Índice de Capítulo

    O jantar na guilda tinha um gosto diferente naquela noite. Talvez fosse pelo cheiro do pão recém-saído do forno, talvez pelo burburinho alegre que preenchia o salão depois de tanto tempo em silêncio e tensão.

    Eu me sentava ao lado de Rose e Sophia, enquanto Hernán e Cratos disputavam quem terminava o prato primeiro, como se fosse uma competição secreta. De vez em quando, eu pegava Rose rindo baixo das caretas que Cratos fazia para engolir carne mal passada, ou dos resmungos de Sophia, que insistia para Hernán não se engasgar.

    Foi um jantar simples, mas caloroso. Eu ainda não entendia muito sobre a rotina deles, sobre como funcionava essa vida de aventureiro, mas era bom se sentir incluída.

    Quando estávamos terminando, Hernán se inclinou um pouco na mesa e disse com um sorriso malandro:

    — Não esqueça, Ashley… hoje é a sua estreia na sessão de RPG.

    Levantei uma sobrancelha, confusa.

    — Ah… sim, é… claro… — respondi sem muita convicção.

    Antes que eu pudesse perguntar o que exatamente ele queria dizer, Selene, que até então estava bebendo com Aqua e parecia distraída mexendo no copo, ergueu a cabeça como se tivesse ouvido uma palavra mágica. Seus olhos brilharam.

    — RPG? Vocês vão jogar RPG? — disse quase saltando da cadeira. — Faz anos que eu não jogo!

    — Então você já conhece isso? — perguntei surpresa, vendo aquele entusiasmo dela.

    — Conheço? — ela sorriu largo, parecendo até mais jovem naquele instante. — Eu e alguns colegas da academia passávamos noites inteiras jogando. É uma mistura de treino estratégico e diversão. Você cria um personagem e embarca em uma aventura só usando a imaginação.

    Pisquei algumas vezes, ainda tentando entender.

    — Então… é como se fosse… fingir?

    Selene balançou a cabeça, rindo.

    — Fingir? Não, não… é mais do que isso. É viver histórias que nunca existiram, enfrentar perigos sem se ferir, testar sua coragem sem precisar de espada na mão. É um jogo de imaginação, Ashley. Um que pode ser tão real quanto você permitir.

    Fiquei em silêncio por um momento. Nunca tinha ouvido falar de nada assim em Rivendrias. Um jogo onde você se aventura sem sair do lugar? Parte de mim achava estranho. Outra parte… estava curiosa.

    Hernán completou:

    — Exatamente. Mas para jogar você precisa criar uma personagem. Pense em alguém diferente de você, com um passado, um propósito… daqui a uma hora nos encontramos para começar.

    E assim ele se levantou, deixando-me com a mente cheia de dúvidas. Eu nunca tinha inventado uma pessoa antes, e agora teria que dar vida a uma?

    Rose pareceu ler meu pensamento.

    — Eu também quero participar! — disse, quase saltando da cadeira. — Posso, não posso?

    Selene riu.

    — Claro que pode. Eu ajudo vocês duas a montarem algo.

    Nos próximos minutos, ela nos explicou como pensar em histórias, nomes, objetivos. Rose mergulhou de cabeça, cheia de ideias, e eu ainda me sentia meio perdida.

    O tempo passou rápido e logo Hernán, Sophia e Cratos apareceram, chamando-nos para uma sala no andar superior. Ao entrar, percebi que parecia o quarto de alguém talvez um membro da guilda, mas estava preparado para a ocasião. Havia uma mesa redonda no centro, cercada por cadeiras. Uma delas, mais trabalhada e ornamentada, destacava-se das demais.

    Nos sentamos, cada um escolhendo seu lugar, até que Sophia comentou:

    — Agora só falta uma pessoa.

    Fiquei me perguntando quem seria, quando a porta se abriu. Uma figura de manto azul entrou, capuz cobrindo o rosto. Ela caminhou até a cadeira mais imponente e se sentou com calma.

    — Boa noite a todos — disse, a voz carregada de serenidade.

    — Boa noite, mestra — respondeu Hernán, com respeito.

    Minha boca escapou antes que eu pudesse pensar:

    — Mestra? Aqua?!

    A figura retirou o capuz, revelando o sorriso da mesma.

