Capítulo 61: En Garde.
Acordei cedo demais, mesmo sem querer. Me mexi de um lado pro outro na cama, mas não consegui voltar a dormir. O estômago estava apertado de tanto nervosismo. Hoje era o tal teste prático da guilda. Eu me perguntava se aquilo era mesmo necessário… mas confio no julgamento de Selene.
Em meio a um turbilhão de pensamentos ouvi batidas leves na porta.
— Ashley, está acordada? — era a voz de Selene.
Me expreguicei e fui abrir. Ela estava lá, impecável como sempre, com aquele ar confiante que me deixava ainda mais insegura no momento.
— Estou sim… — respondi, mas não consegui esconder minha cara de preocupação. — Selene, eu realmente preciso fazer esse teste? Não sei se estou pronta para lutar contra alguém.
Ela arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços como se já esperasse essa pergunta.
— Mais cedo ou mais tarde, você pode acabar tendo que lutar contra uma pessoa, não apenas contra monstros. — disse, firme, mas não de um jeito duro. — Ou já esqueceu do dia em que conhecemos a Rose?
Engoli seco. Não tinha como esquecer. Naquele momento, se não tivéssemos intervindo quem sabe o que poderia acontecer.
— Mas lá foi diferente… não tivemos escolha. — murmurei.
— Exatamente. — Selene se aproximou e tocou meu ombro. — Você nunca sabe quando vai ter escolha. Esse teste é apenas um treino. Se não for capaz de se colocar à prova aqui, como vai reagir quando realmente não tiver saída?
Não soube o que responder. Parte de mim queria fugir dali, mas a outra parte sabia que Selene tinha razão. Respirei fundo e dei um aceno afirmativo, ainda meio relutante.
Nos arrumamos juntas e, ao sair, encontramos Rose parada bem na frente da porta do quarto dela, como se já estivesse nos esperando. O cabelo verde dela balançava suavemente, e ela parecia bem mais animada do que eu para aquele teste.
— Até que enfim! — disse, sorrindo. — Vamos?
Descemos as escadas e seguimos até a guilda. O salão já estava movimentado, mas não tanto quanto na noite anterior. Encontramos Hernán e os outros do grupo dele numa mesa, mas não nos demoramos. Os cumprimentei e fomos direto até a recepcionista.
— Ah, que bom que chegaram! — disse ela, ajeitando alguns papéis. — Já fiz os preparativos, estava apenas esperando os novatos para começarmos.
Ela nos guiou por um corredor lateral até chegarmos a uma sala ampla. O chão era coberto por um tecido grosso e macio, que amorteceu nossos passos assim que entramos. Num dos cantos, estavam alinhadas várias armas de madeira: espadas longas, curtas, adagas e até bastões.
— Imagino que vão querer usar equipamentos corpo a corpo para o teste. — disse a recepcionista, voltando-se para nós. — Já que não vi nenhuma de vocês com um arco.
Fiquei olhando para aquelas armas como se fossem mais ameaçadoras do que eram.
— Eu vou usar uma espada. — respondi à atendente, tentando parecer mais firme do que realmente estava.
Olhei para o lado e vi Rose com uma expressão indecisa, quase desconfortável.
— Hm… o meu teste não poderia ser diferente? — ela perguntou, coçando a nuca. — Eu não sou exatamente… boa em combate corpo a corpo.
A atendente balançou a cabeça, paciente, mas firme:
— O teste sempre foi assim, independente do tipo de aventureiro. Em uma luta real, não basta apenas lançar jatos d’água ou invocar raízes. O corpo e a energia mágica precisam se complementar. Não adianta destruir seus inimigos de longe se você não sabe se proteger dos que se aproximam.
Selene, claro, concordou na mesma hora.
— Em uma luta real, tudo pode acontecer. — ela acrescentou. — O ideal é se aprimorar em ambas as áreas.
Pensei nisso, e a imagem dos aventureiros da guilda lutando me veio à mente. Eles nunca se apoiavam apenas nas habilidades mágicas; sempre havia armas, armaduras, estratégias… talvez fosse por isso que sempre pareciam tão formidáveis.
Dei alguns passos até o canto da sala e me detive diante das armas de madeira. Minhas mãos percorreram uma espada curta, um bastão, mas foi quando toquei o florete que senti algo diferente. Peguei-o com cuidado, girando-o levemente para testar o peso. Não era pesado demais, mas também não parecia frágil.
Selene se aproximou, observando com atenção.
— Então essa é a sua arma?
Assenti, meio incerta.
— Até agora só usei a adaga… e a sua espada. Mas esse florete… — olhei para a lâmina fina de madeira — …parece uma mistura das duas coisas. Acho que combina comigo.
Ela riu, não de deboche, mas como quem reconhecia meu esforço.
— É um grande passo encontrar o estilo de arma que combina com você. — comentou. — Falando nisso… onde está a adaga que eu te dei? Não a vejo faz uns dias.
Senti um aperto no peito.
— Ela se partiu durante uma batalha na torre do abismo.
Selene fechou a expressão na mesma hora, irritada.
— Mas o vendedor me garantiu que era material de qualidade!
