Índice de Capítulo

    Antes que pudéssemos sair, meu estômago roncou tão alto que quase ecoou pelo quarto. Rose arqueou uma sobrancelha e riu, como se já esperasse por aquilo.

    — Sabia que isso ia acontecer. — Ela apontou para o canto. — Selene pediu antes de sair que trouxessem uma refeição reforçada pra você.

    Virei o rosto e só então percebi a bandeja de metal com um cloche prateado repousando sobre a mesinha. Rose removeu a tampa com um gesto quase cerimonial, revelando um café da manhã digno de um banquete.

    Havia pão caseiro ainda quente com a casca crocante e dourada, uma fatia generosa de carne assada temperada com ervas, ovos mexidos levemente amanteigados, frutas frescas: uvas, maçãs e figos cortados em pedaços. Além de uma caneca de chá com leite coberto por uma espuma suave e açucarada. O cheiro era intenso, acolhedor, e me fez salivar imediatamente.

    — Tá esperando o quê? — Rose cutucou meu braço. — Se não comer, eu como.

    Não precisei de mais incentivo. Comemos juntas, rindo entre uma garfada e outra, até que meu corpo finalmente parecia ter recobrado as forças de verdade. Depois, arrumamo-nos e seguimos pelas ruas de Nautiloria.

    A cidade estava diferente. No dia em que o rei anunciou a recompensa, as ruas vibravam com gritos, multidões e alvoroço. Agora, embora ainda houvesse vida, o clima parecia mais contido, como se as pessoas ainda estivessem digerindo tudo o que havia acontecido na torre.

    Chegamos à guilda e, assim que entramos, a cena foi quase surreal. Aventureiros riam alto, dançavam e bebiam como se não houvesse amanhã. O salão estava tomado por um ar festivo, copos tilintando, passos pesados batendo no chão. Eu nunca tinha visto tanta alegria reunida daquele jeito.

    Procurei por Hernán e seu grupo, mas não os vi em meio à confusão. Dei alguns passos para dentro e foi então que percebi: pouco a pouco, os sons foram diminuindo. Riso após riso cessava, até que restava apenas o peso dos olhares sobre mim.

    Meus pés gelaram. O que… o que foi? pensei em voz baixa, sem entender porque estavam me encarando.

    Então, como se tivessem combinado, começaram a bater os copos contra as mesas. As batidas viraram ritmo, e logo vieram os gritos. Aclamações. Brados que eu não entendia direito, misturados ao som de madeira e metal se chocando. Antes que pudesse protestar, mãos firmes me ergueram, e num instante eu estava sobre os ombros de dois aventureiros bêbados, sendo carregada em meio a risadas e cantos embriagados.

    — Nossa pequena heroína de fogo! Yeeeeh!

    — Ei, o que vocês estão fazendo?! — gritei, mas eles só gargalhavam mais.

    Foi a voz de Selene que cortou a confusão.

    — Soltem ela! Agora!

    O salão silenciou de imediato, como se o próprio som tivesse obedecido. Selene caminhava ao meu encontro, Aqua ao seu lado. Antes que eu pudesse reagir, Selene me puxou para seus braços, apertando-me contra si com uma força que quase me desmontou.

    — Ashley… graças aos céus… você acordou. — Sua voz falhou, quase um sussurro, mas carregada de emoção.

    Eu a envolvi de volta, sentindo o calor familiar de sua presença.

    — Eu também estou feliz que você esteja bem, Selene. Muito feliz…

    Por um instante, o salão inteiro desapareceu. Só existíamos nós duas.

    Aqua foi quem nos trouxe de volta à realidade.

    — Ainda bem que acordou, Ashley. E a tempo. — Seu tom era mais contido, os olhos carregando um abatimento que me fez estremecer. — Hoje, no fim da tarde, teremos uma cerimônia… quero que você esteja lá.

    Assenti em silêncio, sem questionar. Havia algo sério naquela voz que não admitia hesitação.