    — Ora ora… não se contenta em ser apenas mestre da guilda, também é mestre do RPG — Selene disse enquanto gargalhava. — Não mudou nada! Você também narrava as sessões na época da academia.

    — Pois é. — Aqua ergueu uma sobrancelha divertida. — E você nunca reclamava, se bem me lembro.

    Com isso, ela bateu levemente na mesa.

    — Chega de demora. Vamos ao que importa: contem-me sobre seus personagens.

    Um a um, eles começaram a apresentar suas criações. Hernán foi o primeiro:

    — O nome dele é Linkon Greenwood. Um jovem nascido em um vilarejo no coração da floresta. Uma noite, um espírito apareceu e disse que ele estava destinado a salvar o mundo. Desde então, ele cresceu com esse propósito, e agora viaja para cumprir sua missão.

    Sophia ajeitou o cabelo antes de falar com entusiasmo:

    — Minha personagem se chama Grizelda Brightriver. É princesa do Reino de Eryndral. O inimigo do nosso reino invadiu nossas terras, e no último ataque, meu pai ordenou que eu fosse levada para longe. Ele morreu defendendo o trono, e eu jurei reconquistar meu reino para honrar sua memória.

    Cratos pigarreou, meio sem jeito.

    — Eu… sou Canon Fireshield. Mas… esqueci de pensar na história.

    Sophia suspirou, repreendendo-o com um olhar firme, enquanto Hernán soltava uma gargalhada alta.

    Depois foi a vez de Rose, que quase não se continha de empolgação:

    — A minha é Silphie, uma fada da floresta. Ela partiu em busca de uma cura para a doença que assola o seu povo.

    Selene inclinou-se para frente, a voz mais baixa e carregada de intensidade:

    — Eu sou Misery. Cresci nos subúrbios pobres de uma cidade cruel. Meus amigos eram minha única família, até que um dia homens mascarados nos encontraram. Eles levaram todos. Eu me escondi, mas desde então jurei procurá-los… e me vingar.

    Senti todos os olhares sobre mim, esperando minha vez. Respirei fundo.

    — A minha personagem se chama Elena Versa. Ela nasceu sem lugar ao qual pertencer, filha de viajantes que nunca paravam em um só ponto. Cresceu aprendendo um pouco de cada canto, mas nunca chamou algum de lar. Um dia, encontrou um colar com uma pedra luminosa caída em uma estrada antiga. Desde então, a joia brilha em certos momentos, como se a guiasse… e Elena decidiu seguir esse chamado, acreditando que finalmente encontrará seu destino.

    Aqua sorriu com aprovação.

    — Belíssimo. Então já temos todos os personagens. — Bateu as mãos, firme, chamando nossa atenção. — A aventura está quase pronta para começar.

    Aqua ajeitou-se na cadeira mais requintada e abriu um sorriso.

    — Agora que já temos os personagens… me digam suas classes e afinidades.

    Hernán foi o primeiro, falando com convicção:

    — Linkon Greenwood é um Humano Cavaleiro, Corescido com energia verde.

    Sophia ajeitou a postura e declarou como se fosse natural da realeza:

    — Grizelda Brightriver é uma Elfa Arqueira, Corescida com energia amarela.

    Cratos pigarreou, com um tom rude:

    — Canon… Bárbaro meio-dragão, Corescido com energia vermelha.

    Rose quase bateu as mãos na mesa de empolgação:

    — Silphie é uma fada druida, Corescida com energia verde!

    Selene sorriu de lado, com um ar quase presunçoso:

    — Misery é uma Ladina. E… desbotada.

    Todos se entreolharam surpresos, mas Selene só ergueu as sobrancelhas sem se importar muito. Eu não entendi bem o porquê.

    Aqua finalmente me olhou.

    — E você, Ashley?

    Respirei fundo.

    — Elena é uma Inventora. Desbotada.

    Aqua pareceu satisfeita e então juntou as mãos.

    — Perfeito. Agora, vamos à aventura.

    Ela baixou a voz, deixando o clima da sala pesado de repente.

    — Levando em conta suas habilidades vocês seis foram convocados pelo Conselho dos Sete Reinos. Um artefato antigo, o Olho do Crepúsculo, foi roubado. Se cair em mãos erradas, pode mergulhar o mundo em trevas eternas. Seus passos os levam até as ruínas de um templo esquecido, onde dizem que os ladrões arcanos se escondem. Mas o tempo é curto…

    Um silêncio de expectativa pairou. Então Aqua pegou um conjunto de dados brilhantes.

