Índice de Capítulo

    O silêncio que se seguiu era tudo, menos conforto.

    A serpente de escamas negras jazia estendida sobre o chão encharcado, exatamente onde Selene a havia deixado. Não se movia, não respirava… ou, ao menos, não dava sinais disso. Mas o som… aquele ruído constante, grave e molhado, como um sopro abafado, permanecia reverberando pelas paredes da torre.

    Ninguém relaxou. Ninguém comemorou. A tensão pairava no ar como um fio de aço entre os ombros de todos.

    — Isso… acabou? — murmurou alguém, mas ninguém respondeu.

    Até que um dos aventureiros: um homem de armadura desgastada e olhos claros, deu um passo hesitante à frente.

    — Eu vou verificar. Se ela ainda estiver viva, dou o golpe final.

    Aqua tentou dizer algo, mas segurou. O homem assentiu para ela, sacando sua lança e caminhando com cautela. A cada passo que dava, o som tornava-se mais nítido, como se o ritmo ecoasse sob seus pés.

    Ele parou. Olhou por cima do ombro, recebendo olhares de todos nós. Depois continuou.

    Sua figura era a única em movimento. O resto do mundo parecia congelado. Ele se aproximou da criatura caída, observando-a de perto.

    — Levou um bom golpe — disse, ainda curvado. — As escamas estão chamuscadas… não está se mexendo. Eu acho que…

    E então, ele se virou.

    — Nós vencem…

    A frase nunca terminou.

    Algo cortou o ar com uma brutalidade invisível. Um impacto estalou no ar quando o corpo do homem foi arremessado como um boneco de pano, colidindo com uma coluna de pedra.

    Aqua saltou num instante, interceptando-o no ar antes que seu corpo batesse contra o chão.

    — Mas o que foi isso?! — ele engasgou, o rosto tenso de dor. — De onde…?

    Todos os olhares voltaram-se para a serpente caída. Ainda ali. Inerte. O som, agora, parecia mais próximo, mais vibrante. Então, sobre o corpo da guardiã, uma névoa azulada começou a se espalhar como um véu.

    — Mas o que…? — murmurei.

    Em meio a névoa, uma forma colossal começou a emergir: A silhueta imensa de uma serpente de escamas azul profundo, olhos translúcidos e brilho espectral.

    — Ela parece a serpente que saiu da caverna, deve estar tentando ganhar tempo — gritou um dos aventureiros. — Tá tentando nos enganar de novo com essa ilusão!

    — Não! Esperem! — Aqua ergueu a voz, mas era tarde demais.

    Num rugido de fúria e glória, os aventureiros avançaram. Ignoraram a figura azul, correndo em direção ao corpo da guardiã como quem corre para terminar uma guerra.

    E então… a cauda da serpente azul se moveu. Simples, certeira.

    Um único movimento e os aventureiros foram atingidos como se fossem folhas no vendaval. Alguns rolando pelo chão molhado, outros sendo jogados contra as colunas. Gritos e gemidos tomaram o ar.

    — Mas… não era uma ilusão?! — alguém bradou, confuso.

    Aqua firmou os pés, os olhos arregalados.

    — Formem uma linha! Assumam formação!

    Selene não esperou. Com sua lâmina já envolta em chamas vibrantes ela avançou, sem hesitar.

    — Parece que você ainda tem muitos truques, não é mesmo!?

    As labaredas se projetaram em ondas, atingindo a serpente com força. Um mar escarlate engoliu a criatura. O calor quase me empurrou para trás, mesmo à distância. Mas quando as chamas cessaram… a serpente estava ali. Intacta.

    — Mas que…! — Selene cerrou os dentes.

    Ela atacou de novo, uma sequência rápida de cortes. A serpente respondeu com sua cauda, em um movimento seco.

    Selene cruzou os braços em defesa, as chamas tentando contornar o impacto, mas foi inútil… o golpe a lançou para trás como uma flecha, até colidir com uma pilastra, rachando a pedra.

    Ela caiu de pé, arquejando.

    — Mas que droga foi essa?!

    — O quê? — Aqua perguntou, já correndo para ajudar.

    Selene se virou, o cenho franzido de confusão e raiva.

    — Meus ataques não atingiram ela… Era como lutar conta o vento, e seu ataque, eu vi a cauda vindo na minha direção, mas o impacto me atingiu antes do que deveria — sua expressão era um misto de confusão e indignação.

    Os ataques contra a nova guardiã se sucediam em ondas, como o mar tentando vencer um rochedo imutável. Magia, aço, fogo — nada parecia funcionar. A serpente azul movia-se com uma leveza monstruosa, seus movimentos largos e calmos destoavam da intensidade com que lutávamos. Era como se soubesse que nada ali podia feri-la.

    Os aventureiros tentavam se coordenar, atacando pelos flancos, distraindo-a, buscando um ponto cego. Mas era inútil. Sempre que alguém pensava ter acertado um golpe, o impacto parecia escorregar pela criatura, como se estivessem realmente lutando contra uma ilusão, mas os ataques da guardiã se mantinham reais.

    Selene recuou, os olhos afiados cravados na criatura.

    — Eu juro… — murmurou para si mesma — …que vi a cauda vindo de um lado, mas o ataque me pegou antes. Como se ela estivesse… em dois lugares ao mesmo tempo.

    Aquilo me arrepiou. Não só pela ideia absurda, mas pela forma como ela disse. Convicta. Inquieta.

    Meu olhar se desviou quando senti Rose se aproximar. Ela parou ao meu lado, o rosto iluminado pela luz suave de sua energia esverdeada.

