, com o olhar obstinado, quase como se desafiasse as paredes a revelarem algum segredo.
Aqua e os membros da Guilda do Redemoinho Celeste, apesar da aparência confiante, carregavam no rosto a dúvida de quem enfrentava o desconhecido pela primeira vez. O olhar de Rose, sempre intenso, estava mais vago, como se buscasse se antecipar a um perigo ainda invisível. Eu mantinha minha atenção, mas o silêncio do ambiente era o que mais me incomodava… ele parecia querer nos dizer algo, mas não usava palavras.
Sophia, à frente, parou e se virou para os demais.
— Devemos procurar a próxima pista.
A maioria a olhou sem entender. Aqua franziu o cenho.
— Pista? Que pista?
Foi então que percebi que aquele conceito ainda era estranho para eles.
— Antes de cada andar, encontramos mensagens nas paredes. Enigmas… advertências talvez. Elas de certa forma nos ajudaram a entender o tipo de desafio que enfrentaríamos — expliquei.
Alguns dos aventureiros trocaram olhares céticos. Um deles até resmungou:
— Chegamos até aqui sem precisar disso.
Mas Sophia não se deu por vencida.
— Mesmo assim, vale a pena procurar. Qualquer detalhe pode nos ajudar.
Cratos assentiu e completou:
— Não é nada complicado, são entalhes nas paredes. Simples, mas inconfundíveis.
Após certa relutância e indignação por parte de alguns aventureiros, Aqua ordenou que fizessem essa busca antes de entrarem no andar do guardião. Nos espalhamos. Caminhamos por corredores com paredes úmidas e irregulares, buscando qualquer marca fora do comum, qualquer símbolo. Tocamos cada pedra suspeita, observamos cada rachadura. E, no fim do caminho… nada.
O silêncio se tornou mais pesado. Olhei para Sophia e vi seu maxilar travado, os olhos apertados em frustração.
— Talvez… a Torre tenha se cansado de nos dar dicas — murmurei.
Ela virou o rosto na minha direção, assustada pela coincidência do pensamento. Nenhuma pista, nenhum aviso. Apenas o vazio…
Ao fim do corredor a porta do décimo andar se erguia diante de nós como um obstáculo final, tão imponente que parecia conter a própria vontade da torre. Grossas camadas de pedra negra envolviam suas bordas como músculos tensionados, e no centro, esculpidas com um detalhismo quase hipnótico, duas serpentes se entrelaçavam em espirais simétricas. Seus olhos eram gemas azul-escuras, brilhando de forma sutil, como se observassem quem se aproximasse. Línguas bifurcadas se estendiam para fora de suas bocas entreabertas, e todo o contorno da porta parecia pulsar com um frio ancestral, como se algo do outro lado estivesse apenas esperando.
Aqua e Selene se posicionaram em frente à porta, cada uma tocando um dos lados. As duas trocaram um breve olhar e sorriram, mesmo diante do desconhecido.
— Vamos acabar com isso… e ir tomar uma bebida — disse Aqua com um meio sorriso no rosto.
— Tudo bem, mas só uma pois estou com sede — respondeu Selene devolvendo com um sorriso empolgado.
Com um estalo profundo e arrastado, a porta se abriu.
Uma lufada fria nos atingiu como o sopro de um abismo esquecido. O que vi do outro lado me tirou o fôlego: literalmente e figurativamente. Era como mergulhar no fundo do oceano sem se molhar. O chão sob nossos pés parecia um espelho líquido, mas ao tocá-lo com a ponta da bota, percebi que não afundava. A água nos sustentava, como se estivéssemos caminhando sobre ela… ou através dela.
Acima e ao redor, a imensidão de um mundo submerso se estendia em um azul profundo salpicado por tons de verde e prata. Enormes algas ondulavam preguiçosamente no “ar”, como se dançassem sob uma corrente invisível. Algumas se estendiam por metros, grossas como troncos, se enroscando em pilares distantes que mal podíamos ver. Estruturas reminiscentes de corais colossais emergiam das bordas do cenário, abrigando fendas, sombras e sabe-se lá mais o quê.
Era como estar em um domo submerso, mas sem barreiras, sem limites visíveis. Acima de nossas cabeças, a luz se filtrava como se viesse de uma superfície aquática distante, lançando sombras líquidas sobre nossos rostos. E ainda assim… respirávamos. Caminhávamos. Sentíamos o frio da umidade nas roupas e a estranha ausência de som, como se o mundo lá fora tivesse sido engolido.
Eu me peguei maravilhada. A beleza daquele lugar me cortava o fôlego. Como podia algo tão assombroso ser, ao mesmo tempo, tão hipnotizante? Estávamos dentro da Torre do Abismo afinal… não fazia sentido um cenário tão belo existir aqui. Cada passo parecia desacelerar o tempo. Eu tinha vontade de parar, apenas observar. Mas a lembrança de onde estávamos me puxava de volta à realidade.
Aqua caminhava à frente, cautelosa, seus olhos varrendo os arredores com precisão.
