Índice de Capítulo

    “Algumas chamas se erguem como muralhas. Outras, como pontes.”

    O chão ainda ondulava sob nossos pés. A cada movimento da guardiã, a estrutura da torre parecia estremecer como se reconhecesse o peso da criatura que havia mantido oculta.

    Ela avançou. Não como uma serpente comum, mas como um dilúvio vivo, seus corpo imenso se arrastando com velocidade surpreendente, criando ondas de ar cortante a cada impulso. Seu rugido ecoou pelas paredes curvas da câmara, abafando gritos, ordens e até o som dos próprios pensamentos.

    — Atenção! — gritou Aqua, sua voz se impondo como um raio no meio da tormenta. — Formem linhas de ataque! Suportes se mantenham atentos, e deixem a linha de frente comigo.

    Seus olhos estavam fixos na criatura, e naquele instante ela parecia outra. As ondas de seu poder se manifestavam em torno de si como uma maré em constante rotação. A água respondia antes mesmo de seus gestos, chicotes ondulantes que tentavam prender as escamas da criatura, esferas pressurizadas arremessadas como balas e barreiras para proteger os mais próximos.

    Selene hesitou. Suas mãos estavam firmes na lâmina, mas seus olhos me observavam de canto.

    — Vá, Selene. Eu fico aqui com Sophia. — insisti, sentindo o peso de ser protegida quando tudo dentro de mim gritava para fazer alguma coisa, mesmo sem saber ao certo.

    Ela hesitou mais um segundo… até que um aventureiro foi pego por um golpe de cauda e lançado contra uma das colunas. Seu corpo caiu mole.

    — Droga. — sibilou Selene, e partiu como um raio escarlate.

    Ela pulou em direção à criatura com agilidade assombrosa, a lâmina riscando o ar em um corte certeiro que cravou em uma das escamas da serpente… mas não penetrou.

    A espada ricocheteou.

    — Tsc… então é assim?

    A serpente virou a cabeça, olhos fixos em Selene, e disparou um jato de veneno púrpura de sua boca. Selene girou no ar, evitando por pouco, mas parte da substância corrosiva atingiu um guerreiro que tentava se aproximar e sua armadura começou a derreter no mesmo instante.

    Sophia ofegou e retornou imediatamente para meu lado.

    — Não podemos enfrentá-la de frente por muito tempo. Não com essa defesa.

    Eu assistia tudo sem piscar, tentando entender os padrões. Aquelas escamas… reagiam à magia de forma estranha. Algumas repeliam os feitiços, outras pareciam absorver impacto. O que exatamente estávamos enfrentando?

    Mais gritos. Mais sangue.

    O grupo estava dividido: conjuradores tentando manter distância, guerreiros tentando cortar as escamas, curandeiros correndo de um lado para outro. Mas ela estava atacando sem descanso.

    Fria. Calculista. Como se cada ataque fosse uma sentença de morte.

    E mesmo assim… Aqua não recuava.

    Ela ergueu os braços, canalizando um turbilhão ao seu redor. A água girava tão rápido que o ar se condensava. Com um rugido, ela lançou o feitiço.

    — Corrente de Leviatã!

    Uma espiral líquida colossal ergueu-se como um dragão feito de mar, atingindo a guardiã em cheio.

    Pela primeira vez, ela recuou alguns bons metros, soltando um som que parecia uma risada abafada.

    — Interessante… vocês ainda resistem. Vamos ver quanto tempo mais.

    A guardiã seguiu em um ataque feroz arremessado alguns aventureiros para longe.

    O som dos ossos quebrando me fez estremecer. Um dos aventureiros foi lançado contra a parede com tanta força que o corpo sequer se moveu depois. Um grito abafado cortou o ar, seguido de faíscas e rajadas d’água.

    Aqua estava lutando com tudo o que tinha, mas a raiva já havia tomado conta dela.

    Eu sentia. Era mais do que dava pra ver nos olhos dela ou nos movimentos violentos das correntes d’água. Era um tipo de fúria que queimava de dentro pra fora, a mesma que vi quando ela jurou proteger todos ali. Só que agora… agora ela estava perdendo eles. Um a um.

    Selene continuava perto de mim. Sempre entre mim e a serpente. Ela não tinha atacado, não de verdade. Não como as outras vezes. Estava tensa, como se cada movimento seu fosse calculado para não me deixar exposta. Como se a batalha não importasse tanto quanto a minha segurança.

