Capítulo 64: Sangue Azul.
O chamado começou a movimentar a guilda, do andar de cima comecei a ouvir passos apressados e os eventuais sons de canecas batendo contra as mesas. Me dirigi em direção dos quartos e bati de leve na porta da Rose.
— Rose?… Você vai para o palácio?
Houve um pequeno silêncio, então sua voz veio abafada do outro lado.
— Acho que não… estou muito cansada. Vou ficar aqui descansando um pouco.
Hesitei. Ela realmente parecia exausta mais cedo. Levando em conta tudo que aconteceu, eu não queria pressioná-la.
— Tudo bem. Qualquer coisa eu trago alguma coisa pra você mais tarde.
— Obrigada… — foi a última coisa que ela disse antes do silêncio retornar.
Respirei fundo e desci as escadas em direção ao salão principal. A guilda realmente estava mais movimentada do que o normal, alguns estavam animados com o anúncio do rei. No meio da agitação, avistei Gigi sentada sobre uma mesa, balançando as pernas e conversando com alguém.
— Oi, Gigi — cumprimentei.
Ela se virou, abrindo um sorriso enorme.
— Ashley! Pronta para ficar famosa?
— Famosa? ainda não… enfim, você viu a Selene?
— Se for aquela de cabelo vermelho que anda com você, vi sim. Ela estava com a mestra da guilda faz uns minutos.
— Certo, obrigada!
— Não há de quê!
Segui direto para o corredor que levava à sala da Aqua. Ao dobrar a esquina, desacelerei os passos. Por algum motivo tinha mais gente ali do que eu esperava. Vários aventureiros… a maioria eram rostos familiares da luta contra a Guardiã, eles estavam posicionados ao lado da porta, encostados nas paredes, alguns conversando em voz baixa, outros apenas esperando.
— O que vocês estão fazendo aqui? — perguntei, confusa.
Um dos guerreiros cruzou os braços.
— A mestra está chamando todos os times que estavam na torre para uma reunião. Já faz quase meia hora que estamos sendo chamados em grupos. Estamos na fila esperando a nossa vez.
— Ah… entendi.
Fazia sentido. Então Aqua estava organizando tudo antes do evento no palácio. Assenti e me coloquei no final da fila. Um grupo saiu da sala logo em seguida, alguns parecendo tensos, outros ainda discutindo entre si. Outro grupo entrou sem demora. O tempo passou devagar. Meus pensamentos foram longe — na torre, na Rose, no que aconteceu naquela praça… Poucos minutos depois, o último grupo foi chamado. Vi Selene dentro da sala enquanto esse grupo entrava.
A porta se fechou. O corredor ficou em silêncio. Agora… só restava eu. Fiquei ali parada por um tempo imaginando o que poderia estar ocorrendo lá dentro. Após alguns minutos a porta se abriu com um rangido leve. Dei um passo à frente, pronta para entrar quando…
— Ah, ótimo, terminamos. — Aqua saiu primeiro, seguida pelo último grupo de aventureiros. Selene vinha logo atrás dela.
Parei no meio do movimento, meio confusa.
— Hã? E a reunião? — perguntei, olhando de uma para outra.
Aqua cruzou os braços, mas agora carregava uma expressão mais aliviada.
— Já resolvemos o que precisava ser resolvido. — Ela deu um leve aceno com a cabeça. — Agora não temos tempo a perder. Está na hora de irmos para o palácio.
— Isso foi… rápido. Eu nem cheguei a entrar.
Antes que eu pudesse insistir, Selene se aproximou e tocou suavemente meu ombro.
— Ashley.
Olhei para ela. Havia um sorriso leve, tranquilo… confiante.
— Eu… — respirei fundo. — Sobre a Rose… eu ainda não entendo completamente tudo, mas… acredito que vai ficar tudo bem com ela.
Selene assentiu, com um olhar calmo que fazia o mundo parecer menos caótico naquele momento.
— Fico feliz que tenham conseguido conversar. Resolver isso era importante — disse ela. Então seu sorriso mudou um pouco, ficando mais… curioso. — E quanto ao evento no palácio… pode ser interessante.
— Interessante? — Eu franzi o cenho. — Por quê?
Mas antes que eu pudesse ouvir a resposta, Aqua estalou os dedos nos apressando.
— Pessoal. Vamos.
— Certo, — Selene deu um passo à frente, mas virou o rosto para mim e fez um sinal com a mão. — Venha Ashley.
Eu ainda tinha perguntas, mas esse não parecia ser o momento.
Caminhei ao lado delas, seguindo o corredor. Assim que chegamos ao saguão, os outros aventureiros que participaram da expedição à Torre do Abismo já estavam reunidos, alguns animados, outros sérios, mas todos prontos. Aqua assumiu a dianteira, como uma comandante guiando seu pelotão. Selene caminhava ao lado dela com a mesma elegância tranquila. E eu… eu as segui.