— Atenção redobrada — ela disse. — Não se deixem enganar… o Guardião da Torre está aqui em algum lugar.
A alguns metros, notamos uma fenda escura que cortava uma das paredes de coral, como a entrada de uma caverna adormecida. Estava próxima ao que parecia ser o limite do andar, sua escuridão parecia pulsar. Nos aproximamos. O silêncio era tão denso que nossos próprios passos pareciam profanar o ambiente.
Então ouvimos.
Um som baixo, como algo se arrastando. A caverna não estava vazia.
Todos se armaram em um só gesto. Olhos arregalados, corpos tensos. O chão líquido sob nossos pés ondulou levemente, como se o próprio andar sentisse a aproximação do perigo. Um arrepio subiu por minha espinha. Algo estava errado. Algo estava vindo. E ainda assim… eu não conseguia parar de pensar no fato de que, pela primeira vez, não houve pista. Nenhuma inscrição. Nenhum aviso. Estávamos prestes a enfrentar o desconhecido em sua forma completa.
Minha respiração ficou curta, minha mente parecia buscar refúgio em pensamentos aleatórios, memórias soltas. Foi quando senti algo quente envolver meus dedos. Olhei para o lado e vi Sophia. Seus olhos estavam fixos nos meus, firmes e decididos, mas… ela tremia.
— Vamos sair daqui — ela disse. — Depois disso, vamos comer algo gostoso, do tipo que dá orgulho a cada pedaço.
Por um instante, meu coração se apertou. Sophia, sempre alegre, a sempre confiante… tremia. E não era a única. Selene mantinha o semblante calmo, mas sua postura estava um pouco retraída. Cratos girava o machado compulsivamente nas mãos. Hernán forçava um sorriso, mas os músculos do seu rosto estavam tensos demais.
Percebi, então, que não era a única sentindo medo. Mas todos estavam ali, firmes, apesar disso. E se eles podiam resistir… então eu também podia… mesmo que eu não consiga ajudar o grupo, eu não posso ser um peso para eles. Com o espírito renovado mantive a mente trabalhando, talvez a pista esteja em algum lugar.
— Os aventureiros que vieram antes de nós… — murmurei mais para mim do que para qualquer outra pessoa ali. — Caso eles tenham deixado as pistas, a falta da última só pode significar uma coisa.
Enquanto me perdia em pensamentos, o som se arrastava pelo chão como um sussurro vivo. Estranho, úmido… e cada vez mais próximo. Ninguém dizia nada. Estávam todos atentos, ombro a ombro, os olhos buscando por qualquer sinal. As sombras pareciam se mover nas bordas da visão, mas o som vinha de um ponto específico. Aos poucos, fomos percebendo sua origem… a fenda.
Todos os olhares se voltaram para ela, como se a própria escuridão estivesse prestes a responder ao nosso chamado. E então… silêncio.
Um silêncio tão absoluto que o próprio som da minha respiração me pareceu uma afronta.
Por um segundo nada se moveu. Nem mesmo a água sob nossos pés ondulou. E então, como um estalo em meio à tensão, dois olhos se abriram no interior da caverna. Um par de olhos vastos e brilhantes, de um tom cortante, frio e ameaçador. Eles pareciam nos atravessar com aquele olhar afiado e paciente… como quem observa algo pequeno demais para oferecer ameaça.
Meu corpo congelou. O tempo pareceu se estender, como se o mundo estivesse preso entre o momento anterior ao terror e o instante em que ele se materializa. Aqueles olhos não apenas nos observavam; eles nos julgavam.
Aqua foi a primeira a se mover. Com passos firmes, se posicionou à frente do grupo, e Selene a acompanhou, desembainhando a espada com um movimento calmo, porém determinado. O som metálico da lâmina cortando o ar foi o único sinal de que estávamos vivos.
Por instinto, levei a mão até a cintura, procurando pela minha adaga. Só então me lembrei: ela havia se partido na luta contra o guardião do quinto andar. Fechei a mão em punho. A ausência dela pesava mais agora do que nunca.
— Devemos atacar? — alguém da guilda perguntou, a voz baixa, como se temesse chamar a atenção do inimigo com as palavras.
— Não — respondeu Aqua, os olhos ainda fixos na fenda. — Antes disso, precisamos entender onde estamos e com o que estamos lidando. Um passo em falso e será o fim.
Ela gesticulou com as mãos, e os membros da guilda se dividiram em dois grupos, deslizando pelas laterais, formando um semicírculo cuidadoso ao redor da entrada escura da caverna.
A tensão entre nós era quase física. Os olhos do guardião continuavam ali; imóveis, vigilantes. Não precisávamos vê-lo por completo para saber que sua presença dominava aquele andar. A beleza do lugar agora parecia frágil, apenas um véu sobre a promessa de morte.
Respirei fundo, sentindo o frio morder os pulmões. O guardião apenas nos observava sem pressa, como se já soubessem qual de nós cairia primeiro…
Fim do Capítulo 45: O Décimo Véu.
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