Capítulo 58: A Oferenda do Fogo.
Quando fechei os olhos, Selene ainda estava em meus braços, sangrando, tão frágil que parecia que a qualquer instante poderia desaparecer. O peso da lembrança com Sienna esmagava meu peito, e por um momento, temi que estivesse destinada a perder outra pessoa importante para mim. Mas quando abri os olhos de novo… não havia mais ninguém. Nem Selene. Nem a guardiã. Apenas eu.
Um salão vasto e escuro se estendia diante de mim, tão silencioso que o som da minha respiração parecia um grito. O chão liso refletia os poucos fragmentos de luz que se infiltravam, como se eu estivesse cercada por uma noite sem fim. Eu não fazia ideia de como tinha chegado ali. Seria isso um sonho? Ou teria morrido na luta contra a Guardiã? O pós-vida…?
Minha garganta secou. Eu precisava voltar. Eu precisava voltar para Selene.
Foi quando uma voz soou, cortando o vazio:
— Eu não estava esperando visita alguma. Como veio parar aqui, criança?
Arrepiei inteira. Era uma voz feminina, quase etérea, carregada de um ímpeto que eu nunca havia sentido antes, como se cada palavra fosse carregada de fogo e autoridade. Virei bruscamente para a direção do som e vislumbrei uma silhueta imóvel no centro da escuridão.
— Q-quem está aí?! — minha voz saiu trêmula.
A figura ergueu uma das mãos. Um estalar de dedos ecoou, e então o salão se encheu de luz. Chamas se acenderam em piras altas, tochas foram tomando vida, revelando o cenário ao meu redor. Eu estava em um lugar grandioso: pilares marcados com ornamentos em forma de labaredas, tecidos vermelhos, dourados e brancos decorando o ambiente, espadas e lanças meticulosamente expostas nas paredes como símbolos de honra e guerra. O brilho das chamas refletia no chão como em um espelho, dando a impressão de que eu estava em uma espécie de palácio real construído com alguns materiais desnecessariamente caros.
No meio do salão, vi um trono. Um trono dourado, gravado com símbolos de fogo. Sentada nele, a silhueta se tornou uma visão impossível de ignorar: uma mulher de armadura dourada, cabelos que pareciam fios de fogo vivo, olhos em brasas como pequenos sóis e asas douradas que se abriam imponentes atrás dela. Ao lado do trono, um escudo repousava, tão ornamentado quanto o resto.
Ela me observou, e com uma calma que me paralisou, repetiu:
— Você não é a minha campeã… como veio ao meu domínio, criança?
Senti um arrepio percorrer cada pedaço do meu corpo. A pressão de sua presença era sufocante, como se estar diante dela fosse carregar o peso de uma eternidade. Inocentemente murmurei:
— Você… você parece uma Deusa das histórias que eu lia…
Ela deixou escapar uma risada breve, como se aquilo fosse apenas uma lembrança distante.
— Pareço é? — repetiu, rindo de novo, antes de balançar levemente a cabeça. — Bem isso não importa agora. Responda-me: como chegou até aqui?
Engoli em seco.
— Eu… não sei. Um instante atrás, eu estava na Torre do Abismo e…
— Então é isso… — ela disse, pensativa. — Seu corpo ainda deve estar preso no domínio de… — pronunciou um nome que não consegui compreender, soou como um ruído esquisito, como se fosse uma palavra que minha mente não pudesse reter — mas, de alguma forma, sua mente escapou e veio parar aqui.
Dei um passo à frente, desesperada.
— Eu preciso voltar para lá. Preciso ajudar Selene de alguma forma!
O olhar dela mudou. A forma como seus olhos de fogo se fixaram em mim me deixou sem ar.
— Selene? O que aconteceu com essa pessoa?
Minhas mãos tremeram ao apertarem o tecido da minha roupa.
— Ela estava lutando contra a Guardiã da torre… ela foi gravemente ferida…
Por um instante, a mulher fechou os olhos, como se refletisse sobre algo maior que eu poderia compreender. Quando os abriu de novo, falou com seriedade:
— Isso não soa nada promissor. Mas o que exatamente você pretende fazer nessa situação? — inclinou levemente a cabeça. — Não sinto poder algum em você.
Mordi o lábio, segurando a raiva e o medo que me sufocavam.
— Talvez seja verdade… talvez eu não tenha poder. Mas uma amiga me disse uma vez que não é apenas isso que te faz forte. Eu… eu não posso ficar parada! — minha voz saiu trêmula, mas firme. — Mesmo sem força alguma, eu preciso proteger aqueles que são importantes para mim! Antes de conhecer Selene eu não tinha nada… nenhuma expectativa além das muralhas de Rivendrias. Nunca imaginei ver o mundo, conhecer tantas pessoas, sentir tudo isso… E agora… eu… eu preciso dar um jeito.
Um silêncio denso caiu entre nós. Até que ela disse, com um leve sorriso enigmático:
— Convicção é algo bom, mas sem poder para sustentar essa convicção ela se torna apenas uma bela ilusão… existem diversas situações que podem ser resolvidas com determinação e uma pitada de sorte, mas nesse caso o que você precisa é de poder… — Apoiou o cotovelo no trono e repousou o queixo sobre a mão sem pressa alguma. —Mas e se houver um jeito, garota?
Pisquei, confusa.
— Um jeito…?
— Nunca tentei isso antes — sua voz ganhou peso, como se estivesse oferecendo algo que não deveria. — Mas como você é alguém sem cores… talvez funcione. — Então, ergueu a mão em minha direção. — Suas mãos são pequenas demais para segurarem a minha luz. Mas se o seu desejo de proteger aqueles que ama for realmente forte… aceite essa oferta, é o melhor que posso fazer por você agora.