    — Vou cuidar dele — disse, com serenidade enquanto se abaixava ao lado de Hernán.

    Assenti, ainda tentando absorver o que estava acontecendo, observei Rose usando sua magia, a energia cobriu o corpo de Hernán e algumas flores e ramos surgiram ao seu redor, após alguns segundos Hernán já estava sentado, respirando com certa dificuldade, mas… inteiro. Nenhum osso quebrado. Apenas cortes superficiais.

    — Ele já está… melhor? — perguntei, surpresa.

    — Ainda tem ferimentos internos leves, mas… o corpo dele parece ter reagido bem. — Rose parecia tão surpresa quanto eu, embora tentasse manter a compostura. — Algo nele… está acelerando a recuperação, talvez essas ervas.

    Suspirei, sentindo um nó se afrouxando no peito.

    — Essa batalha ainda está longe de terminar. — Minhas mãos tremiam, mesmo que eu tentasse esconder. — Eu queria poder ajudar na batalha.

    Um pensamento me atingiu em lampejo, meus olhos buscaram Rose outra vez. Uma imagem se formou na minha mente, um detalhe sutil que eu não podia ignorar.

    — Rose… acho que a outra Rose poderia ser de grande ajuda na batalha.

    Ela me olhou, confusa. A expressão de quem não entendeu o que foi dito… ou de quem queria fingir que não entendeu.

    — O que quer dizer? — murmurou, desviando os olhos, voltando a focar em Hernán.

    Algo naquela reação me incomodou.

    Mas antes que eu pudesse insistir, a serpente se moveu novamente. Um deslizamento quase elegante, como se nadando através do próprio ar. Seus olhos pareciam atravessar tudo, inclusive nós. E, mais uma vez, os golpes da linha de frente não surtiram qualquer efeito.

    A espada de um guerreiro acertou em cheio o que deveria ser a lateral da cabeça da criatura, mas o som foi vazio, como aço cortando o vento.

    Outra lança penetrou o ar próximo ao dorso da serpente, e o impacto foi tão falso quanto o anterior.

    E então percebi. Havia algo errado no modo como ela se movia. Não era só uma questão de velocidade, ou evasão. Era um… atraso, assim como Selene disse.

    O movimento do corpo dela parecia preceder ou suceder a própria imagem. Como se cada parte da criatura estivesse vivendo em um tempo levemente descompassado: como assistir a um reflexo ondulando na água enquanto a pedra que o causou já afundou.

    O rugido da serpente ecoava como um trovão afogado, vibrando no peito e espalhando um frio pela espinha. As espirais de água que se erguiam em torno dela quebravam a luz em fragmentos, como se o piso estivesse coberto de vidro líquido. Eu me mantinha um pouco recuada, tentando acompanhar os movimentos. Os ataques do grupo atravessávam as escamas azuladas como se nem tivessem acontecido.

    Foi quando algo me chamou atenção. Não o golpe, mas o momento antes dele. A água atrás da serpente se agitava levemente, como se tivesse sido cortada por alguma coisa… antes que qualquer ataque a tocasse. Franzi o cenho. Selene tinha comentado sobre golpes que pareciam chegar antes do esperado.

    Rose se aproximou, seu cabelo grudado no rosto pela umidade, ela se manteve ao meu lado enquanto liberava o ar dos pulmões exausta.

    Ela havia usado muita energia para curar os aventureiros, eu não ficaria surpresa se ela desmaiasse a qualquer momento.

    — Rose, tenta descansar um pouco, você está exagerando, algo ruim pode acontecer.

    — A luta ainda não acabou… Não posso me dar ao luxo de descansar ainda, o mínimo que posso fazer é deixá-los vivos… — suas palavras carregavam uma enorme determinação.

    Não me senti no direito de dizer mais nada, ela estava tentando seu melhor e eu deveria tentar o mesmo. Eu não tinha uma conclusão ainda. Mas meu estômago já sabia antes da minha cabeça: havia algo aqui que não estávamos vendo.

    A água estava agitada, não só pela luta, mas… havia algo estranho no ritmo das ondas. Cada vez que a serpente se erguia, o deslocamento não parecia condizer com o lugar em que estava. Era como se as ondulações corressem de um ângulo diferente, vindo de um lugar onde ela não deveria estar.

    Meu olhar se moveu instintivamente para as sombras projetadas nas rochas próximas. A dela tremulava e se distorcia, mas… havia um atraso, um descompasso mínimo entre o movimento real e a silhueta no chão molhado. Um atraso quase imperceptível, mas suficiente para arrepiar a minha pele.

    Tentei acompanhar o corpo dela pela água, e percebi que a cauda parecia sumir por instantes, reaparecendo adiante, como se atravessasse a distância de forma impossível.

    Mordi o lábio. O som das escamas cortando a água também não batia com o ponto em que eu via os impactos contra os aventureiros. Algo aqui não fazia sentido… quanto mais eu observava, mais a sensação de que estávamos atacando uma ilusão sólida tomava forma, mesmo sem que eu conseguisse explicar o porquê.

    Selene se aproximou rapidamente de mim, mantendo o olhar na guardiã enquanto falava:

    — Ashley, estou com um certo pressentimento… Lembra de quando pedi para focar sua atenção em seus amigos? —lançou um olhar por cima do ombro. — Eu gostaria que fizesse a mesma coisa com a guardiã…

    — Quer que eu tente ver a aura dela?…

    Fim do Capítulo 49: Espelho de Estilhaços.

    Apoie-me

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota