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    O silêncio ainda imperava, como se o próprio tempo hesitasse em seguir. Os olhos na escuridão da caverna mantinham-se fixos, imóveis, como duas lanternas cravadas no vazio. Um farol do abismo que os observava em julgamento.

    — Por que ele ainda não atacou? — murmurou Cratos, com o punho ainda cerrado em torno do cabo do machado. — Estamos aqui há tempo o bastante para qualquer besta enlouquecer… mas tudo que faz é nos observar em silêncio, das profundezas da caverna.

    Me virei lentamente na direção dele, repetindo, quase sem perceber:

    — Em silêncio… das profundezas…

    As palavras ecoaram dentro da minha mente como um chamado distante, um fio puxando algo enterrado sob camadas de poeira e esquecimento. Senti o frio da dúvida subir pela espinha, não pela criatura à frente, mas pela ideia incômoda de que aquilo tinha um propósito escondido.

    Sophia parecia me observar com atenção. Eu deveria estar com aquela expressão de quem tem algo preso na garganta, prestes a emergir.

    — No que está pensando? — perguntou ela, se aproximando com cautela.

    Hesitei de início, mas depois sussurrei:

    — Nada aqui tem sido direto… tudo tem exigido algo de nós. O quinto andar só revelou seu guardião quando o medo daqueles que fugiam encheu o ambiente, lembra? Talvez… talvez esse também esteja esperando algo.

    Sophia cruzou os braços e levou a mão ao queixo, os olhos perdidos no vazio.

    — Algo como… o que exatamente?

    — Não sei… — franzi a testa. — Mas quando o Cratos falou em “silêncio das profundezas”, me veio uma sensação forte… Como se eu já tivesse lido ou ouvido algo assim.

    Ela repetiu, mais uma vez:

    — No silêncio das profundezas…

    Sophia então piscou, surpresa. Seu corpo inteiro enrijeceu por um instante. Ela virou-se para mim com um brilho nos olhos:

    “Não temas o silêncio das profundezas”

    Lentamente ergui o olhar, as palavras saindo como se brotassem de um livro esquecido em minha memória:

    “Pois é nele que tua voz terá que gritar…”

    Nós duas nos olhamos. Um segundo de conexão atravessou o momento como um raio.

    — O poema… — dissemos juntas.

    Selene se aproximou com um arquejo debochado.

    — Estão parecendo duas garotas descobrindo um segredo de escola. O que foi agora?

    Voltei minha atenção para ela com um brilho nos olhos.

    — O poema. Aquele que estava entalhado no obelisco, logo antes da entrada da torre… Acho que ele não era apenas uma metáfora. Era um aviso.

    Sophia assentiu.

    — Talvez o desafio final não seja apenas derrotar o guardião… talvez devamos enfrentar essa entidade com mais do que força bruta.

    Mas nesse exato momento, um rugido mágico percorreu o ar.

    — ATAQUEM! — bradou Aqua.

    Todos ao redor dispararam suas magias ao mesmo tempo, como se o céu tivesse desabado. Jatos de fogo, lanças de gelo, espinhos de pedra e feixes elétricos se chocaram em direção à caverna… e se dispersaram como névoa ao tocarem uma parede invisível. O impacto inexistente doeu mais do que se tivessem errado.

    Uma onda de frustração pareceu percorrer o grupo.

    — O quê…? — murmurou um dos membros da guilda.

    Aqua cerrou os punhos, com os olhos fixos na escuridão. O brilho dos olhos na fenda sequer piscou por um segundo.

    — Droga… — ela rosnou. — Está nos observando como se esperasse algo… talvez o poder não tenah sido suficiente.

    Senti o peso do momento. A criatura não era apenas um guardião. Era um teste.

    Aqua não hesitou. Ergueu o braço mais uma vez e bradou com firmeza:

    — Segunda formação! Ataquem com tudo dessa vez!

    Uma nova leva de feitiços explodiu contra a fenda. Lâminas de água cortaram o ar, seguidas por labaredas incandescentes que se entrelaçaram com correntes elétricas disparadas da retaguarda. O chão tremeu sob nossos pés com a intensidade do ataque coordenado.

