Capítulo 66: O Eco das Nossas Ações.
Por um instante, o salão ficou em silêncio. O som das palavras de Aqua ainda ecoava na minha cabeça como se tivessem sido lançadas dentro de uma caverna. Eu… ouvi direito? As luzes sobre mim, o peso das atenções… tudo parecia distante, como se eu estivesse fora do meu próprio corpo. As pessoas se viravam, eu sentia seus olhares atravessarem o ar, se fixando em mim com curiosidade, incredulidade… e um certo desprezo.
Um burburinho começou a crescer entre as pessoas reunidas, como o zumbido de abelhas irritadas. Os nobres — com seus broches dourados e expressões polidas demais — cochichavam uns com os outros, e não era preciso muito esforço para entender o tom.
“Uma desbotada?” ouvi um deles sussurrar, sem nem se dar ao trabalho de disfarçar. “Impossível. Isso só pode ser encenação da princesa.” e mais “Como se desbotados fossem capazes de algo assim…”
As palavras atravessavam o salão e vinham até mim, mesmo misturadas aos murmúrios e às risadas contidas. Eu não precisava ver os rostos para sentir o julgamento se acumulando como poeira no ar. O peso do preconceito deles era tão palpável que parecia empurrar meus ombros para baixo.
Por um instante, quase desejei desaparecer no meio da multidão. Mas Aqua não permitiu que aquele clima se prolongasse.
Ela deu um passo à frente e bateu o pé contra o chão: o som ecoou, cortando o zumbido como um trovão em meio à calmaria. Sua expressão estava serena, mas seus olhos tinham o brilho cortante de quem não toleraria afrontas.
— Imagino que alguns de vocês tenham dúvidas — disse ela, sua voz amplificada pelo dispositivo que havia usado mais cedo. — Então, em respeito à honestidade e ao esforço de todos que enfrentaram a Torre do Abismo, vamos ouvir o que ocorreu da boca de quem estava lá.
O salão se calou por completo. Alguns olhares se desviaram, outros se fixaram nela com uma curiosidade tensa. Eu fiquei imóvel, observando enquanto Aqua chamava à frente o pequeno grupo que eu conhecia bem.
E então, um por um, eles começaram a falar.
O primeiro foi um homem de cabelos vermelhos, com um espírito de guerreiro e o olhar firme… Cratos. Ele contou sobre como eu havia segurado a linha de frente quando a criatura do quinto andar surgiu. Disse que, se eu não tivesse conseguido descobrir seu ponto fraco, jamais teriam escapado com vida daquela criatura.
O segundo a falar foi um espadachim de cabelos verdes e um sorriso confiante… Hernán. Ele mencionou como conseguimos passar por entre as mentiras dos Salfos e acabamos com uma guerra entre dois povos que de alguma forma viviam no sétimo andar, ele contou em como tratei os feridos e que de alguma forma quebrei a maldição que assolava os Resai.
E então a terceira, uma arqueira de cabelos dourados amarrados em uma longa trança e feição iluminada… Sohpia. Ela contou com uma calma quase cerimonial sobre o ultimo de nossos desafios, sobre como desvendamos o mistério por trás da guardiã ilusória, sobre como minha intuição tirou o grupo de diversas enrascadas, também agradeceu por mostrar a ela novas possibilidades que ela jamais havia imaginado.
Cada palavra deles parecia cavar um espaço diferente dentro de mim: entre o espanto e a incredulidade, entre o orgulho e o desconforto. Eu lembrava de cada um desses momentos, mas ouvir pelas vozes deles… era diferente. Era como se, pela primeira vez, eu estivesse vendo tudo de fora.
Mesmo assim, bastou um pequeno comentário vindo de uma das mesas para romper o breve silêncio de respeito que havia se instalado.
— Que conveniente — disse um homem corpulento com um anel prateado e uma taça na mão. — Temos heróis surgindo de qualquer canto agora, hein?
O murmúrio de desaprovação voltou, mais contido, mas ainda ali. Aqua manteve o semblante calmo, embora seus dedos estivessem cerrados com força ao redor do dispositivo. Eu podia sentir o ar vibrando em volta dela, como se estivesse se contendo para não fazer nada impensado.
Antes que ela dissesse qualquer coisa, uma nova voz se ergueu: uma voz masculina, rouca, mas cheia de uma cortesia simples, era quase familiar…
— Peço licença, Alteza… mas eu posso confirmar o que dizem sobre a essência dessa jovem.
O silêncio se espalhou de novo. Eu me virei, procurando a origem da voz, e foi então que o vi.
Um homem de roupas finas, mas de postura despretensiosa, com barba rala e um olhar que misturava humildade e convicção. Ele estava ao lado do grupo real, com um broche de comerciante preso à lapela. Quando seus olhos encontraram os meus, uma lembrança acendeu como faísca… aquele mercador da estrada, o da carroça atolada no caminho para Nautiloria. Mesmo com as roupas diferentes, o jeito dele era inconfundível.
Ele se adiantou um passo, inclinando a cabeça para o rei antes de continuar:
— Agora que a vi com meus próprios olhos me lembrei… quando estava necessitado de ajuda ela e suas companheiras pararam na estrada, sem ao menos se preocupar se aquilo poderia ser uma emboscada ou algo do tipo, me ofereceu ajuda sem pestanejar, não pediu nada em troca, nem sequer disse o nome. Se me permitem… essa moça pode até não ter sangue nobre, mas tem uma nobreza que muitos de nós esquecemos pelo caminho.
As palavras dele pairaram no ar, sinceras e inesperadamente pesadas. Eu senti meu peito se apertar: não de vergonha, mas de algo mais quente, mais real. Um reconhecimento simples, vindo de alguém que não devia nada a ninguém.