    Meus olhos varreram a cena e pararam em Rose, ajoelhada ao lado de um dos caídos. As mãos dela brilhavam em verde, pressionadas contra o abdômen ensanguentado de um homem que eu mal tive tempo de conhecer. O rosto dela estava suado, os olhos marejados, mas ela não parava. Fazia o que podia.

    E eu? Eu só estava ali.

    O peso disso me esmagava mais do que qualquer parede da torre.

    Eu abri a mochila às pressas, os dedos tremendo. Vasculhei entre as poucas coisas que ainda carregava comigo e, quase sem acreditar, encontrei. Algumas das ervas que Hernán havia me dado… ainda estavam lá. Umas folhas secas, um punhado de raízes: nada milagroso, mas o suficiente pra tentar ajudar alguém.

    Apertei os punhos e me levantei. Não podia ficar parada.

    — Eu posso ajudar… — murmurei, como se dizendo em voz alta fosse tornar aquilo mais real. Dei um passo.

    — Não. — A voz de Selene cortou o ar com firmeza.

    Me virei de imediato, surpresa. Ela estava me olhando com os olhos semicerrados, e a mão dela se fechou em meu ombro antes que eu pudesse recuar.

    — Você tem que ficar ao meu alcance. — disse ela, em um tom que não deixava espaço pra discussão. — Não posso te proteger se sair correndo por aí.

    — Mas eu não posso só… só assistir! — retruquei, a voz falhando entre a vontade de chorar e de gritar. — Eu tenho isso aqui! — mostrei as ervas — Eu… Se eu conseguir ajudar essas pessoas, posso fazer alguma diferença!

    — Isso aqui não é uma brincadeira ensaiada — respondeu Selene, sem sequer piscar. — Isso é um campo de batalha. Uma distração, um movimento errado… e você pode morrer.

    — E os outros? Eles estão morrendo agora mesmo!

    Ela me encarou por um segundo que pareceu uma eternidade. E eu vi. Vi nos olhos dela o que havia por trás daquela proteção toda. Não era só instinto de combate. Era medo. Medo por mim.

    Minha garganta se fechou. Baixei o olhar, respirando fundo.

    — Tá… eu entendo. — sussurrei, engolindo a dor. — Mas entender… não faz doer menos.

    Ela não respondeu. Mas também não soltou meu ombro.

    Com as ervas ainda apertadas entre os dedos, me abaixei devagar. Meus olhos voltaram para o campo, onde a poeira escondia os corpos que caíam um a um. Aqua gritou algo, mas minha mente já estava longe demais pra entender.

    Se eu ao menos conseguisse misturar isso em uma infusão… ou moer e aplicar diretamente… Mesmo não sendo possível eu precisava tentar algo. Qualquer coisa. Nem que fosse pequena.

    Antes que pudesse agir, a serpente rugiu mais uma vez. O som reverberou por toda a torre e algo em seu tom me fez gelar.

    Aqua continuava liderando a batalha com uma força quase sobrenatural, comandando a água com precisão, raiva e coragem. Ela era um redemoinho em forma humana, mantendo a criatura instável. E mesmo assim, eu só conseguia me sentir… inútil.

    Selene estava ao meu lado. Ainda ali. Ainda presa a mim como se eu fosse um alvo frágil a ser guardado. E por mais que aquilo fosse um conforto disfarçado, era também um peso insuportável. Eu sentia que, ao estar ali, eu estava arrastando ela pra baixo. Que minha presença era um empecilho.

    Eu estava atrás da linha de fogo, enquanto todos lutavam com suas vidas para fugir desse pesadelo.

    Apertei os punhos com força, sem saber onde colocar a culpa… nos meus pés imóveis, nas mãos trêmulas, ou no coração que só batia porque outros estavam lutando para isso.

    Rose se movia de corpo em corpo. Os olhos cheios de angústia, as mãos brilhando com aquele verde reconfortante, tentando curar o máximo de aventureiros possível. Ela era uma fonte de esperança entre os gritos. A cada lampejo da sua magia, uma vida era mantida viva por mais alguns segundos. Talvez minutos. Mas a cada segundo perdido, outros tombavam.

    A criatura… a guardiã da torre. Rugia ainda monstruosa, ainda feroz. Mas seus movimentos não tinham mais a mesma precisão do início. Ela oscilava. Parecia… mais lenta. Ainda assim, o poder que emanava era sufocante. Os membros da guilda se espalhavam em volta dela, atacando de todos os lados com uma coragem desesperada.

    Foi então que eu ouvi.

    Um grito.

    Uma voz famíliar que me atingiu como uma lâmina.

    — Hernán?

    Me virei para a direção do som, e o que vi apertou meu estômago como uma garra. Ele voou pelo ar como um boneco de pano, lançado por uma pancada da criatura que ele tentou bloquear.

    — Hernán! — Sophia gritou, a voz embargada.

    Mas ela não foi até ele. Não podia. Seus olhos estavam cravados na criatura, e suas mãos puxavam flechas elétricas uma após a outra, disparando sem parar.

    Sem pensar, comecei a correr em seu lugar. Mas a mão de Selene me segurou de novo, como uma âncora.

    — Você não pode sair do meu lado!

    Girei para ela, furiosa, frustrada, e por um segundo nem me reconheci.

    — A minha vida não vale mais que a de ninguém aqui! — minha voz explodiu, crua. — Ficar me protegendo assim só vai fazer essa luta se arrastar ainda mais. Vai morrer mais gente! Você não entende? Eu não quero ser o motivo de mais mortes!

    Ela hesitou.

    Por um instante, vi algo nos olhos dela que nunca tinha visto antes. Culpa. Dor.

    — Quando eu te vi caída na vila, durante o ataque do demônio da Gula… — disse ela, a voz baixa, arranhada. — Eu achei que tinha perdido você. Que tinha falhado. Eu devia ter te protegido melhor. Devia ter percebido mais rápido…

    — Mas eu tô aqui agora! — interrompi, engolindo as lágrimas. — E só tô aqui porque você lutou com tudo que tinha… Porque nós lutamos com tudo que tínhamos… juntas. Mas isso… isso que você tá fazendo agora… isso não é lutar, Selene.

    Ela me respondeu com o silêncio.

    Ela me encarou por um momento. Então soltou meu braço.

    E, sem dizer nada, se virou.

    O ar ao nosso redor pareceu vibrar quando sua aura escarlate a envolveu. Era como se o sangue dela queimasse em luz viva. Num piscar de olhos, ela desapareceu da minha frente e o mundo na minha frente virou um borrão vermelho.

    A próxima coisa que vi foi a imagem dela a poucos centímetros da guardiã. A voz dela explodiu como um trovão:

    — Impacto Carmesim!

    Selene colidiu com a criatura como um cometa. O impacto sacudiu o chão liberando uma onda de choque que me empurrou alguns centímetros para trás. A guardiã foi arremessada como um projétil, atravessando parte da estrutura da caverna. O eco do estrondo reverberou por todo o andar.

    Aqua, ainda em posição, lançou um sorriso breve, exausta, mas satisfeita.

    — Até que enfim maldita…

    Aproveitei a abertura. Corri para Hernán, me ajoelhei ao lado dele e segurei as ervas que ainda restavam. Esfreguei com força entre as mãos, ativando os compostos da maneira que Hernán me ensinou. Apliquei a mistura no peito dele, pressionando sobre o ferimento.

    Ele abriu os olhos com dificuldade, a respiração falha, e sorriu torto.

    — Você tá ficando boa nisso… em ajudar os feridos… quem diria… que eu seria um deles…

    — Não é como se eu tivesse escolha, né? — respondi, forçando um sorriso, tentando esconder o medo.

    — Ainda bem… que cê é teimosa…

    — E você ainda fala demais para alguém nessa condição.

    Ele riu enquanto tossia. Por um segundo. Antes de desmaiar.

    Segurei sua mão por um momento, sentindo o calor ainda presente nela. Ele tava vivo.

    Me virei, esperando que o pesadelo tivesse finalmente acabado.

    A guardiã estava imóvel, enterrada nos escombros. Todos prenderam a respiração. Parecia o fim. O silêncio caiu como um véu sobre nós.

    Então… um som estranho começou a ecoar. Baixo. Molhado. Orgânico.

    Todos ficaram em alerta. Armas erguidas. Magias sendo carregadas. O ar mudou. Gelou em um instante.

    E então, o som parou.

    Só por um segundo.

    Como a respiração de algo que aguarda o próximo ataque.

    Como a sombra que antecede o relâmpago.

    Fim do capítulo 48: Atrás da Linha de Fogo.

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