    — Mas antes — Aqua continuou — preciso que você passe na recepção. Tenho uma surpresa para você e para Rose.

    Troquei um olhar intrigado com Rose, que deu de ombros. Seguimos até o balcão principal. A atendente da guilda nos recebeu com um sorriso discreto, como se estivesse guardando um segredo.

    — A mestra fez questão que essas estivessem prontas o quanto antes. — Ela desapareceu numa sala atrás do balcão e retornou carregando uma caixa metálica robusta, que colocou diante de nós com cuidado.

    Olhei para Rose e depois para a atendente.

    — O que… é isso?

    — Vejam vocês mesmas.

    Dei um passo hesitante, lembrando do anel e do baú da torre.

    — Olha… a última vez que abri um baú não terminou nada bem…

    Ainda assim, com as mãos trêmulas, levantei a tampa da caixa. Dentro, reluzindo sob a luz das tochas, estavam dois cartões prateados perfeitamente polidos.

    — Peguem. — disse a atendente, quase solene.

    Obedecemos. Assim que o frio do metal tocou minha pele, ela sorriu abertamente.

    — Bem-vindas à nossa família. Esses são seus cartões de licença de aventureiras.

    Meu coração disparou. Olhei para o cartão como uma criança que recebe seu primeiro presente de verdade. Quase não conseguia acreditar ao ver meu nome estampado sobre aquela pequena placa de metal.

    — Eu… eu sou uma aventureira… de verdade.

    Rose sorriu para mim, e pela primeira vez em alguns dias, senti que algo bom realmente estava acontecendo.

    Demorei a me recompor. Respirei fundo e encarei a atendente novamente.

    — Mas… e o teste prático? Eu apenas realizei o teste escrito.

    Ela riu de leve.

    — A própria mestra fez questão de encomendar os cartões o mais rápido possível. Depois do que aconteceu na torre, todos concordam que não há necessidade de mais testes.

    — Mesmo assim, elas vão fazê-lo. — A voz de Selene surgiu atrás de nós, firme como ferro.

    Virei para ela, desnorteada.

    — O quê? Mas…

    — É necessário, Ashley. Você precisa passar por todas essas etapas. Faz parte do treinamento. — Seu olhar era sério, quase rígido.

    A atendente suspirou, mas assentiu.

    — Se é isso que deseja, posso agendar, mas não pode ser hoje. Irei checar a disponibilidade para amanhã pela manhã.

    — Eu entendo. — Selene respondeu, encerrando o assunto.

    Fiquei ali, com o cartão apertado contra o peito, dividida entre orgulho e nervosismo.

    Eu era, oficialmente, uma aventureira.

    Aqua veio e se manteve firme diante de mim e de Rose, mas seu semblante carregava algo de pesado, como se as palavras tivessem sido ensaiadas diversas vezes em sua mente.

    — No fim da tarde teremos uma cerimônia — disse ela, quase como um aviso solene. — É um momento importante para a nossa guilda, para todos nós. Sempre que aventureiros chegam ao fim de suas jornadas… fazemos questão de lembrá-los. É uma tradição. Esperamos que cada membro disponível esteja presente, e agora que todos voltaram da torre, finalmente podemos realizar isso.

    Ao ouvir aquilo, senti um aperto no peito. Minha mente logo foi tomada pelos rostos daqueles que não vi mais depois da torre. Um silêncio breve se estendeu entre nós, mas que pesava mais do que qualquer barulho dentro da guilda.

    Quando saímos para o salão principal, percebi que chegaram pessoas que não estavam ali antes. Entre elas, um homem que imediatamente chamou minha atenção: portava uma armadura robusta que parecia pesar mais que eu mesma, e em suas costas estava uma espada enorme, larga o suficiente para que eu questionasse se alguém de fato conseguiria manejá-la com eficiência. Ele parece forte, pensei alto sem perceber, e Rose deu uma olhada rápida, concordando com um aceno discreto.

    Pouco depois, meus olhos encontraram Hernán, Sophia e Cratos. Sorri ao vê-los, e fui até eles quase que por instinto.