Os cochichos cessaram de vez, e até os nobres mais céticos pareceram se recolher nas próprias sombras.
Aqua apenas sorriu, discreta, e olhou para mim como se dissesse sem palavras: Era isso que eu queria mostrar.
E foi ali, em meio àquela multidão que me olhava de novo, que percebi o quanto aquele momento pesava. Não era apenas sobre uma recompensa, ou o ouro, ou a fama. Era sobre existir num lugar que não havia sido feito para mim… e, ainda assim, provar que eu merecia estar ali.
O rei, que até então permanecia sentado, recostado na cadeira ornamentada no centro do palanque, pareceu interessado de repente. Endireitou a postura e observou o mercador com um olhar analítico, talvez surpreso pela coragem dele em se dirigir à realeza sem permissão prévia. A rainha, ao lado, manteve o semblante impenetrável, embora seus olhos azuis — tão intensos quanto os da filha — tenham se voltado para mim com uma curiosidade silenciosa.
O silêncio do salão se tornou quase desconfortável, até que Aqua quebrou a tensão com um leve bater de mãos.
— Agradeço suas palavras, senhor — disse ela, com a voz firme, mas gentil. — E espero que sirvam de exemplo para todos aqui.
O mercador apenas inclinou a cabeça, recuando um passo com um pequeno sorriso no rosto.
Aqua virou-se novamente para o público. O brilho das tochas refletia no dispositivo que ela segurava, e a maneira como sua voz se elevava sobre o salão dava a impressão de que todo o peso das palavras estava sob controle dela.
— Acredito que não restem dúvidas sobre o valor daqueles que lutaram na torre — declarou, e por um instante, seus olhos se encontraram com os meus. — O valor de uma pessoa não se mede pela cor em seus cabelos, mas pelas escolhas que faz quando ninguém está olhando.
Um murmúrio de aprovação percorreu o público, dessa vez mais contido, como se as palavras dela tivessem feito o orgulho dos nobres vacilar… ainda que por um instante.
Aqua então sinalizou para dois guardas a seguirem e começou a se mover. Seu olhar firme voltou-se para o grande baú aberto, cuja superfície dourada refletia a luz das tochas como se fosse um espelho líquido. O som do metal tilintando quando as moedas se mexeram foi quase hipnótico.
— Como foi prometido — disse ela, e a projeção da voz fez o salão inteiro se silenciar — o prêmio de dez mil moedas de ouro será entregue à Guilda do Redemoinho Celeste.
Ela fez uma pausa, o suficiente para que todos sentissem o peso da quantia mencionada.
— Contudo — continuou — por decisão conjunta dos aventureiros que participaram da expedição, a maior parte será concedida a quem tornou possível que todos voltassem vivos.
As luzes voltaram a se mover, guiadas magicamente até pararem sobre mim. O brilho quente me cegou por um segundo, e senti o coração bater pesado no peito.
Aqua deu alguns passos à frente, o vestido esvoaçando levemente conforme o movimento. A sombra dela se alongou sobre o mármore do piso, cruzando a distância que nos separava.
— Ashley — disse ela, o nome ressoando nítido no salão. — Sua coragem, instinto e determinação foram o elo que manteve o grupo unido. Mesmo sem saber tudo sobre você, confiamos em seu julgamento, e não nos arrependemos. A vitória da guilda também é sua vitória.
Eu quis responder — qualquer coisa que fosse —, mas a garganta travou. Era como se o ar ao meu redor estivesse mais denso. Todos os olhares voltaram-se para mim, mas, pela primeira vez, eu não sentia apenas o peso do julgamento… havia algo diferente ali… Reconhecimento.
Aqua ergueu a mão, e um dos servos trouxe uma pequena caixa de madeira com entalhes marinhos e a colocou nas mãos dela.
— Em nome da Guilda do Redemoinho Celeste e da família Marines preparei isso para você.
Ela abriu a caixa, revelando um brilho prateado intenso. Quando finalmente consegui olhar para dentro da caixa me deparei com um florete incrivelmente elegante, sua lâmina era comprida e reluzia em tons prateados, a guarda parecia ser feita de ondas prateadas que se encontravam na base da lâmina, seu capo polido a perfeição sustentava um pomo onde foi entalhado o simbolo da guilda.
De onde eu estava, só consegui balbuciar:
— Eu…?
A voz saiu tão baixa que mal parecia minha. Eu pisquei, confusa, e olhei para Aqua, que sorria com aquele ar confiante de quem já esperava minha reação.
— Sim — disse ela, de forma simples, quase leve. — É para você, Ashley.
Por um momento, todo o salão pareceu preso no tempo. Então os aplausos vieram: primeiro tímidos, depois crescendo até se tornarem uma onda. As palmas ecoaram pelas paredes do salão, vibrando junto às notas da música que recomeçava ao fundo.
Selene, ao meu lado, me deu um leve empurrão no ombro, rindo.
— Vai ficar parada aí? — disse, provocando. — Parece até que nunca ganhou algo na vida.
Eu respirei fundo, tentando me recuperar da surpresa, e soltei uma risada nervosa.
— Eu ainda acho que deve ter algum engano… — murmurei, mas a voz da Selene abafou qualquer tentativa de continuar.
— Engano coisa nenhuma — respondeu ela, com aquele sorriso de quem sabia mais do que deixava transparecer. — Você é a minha discipula, isso era o mínimo de reconhecimento que eu esperava que conquistasse… apesar de que ocorreu mais rápido do que eu esperava. — murmurou.
O riso dela se misturou aos aplausos e às notas da melodia que ganhava força.
E eu apenas fiquei ali, tentando entender como que do dia para a noite uma simples desbotada havia se tornado o centro das atenções de um reino inteiro.
Fim do Capítulo 66: O Eco das Nossas Ações.

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