    — Primeira jogada da noite. Todos rolam para Percepção. — Ah Ashley, você é nova nisso, mas resumindo algumas ações pedem testes de rolagem de dados respectivos para seus personagens, como é sua primeira vez, vamos manter isso simples.

    Os dados giraram pela mesa, cada um segurando a respiração. Hernán sorriu satisfeito.

    — Tirei 17!

    Sophia mostrou orgulhosa o dela.

    — 15.

    Cratos olhou o resultado e bufou.

    — Três.

    Rose comemorou baixinho.

    — 12!

    Selene deu uma risadinha.

    — 9.

    Olhei para meu dado e arregalei os olhos.

    — Vinte! — falei, surpresa.

    Aqua bateu as mãos.

    — Excelente! Linkon e Grizelda percebem rastros frescos no chão: marcas de botas pesadas. Mas Elena… você nota algo além: uma inscrição quase apagada no arco da entrada do templo. Palavras em uma língua antiga que parecem reagir à sua pedra luminosa.

    Senti meu coração acelerar, mesmo sabendo que era só um jogo.

    — Eu… mostro para o grupo.

    Rose ergueu o dedo.

    — Posso usar minha magia de druida para tentar traduzir?

    Aqua sorriu.

    — Role os dados.

    O dado de Rose caiu: 14.

    — As runas falam sobre um “Guardião do Crepúsculo”. A porta se abre apenas para aqueles que provarem sua coragem.

    Cratos bateu a mão na mesa.

    — Então vamos arrombar logo isso. Canon dá um chute na porta!

    Aqua lançou outro dado, e o sorriso dela se alargou.

    — Tirei 20 contra sua força… Canon, você chuta a porta, mas uma explosão de energia te lança para trás. Recebe três de dano.

    Todos riram, e Cratos cruzou os braços, emburrado.

    — Ótimo começo.

    Após a demonstração de coragem ou insanidade de Canon avançamos para dentro do templo. O ar era pesado, colunas quebradas se erguiam como esqueletos. Aqua descrevia tudo com uma riqueza assustadora.

    De repente, ouvimos um rugido. Uma sombra se desprendeu das paredes, ganhando forma: um Golem de Cinzas, com olhos ardendo em vermelho.

    — Rolem Iniciativa! — anunciou Aqua.

    Os dados correram pela mesa, cada um gritando seus números. Eu fiquei por último, claro.

    O combate começou. Hernán descreveu Linkon brandindo a espada e acertando o primeiro golpe. Sophia disparou uma flecha que ricocheteou em uma pedra, quase atingindo Cratos, o que gerou gargalhadas ao redor. Rose invocou raízes verdes que prenderam parcialmente o monstro.

    Quando chegou minha vez, tremi um pouco.

    — Elena… inventora… posso usar uma engenhoca improvisada?

    Aqua sorriu.

    — Role o dado.

    O dado rolou: 19.

    — Você puxa das suas bolsas uma pequena esfera de metal. Quando a ativa, ela solta uma explosão de luz amarela que cega o Golem por um turno inteiro. Todos têm vantagem no próximo ataque.

    O grupo vibrou, batendo palmas. Eu não conseguia parar de sorrir.

    Selene então declarou friamente:

    — Misery aproveita a distração e ataca pelas sombras.

    Rolou os dados: 20 natural.

    Aqua se inclinou para frente, séria.

    — Um crítico! A adaga atravessa as rachaduras do peito do Golem, perfurando seu núcleo. A criatura se desfaz em uma chuva de cinzas que cobre o salão. Vocês venceram… dessa vez…

    Ficamos todos em silêncio por um instante, absorvendo o peso da cena que Aqua havia pintado. Depois, Hernán bateu na mesa, rindo.

    — Isso sim é trabalho de equipe!

    Eu respirei fundo, o coração acelerado. Mesmo sendo só um jogo, eu me sentia parte de algo grandioso.

    Aqua continuou com a voz baixa, quase solene:

    — As cinzas se dissipam, revelando um baú dourado no centro da sala. Dentro dele, repousa a primeira chave para o Olho do Crepúsculo. Mas essa… é uma história para a próxima sessão.

    Fim do capítulo 60: Noite de RPG.

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