    — Vocês… estão bem? — perguntei, tentando soar leve, mas ainda carregando a sombra da cerimônia que se aproximava.

    — Estamos… eu acho — respondeu Hernán, mas logo desviou o olhar para o chão.

    — Nós não encontramos o mestre, tivemos a esperança de que ele estaria entre os que foram transportados para a praia, mas nada… — Sophia completou.

    — Nem um rastro — acrescentou Cratos, cruzando os braços. — É como se tivesse ficado preso lá dentro ou…

    Ele parou antes de terminar a frase, mas eu sabia bem o que ele queria dizer. Não encontrei palavras para confortá-los. Tudo o que pude fazer foi assentir em silêncio, compartilhando da mesma dor. Sophia me envolveu em um abraço e agradeceu por tudo.

    — Ashley eu acredito que falo por nós três quando dig isso… foi graças a você que conseguimos sair daquele inferno. — Sua expressão clareou um pouco. — Te agradeço particularmente por me ajudar a entender uma nova forma de poder. — sussurrou.

    — É verdade Ashley, e espero que algum dia a gente participe de alguma missão juntos. — Hernán disse enquanto apontava para o cartão da guilda.

    — Seria legal, mas nada que envolva baús com dentes. — acrescentou Cratos deixando uma leve risada no ar.

    Fazia tão pouco tempo que conheci esses três, mas me sentia como se fizessem anos. Eu quero sair em alguma aventura com eles algum dia.

    — Na verdade eu que tenho que agradecer a vocês, pois sem vocês eu não teria passado nem do primeiro andar… sei que não foi no melhor dos momentos, mas vocês foram as melhores companhias naquele inferno.

    Eles me fecharam em um abraço apertado.

    — Bem vinda, não só a guilda como membro secreta do nosso grupo. — Hernán disse com um sorriso contagiante. — Vamos jogar RPG mais tarde e você está convidada.

    Eu não fazia a menor ideia do que era esse jogo, mas assenti com a cabeça dizendo que iria participar.

    Quando o fim da tarde chegou, fomos todos conduzidos à praia. O sol começava a se despedir no horizonte, tingindo o céu de tons alaranjados e dourados, refletindo no mar calmo que parecia respeitar a ocasião.

    Havia uma grande fogueira montada no centro, cercada pelos aventureiros em um semicírculo. O ar carregava um peso cerimonioso, mas também havia algo de bonito: uma lembrança coletiva de quem caminhou até o limite de sua aventura.

    Aqua deu alguns passos à frente, erguendo a voz, mas mantendo um tom que parecia um cântico:

    — Hoje celebramos não o fim, mas a jornada. Cada um que não retornou trouxe luz e coragem para todos nós. E cada chama que se apaga no mundo, reacende dentro da guilda como uma memória de brilho eterno.

    Alguns se curvaram, outros baixaram a cabeça em respeito. Eu senti meu coração apertar ao pensar em quantos rostos eu não veria mais sorrindo, rindo, brigando ou bebendo ao redor de uma mesa.

    No ponto mais alto da cerimônia, os nomes daqueles que não retornaram foram chamados, um a um, e para cada nome uma tocha era acesa e lançada ao mar, como se a chama pudesse iluminar o caminho daqueles que se foram. Quando o último nome ecoou pelo ar, o silêncio foi absoluto, quebrado apenas pelo estalar da fogueira e o som suave do mar.

    Fechei os olhos. Por um instante, deixei-me envolver pelo vento carregado de sal, pelas vozes caladas e pelo peso da ausência. Foi como um funeral, sim, mas também como um pacto silencioso entre nós, os que permaneceram: continuaríamos a caminhar, mesmo com o fardo daqueles que ficaram para trás.

    E assim, com a última tocha se apagando sobre as ondas, um sentimento se tingiu dentro de mim como a noite que lentamente tomava o céu.

    Fim do capítulo 59: Mar de Cinzas.

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