Meus pés avançaram sozinhos. A cada passo, meu coração parecia arder, dividido entre medo e esperança. Da palma da mão dela, surgiu uma chama dourada, viva, pulsante, como se fosse feita do próprio sol.
Parei diante dela, o calor da chama já ardia minha pele.
— Mas… quem é você?
Ela apenas me olhou, como um mistério impossível de decifrar.
— Você não está pronta. Quem sabe se nos encontrarmos de novo… talvez eu possa dizer o meu nome.
Antes que eu pudesse hesitar, estendi minha mão. A chama mergulhou em meu peito, queimando, preenchendo cada parte de mim. Meu coração disparou, minha mente foi inundada por flashes: a luta contra a Guardiã, Selene caida, as chamas azuis…
Quando tomei noção novamente do que estava acontecendo estava nos braços de Selene, ela parecia de alguma forma estar bem. Consegui?
— Selene… — sussurrei, com uma dor latejando dentro de mim.
Meus olhos ardiam quando abriram de repente. O teto de madeira, iluminado pela luz suave que atravessava as frestas da janela, demorou alguns segundos para tudo fazer sentido. O calor do sonho ainda queimava dentro de mim, mas aos poucos percebi onde estava: o quarto da pousada em Nautiloria.
Minha respiração foi se acalmando. Eu estava viva. Não havia mais sangue, nem Guardiã, nem aquela mulher no trono. Apenas o silêncio confortável de um quarto.
Virei o rosto para o lado e vi Rose, adormecida, debruçada sobre a beira da cama. Seus cabelos, novamente verdes, caíam sobre os ombros, balançando levemente a cada suspiro. Fiquei alguns segundos apenas olhando, até que ela se mexeu, coçou os olhos e piscou, confusa, antes de finalmente perceber que eu estava acordada.
— Ashley?! — sua voz saiu em um sussurro entre choro e riso. Num instante, ela se lançou contra mim, me abraçando com força. — Você acordou! Eu achei que… eu achei que não fosse acordar mais…
— Calma, calma… eu estou bem — disse, mesmo sem acreditar completamente nisso. — Mas… como eu vim parar aqui? O que aconteceu na Torre do Abismo? Onde está a Selene?
Ela afastou-se só o suficiente para me olhar, ainda segurando meu braço como se tivesse medo que eu desaparecesse.
— Ei, respira. Uma pergunta de cada vez. Eu… também não lembro de tudo. Depois de certo ponto na torre, minha mente ficou meio confusa… só sei que nos disseram que conseguimos derrotar a Guardiã.
— Conseguimos? — repeti, tentando processar.
— É. Não contaram os detalhes, só que ela foi derrotada. Quanto a você estar aqui… bem, depois da luta, todos os aventureiros apareceram de volta na praia, de onde tínhamos partido. Eu acordei já no meu quarto da estalagem e fui descobrindo as coisas aos poucos.
Ela mordeu o lábio, como se não quisesse continuar, mas forçou as palavras:
— Você… você não acordava, Ashley. Ficou dias assim. Eu… pensei que talves você estivesse quebrada, não sei.
Segurei suas mãos com força.
— Mas eu estou bem, Rose. Estou aqui agora.
Ainda assim, não consegui conter a próxima pergunta.
— E Selene? Onde ela está?
Rose desviou os olhos.
— Acho que ainda está na guilda… pedindo desculpas ao pessoal.
— Pedindo desculpas? — franzi o cenho. — Por quê?
— Algo sobre não ter protegido todo mundo melhor… e… guardar algum tipo de segredo. Não perguntei muito. — Ela deu de ombros, suspirando. — Mas pediram para eu te avisar: se você acordasse, deveríamos ir para a guilda.
Levei a mão à testa, tentando organizar tanta informação de uma vez. Mas então algo gelado me chamou a atenção. Um peso estranho no meu dedo. Olhei… e congelei.
— O que… o que é isso? — estendi a mão para Rose, mostrando um anel preto, marcado por uma joia rubra brilhante — Rose, por que eu estou com isso?!
Ela engoliu em seco, visivelmente nervosa.
— Er… hum… Então… esse anel… aparentemente é um artefato amaldiçoado que a Torre do Abismo vinculou a você. — disse em uma velocidade que quase fez com que eu não entendesse nada.
Pisquei, tentando digerir.
— É um quê?
— Um artefato.
— E ele faz o quê?
— Amaldiçoa.
— Aaaah… legal. — comecei a puxar o anel do dedo em desespero. — Sai, sai, sai, sai!
— Não! — Rose segurou minha mão, quase em pânico. — Vai arrancar o dedo desse jeito!
Respirei fundo algumas vezes até me acalmar, mas o maldito anel continuava firme, como se fosse parte de mim. Rose suspirou e explicou com mais cuidado:
— Elas já tentaram remover, mas parece que ele criou algum tipo de ligação com você. Ninguém sabe o que aconteceria se forçado a sair… então… por enquanto, melhor não arriscar.
Cruzei os braços, bufando.
— Ótimo. Primeiro acordo de um sono quase eterno, e já estou amaldiçoada, que sorte a minha.
Rose sorriu de leve, mas seu olhar mostrava preocupação.
— Pelo menos até agora ele não fez nada de ruim. Então… vamos focar no mais urgente, sim?
Suspirei e assenti. O anel podia esperar. Eu precisava ver Selene.
— Certo. Vamos para a guilda.
Me levantei ainda sentindo o peso da chama dourada dentro de mim, como se aquele sonho tivesse deixado algo mais que lembranças. Talvez fosse só minha imaginação. Talvez não.
Fim do capítulo 58: A Oferenda do Fogo.
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