    Mas o resultado foi o mesmo.

    Tudo se dissipou. Como poeira ao vento. Nenhum impacto. Nenhuma resposta, nada além do mesmo silêncio esmagador e daqueles olhos, ainda ali… observando.

    Vi os ombros dos guerreiros tensionarem. Alguns se entreolhavam em silêncio, os olhos mais inquietos agora. O nervosismo começava a se espalhar como uma névoa invisível; densa, sufocante.

    Sophia se aproximou de mim e sussurrou com um olhar tenso:

    — Isso não é só uma simples barreira mágica… temos que encontrar uma forma de passar por ela.

    Assenti lentamente. O poema ecoava na minha mente como um tambor em marcha lenta.

    — “Não temas o silêncio das profundezas… pois é nele que tua voz terá que gritar…” — repeti em voz baixa, como se tentando destrancar algum sentido oculto.

    — Gritar o quê? — Sophia murmurou, os olhos fixos na escuridão. — Será que é literal? Ou simbólico? Tipo… se impor, desafiar? Ou é mesmo gritar… alto?

    — E gritar o quê? — rebati, frustrada. — O nome do guardião? Algum código? Um pedido? Um insulto?

    Ela ficou em silêncio por um segundo, mordendo o canto do lábio.

    — Talvez… o poema esteja dizendo que temos que chamar por ele. Tirar ele da toca. Talvez ele esteja testando nossa coragem. Ver quem ousa romper o silêncio.

    — Mas e se dissermos a coisa errada? — pensei em voz alta. — E se a gente só irritar ele e aí ele resolver atacar?

    — Ah, caso ele resolva atacar, pelo menos terá que sair de trás da barreira… eu acho.

    Hernán ouviu nossa conversa e se aproximou.

    — Que teoria é essa? — ele disse, arqueando a sobrancelha. — Querem chamar o guardião? Assim… no grito?

    — É uma possibilidade — Sophia respondeu, firme. — Mas ainda não sabemos como fazer isso da forma certa.

    — Excelente — ele resmungou, revirando os olhos. — Isso vai acabar bem com certeza…

    — Han! Agora a gente tem que descobrir o nome do guardião? — Cratos bufou atrás de nós, cruzando os braços. — É o fim dos tempos mesmo. Daqui a pouco vão mandar escrevermos os poemas também.

    — Ei — Selene cortou. — O que mais havia naquele obelisco? Talvez a resposta que procuram esteja aí.

    Franzi a testa, tentando puxar da memória. Lembrei do símbolo no topo, das palavras em espiral…

    — Havia mais versos — murmurei. — Não lembro de todos… mas tinha algo sobre a ilusão… e sombras.

    Sophia levou a mão ao queixo.

    — Então talvez a chave não esteja em gritar algo aleatório… mas talvez algo que evoque uma relação com a torre.

    — Filosófico demais pro meu gosto — Cratos resmungou, já se afastando.

    Mas eu senti um arrepio correr pela espinha.

    Talvez fosse exatamente isso.

    As palavras de Selene pairaram no ar por um instante. Houve um breve silêncio entre os presentes, até que alguns membros da guilda começaram a trocar olhares e murmúrios.

    — O obelisco… — disse um deles. — Eu lembro que tinha um nome escrito no topo… algo como “Torre de…”

    — De quê? — perguntei, virando-me na direção da voz.

    — Não lembro exatamente… — ele coçou a cabeça. — Mas começava com a letra “N”, disso eu tenho certeza.

    — Nandria? — sugeriu alguém.

    — Não, acho que era mais suave… tipo… Nualen?

    — Naldra? Naldua?

    — Nalvra?

    — Não, não… — Sophia murmurou, os olhos fixos em algum ponto distante, como se puxasse palavras do fundo de um poço. — Era mais fluido… como um sussurro…
    — Nualdra… — ela disse, quase como um sopro.