— Era sim. — respondi, apressada. — Ela aguentou mais do que o suficiente.
Selene suspirou, claramente contrariada, mas antes que pudesse retrucar, fomos interrompidas.
A porta se abriu e dois jovens entraram na sala: um garoto e uma garota. Ambos pareciam bem mais preparados do que eu para aquilo.
— Ótimo, finalmente todos chegaram. — disse a atendente, erguendo a voz.
Do andar superior, um burburinho começou. Levantei a cabeça e vi vários aventureiros reunidos no balcão, entre eles Hernán, Sophia e Cratos. Eles estavam lá para assistir. Ótimo. Como se eu já não estivesse nervosa o bastante.
— Faremos os pares pela ordem alfabética. — anunciou a atendente. — Primeiro combate: Ashley contra… Eren.
O garoto deu um passo à frente. Eu hesitei, meu corpo inteiro travado, mas então senti um tapinha firme nas minhas costas.
— Vai lá. — disse Selene, confiante enquanto dava espaço.— É só fazer o que aprendeu até aqui.
— O que eu aprendi até aqui foi… — murmurei, quase sem voz.
Ela sorriu de canto, aquele sorriso de quem sabia mais do que eu.
— Se você acha que não teve treino de combate, está enganada. Para o bem ou para o mal, aquela torre te deu um treinamento de batalha melhor do que eu poderia oferecer agora.
Fiquei em silêncio, digerindo aquelas palavras. Talvez ela tivesse razão. A cada luta dentro da torre eu tinha aprendido, mesmo que de forma dolorosa. Ainda assim, meus dedos suavam contra o cabo do florete.
Fiquei frente a frente com o garoto chamado Eren. Ele parecia ter mais ou menos a minha idade, com cabelos e olhos azuis que pareciam ter sido tingidos pelo mar. Empunhava uma espada comum de madeira, nada muito especial, mas a confiança em seu olhar me dizia que não subestimava aquilo em suas mãos.
A atendente começou a explicar as regras do teste onde não seria permitido o uso de energia mágica, mas ele a interrompeu logo de cara, com um tom petulante:
— Essa regra só favorece a minha oponente.
Engoli em seco, surpresa pela ousadia dele. Por um instante me senti acuada, mas a atendente não hesitou em repreendê-lo:
— Isso é um teste prático de duelo armado, não um combate real. Guarde suas reclamações.
Antes que eu pudesse recuperar o fôlego, da plateia uma voz ecoou com força:
— Da uma surra nele, Ashley!
E logo em seguida outra voz concordou, e mais outra, até que o barulho cresceu em um coro barulhento que me deixava zonza.
Eren se virou para mim com um sorriso convencido.
— Parece que você é a favorita nessa luta, hum? Ela vai ter que me aceitar quando eu te derrotar.
Não entendi direito o que ele queria dizer com aquilo, mas sua atitude me fez lembrar dos nobres que desprezam os desbotados, sempre se achando superiores, como se para eles tudo fosse garantido. Senti a raiva subir no peito, apertei o florete com mais força, pronta para descontar nele tudo o que me vinha à mente.
Mas então senti uma mão suave envolver a minha. Quando olhei para o lado, vi Rose.
— Calma… — ela disse baixinho. — Emoções são fonte de poder, mas a raiva só vai atrapalhar você agora.
As palavras dela me acalmaram, e eu suspirei, soltando um pouco da tensão.
— Obrigada… — murmurei.
Mas naquele mesmo instante os olhos de Rose brilharam em um tom de ametista intenso, e sua expressão mudou por apenas um segundo, firme, quase predatória.
— Acaba com esse merdinha!
Antes que eu pudesse reagir, o brilho desapareceu, e ela voltou ao normal, como se nada tivesse acontecido. Fiquei em silêncio, tentando processar, mas não havia tempo para pensar.
A atendente retomou a explicação:
— Além de não ser permitido o uso de energia, aquele que atingir o oponente três vezes primeiro vence o duelo.
Respirei fundo. Três golpes. Era isso. Foquei minha atenção em Eren, que sorria de forma presunçosa, como se já tivesse vencido.
Assim que ela terminou de falar, ele avançou contra mim sem esperar mais nada.
— Chega de conversa fiada! Vamos ao que interessa!
Ergueu a espada e desceu contra mim com força. No mesmo instante, meu corpo se moveu sozinho. Lembrei da posição que usei contra o guardião da torre, a guarda firme, florete à frente, olhos fixos no inimigo. Lembrei de como tentei redirecionar os ataques pesados daquele monstro. Fiz um movimento contrário ao do ataque de Eren para aparar o golpe. Só que, quando as espadas se chocaram, algo me surpreendeu.
No exato momento em que ouvi o eco seco da madeira batendo contra a madeira. Leve… O impacto fez a espada de Eren voar para trás, longe de suas mãos.
Fiquei parada, sem reação por um segundo, sem acreditar que tinha funcionado tão bem.
A plateia explodiu em gritos e gargalhadas.
— Toma essa!
— Bem feito, garoto!
Os sons me despertaram, e os gritos começaram a mudar de tom:
— Acaba com ele, Ashley!
Fim do Capítulo 61: En Garde.
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