A caminhada até o palácio foi um desfile de expectativas. À medida que nos aproximávamos, as ruas estreitas de Nautiloria se alargavam e as fachadas das casas davam lugar a colunas de mármore e bandeiras douradas. O ar cheirava a sal, lã lavada e incenso: cheiro de cidade que tenta se arrumar para um dia importante. Quando chegamos ao pátio de entrada, a visão me derrubou por inteiro: uma multidão alinhada, cordões de veludo, guardas em armadura polida e, por toda parte, pessoas que sorriam com aquela confiança salpicada de desdém que só a riqueza oferece.
Logo à frente, junto às grades que separavam a plebe da área nobre, eu notei os broches: pequenos brasões prateados e esmaltados cravados nos peitos como medalhas de nascimento. Mercadores com capas finas, senhoras de véus e cavalheiros de bochechas rosadas ostentavam seus símbolos como quem exibe troféus. Quando nós, a trupe da guilda, passamos, senti os olhares. Havia curiosidade, sim, mas também uma espécie de reprovação mesquinha: sobrancelhas erguidas, bocas contraídas em sorrisos que não chegavam aos olhos.
— Por que eles nos olham assim? — sussurrei a Selene, sentindo o calor daquele desprezo me atravessar.
Ela olhou para a multidão com uma expressão calma, mas ao mesmo tempo ameaçadora que fazia com que eles desviassem o olhar dela.
— Aqua criou a guilda sob uma filosofia simples — explicou baixinho, como se me contasse uma pequena conspiração. — Igualdade. Na guilda que ela fez ninguém se curva a títulos de nobreza, apenas reconhecem aqueles que merecem tal reconhecimento. Ela escolheu aceitar qualquer um que quisesse trabalhar, aprender e proteger seus ideais. Muitos na nobreza não conseguem engolir uma organização que não se curva ao status deles. Alguns veem a guilda como uma provocação talvez…
Fiz menção de dizer algo, talvez um “mas não seria o justo?”, mas Selene apenas sorriu tristemente.
— Por isso esses olhares tortos. Para eles, a guilda é uma afronta — concluiu.
Conforme Selene falava, o rumor do público cresceu. Um cortejo surgiu no fim do pátio: tapetes estendidos, guardas marchando, e então — como se o próprio sol tivesse decidido assinar a chegada — o rei Enrico Marines apareceu. Ao lado dele vinha uma mulher cujo vestido parecia feito de noites estreladas e auroras; sua coroa reluzia e, quando a luz bateu no cabelo azul que descia em cascata por seus ombros, senti algo frio e reverente percorrer a espinha. Ela caminhava com a presença de quem nasceu habituada a plateias.
E então meu olhar deslizou para o outro lado e tudo se embaralhou por um segundo: ali, ao lado do rei, estavam duas figuras que eu não esperava ver vestidas com aquela pompa — Aqua, em trajes que poupavam qualquer semelhança com as roupas mais simples da guilda, e Eren, mudado como um figurante de nobreza. Os tecidos eram pesados, brocados, os cortes impecáveis; Eren tinha um ar esnobe que as madeixas azuis não amenizavam. Selene deu uma risada curta e surpreendentemente alta. Aqua, por sua vez, lançou um olhar para ela — um daqueles olhares que não perdoam — e essa troca fez Selene rir ainda mais, como se estivéssemos compartilhando um segredo que o resto do pátio não alcançava.
— Aqua aqui? Quando ela saiu do nosso lado? — murmurei, atônita. — O que ela está fazendo ao lado do rei?
Selene inclinou a cabeça, os olhos encontrando os de Aqua por um segundo, depois virou-se para mim segurando o riso.
— A princesa de Nautiloria, Ashley. — disse ela, com um sorriso. — Aqua Marines. A Redemoinho Celeste.
As palavras caíram pesadas e novas sobre mim. O rosto da Aqua, que eu conhecia mais entre risos e ordens na guilda, parecia agora esculpido além do habitual. A plateia murmurou, e nas vozes havia certa reverência pela família real, totalmente diferente dos olhares que a guilda recebeu.
Aqua era uma princesa, mas ao mesmo tempo liderava uma organização repleta de todo tipo de pessoa que chamam de aventureiros, essa talvez seja a primeira vez que vi algum nobre fazer algo pelos menos favorecidos. Parando para pensar recordei de alguns desbotados em meio a guilda, apesar de tudo nunca os vi serem destratados ali… talvez seja Aqua o motivo de eu não ter sido tratada de maneira ruim esse tempo todo durante a convivência na guilda e na torre…
Atrás das máscaras, no brilho dos broches e no movimento calculado da corte, eu senti a cidade inteira nos observando. O palácio não era apenas um lugar para celebrações como imaginei: era uma arena. E Aqua já havia vestido sua armadura.
Fim do Capítulo 64: Sangue Azul.
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