    Naquele instante, algo se encaixou dentro de mim. Uma peça finalizada num quebra-cabeça antigo.

    — Era isso — falei, convicta. — Era esse o nome no topo do obelisco. Torre de Nualdra.

    Os olhos de Sophia se encontraram com os meus, e eu soube que estávamos pensando a mesma coisa.

    — E se for esse o grito? — ela sussurrou. — E se for isso que o poema queria dizer?

    — Vale tentar — respondi, sentindo o coração acelerar.

    Aqua fez um gesto afirmativo com a cabeça, permitindo, e então olhamos todos para a fenda, onde os olhos ainda nos encaravam; brilhantes, imóveis, impiedosos.

    Respirei fundo. E então, juntos, gritamos:

    — NUALDRA!

    Os olhos que nos encaravam friamente cintilaram.

    Como se algo dentro daquela escuridão tivesse despertado de verdade, pela primeira vez.

    Uma aura azulada começou a se espalhar como névoa, rastejando pelas paredes da caverna. O chão tremeu sob nossos pés, e um som agudo… como o arranhar de pedras milenares reverberou no ar. A fenda se abriu um pouco mais. Dela, emergiu um corpo descomunal e ondulante, que parecia se desenrolar lentamente, como se acordasse de um sono eterno.

    Escamas azul-violáceas refletiam a luz do ambiente com um brilho quase etéreo, e os olhos agora luminescentes, nos fitavam com uma consciência que ia além do instinto.

    Era uma serpente colossal. Seu “corpo” ocupava metade da abertura da caverna, mas podíamos ver que se estendia para muito além do que nossos olhos podiam alcançar. A pele parecia feita de um material translúcido, como vidro tingido de azul, e por baixo dela era possível ver correntes de energia líquida pulsando como veias vivas.

    Todos ficaram imóveis. Ninguém ousou respirar alto.

    Um sussurro estranho, quase como um canto antigo, escapou da garganta da criatura. Não era um rugido. Não era um aviso. Era como se estivesse reconhecendo o chamado.

    — Ele… respondeu. — Sophia murmurou, a voz trêmula.

    A cabeça da serpente se ergueu, aproximando-se da borda da fenda. Sua mandíbula não se abria, ainda. Mas os olhos brilharam com um novo tom: um azul profundo, mesclado com traços dourados que pulsavam como sinais de uma antiga linguagem esquecida.

    E então… ela falou.

    Mas não com palavras.

    Um trovão reverberou dentro das nossas mentes. Uma mensagem direta, silenciosa, inevitável.

    “Aquele que ousa pronunciar meu nome…
    Deve provar que é digno de ser ouvido.”

    O chão estremeceu violentamente. A parede à nossa esquerda se partiu com um estrondo, e pedras gigantes despencaram para os lados.

    Eu não respondi. Apenas encarei os olhos de Nualdra: agora fixos em mim. Senti um arrepio profundo. Não exatamente de medo, mas de um pressentimento quase místico.

    Selene se colocou entre mim e o guardião, olhos faiscando.

    — Provar que sou digna? — ela repetiu, com um tom ríspido, quase cuspido. — De novo isso?

    Ela deu um passo à frente, a mão firme na empunhadura da espada.

    — Já enfrentamos bestas, ilusões, maldições, armadilhas que rasgam a mente e o corpo. Já nos fizeram escolher entre continuar ou enlouquecer. Perdemos tempo, força, quase perdemos uns aos outros. E agora você surge, cheio de pompa, exigindo mais uma última provação?

    Ela apontou a lâmina na direção dos olhos brilhantes, faíscas escapando do gume da espada.

    — Eu não tenho mais paciência pra charadas. Quer saber se sou digna de ser ouvida, Nualdra?
    Então escuta: eu não vim até aqui pra pedir passagem. Eu vim pra colocar essa torre no chão.

    Seu olhar queimava.

    — Você não é a última muralha. É só mais um obstáculo. E já estou farta de obstáculos.

    Fim do Capítulo 46: A Guardiã Silenciosa.

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