Capítulo 67: O Festival das Luzes - Parte 1.
As luzes do palácio ainda cintilavam quando deixamos seus portões para trás. O ar da noite agora parecia mais leve, como se até ele quisesse comemorar conosco. Ainda podia ouvir os aplausos, os murmúrios de admiração dos colegas da guilda… um eco distante do que havia acontecido lá dentro. Eu nunca gostei muito de ser o centro das atenções, mas… desta vez, eu tive com quem dividir todo o peso.
Selene caminhava logo à frente, equilibrando uma taça sobre a cabeça como se fosse uma coroa, enquanto Cratos discutia com Hernán sobre qual dos dois havia recebido mais olhares das garotas durante o banquete. Sophia, ao lado deles, só revirava os olhos e fingia não ouvir, rindo baixinho quando algum dos dois se exaltava.
A caminhada até a guilda foi repleta de comentários atravessados, risadas e o som dos passos ecoando pelas ruas adormecidas de Nautiloria. As lanternas das casas balançavam com o vento, projetando sombras dançantes nas paredes, e em certo momento percebi o quanto aquilo tudo me parecia… confortável. Familiar.
Quando as portas da guilda se abriram, fomos recebidos por uma explosão de vozes calorosas. O salão principal estava tomado por aventureiros, e assim que nos viram, levantaram as canecas num brinde que fez o chão vibrar.
Não tive tempo de reagir. Em instantes, a mesa mais próxima já estava coberta de jarras, pratos e um bolo que parecia ter sido improvisado de última hora. A música começou a soar… alguém arrastou um alaúde para o centro, e quando percebi, estávamos sendo empurrados para dentro da comemoração.
Cratos ergueu a primeira caneca.
— Aproveitem amigos, hoje é na conta da novata!
— EEEEEEEEEWWW!
Fiquei apenas observando por alguns instantes, tentando absorver tudo. As vozes se misturavam em um ruído agradável, e por um momento o tempo pareceu desacelerar. Eu conseguia sentir o calor da madeira aquecida pelas tochas, o perfume leve de uma bebida com mel e ervas, e o peso de algo que eu não sentia há muito tempo: pertencimento.
Aqua se aproximou em silêncio, apoiando a mão sobre meu ombro.
— Você foi incrível, Ashley.
Virei para ela, um pouco surpresa.
— Só fiz o que achei que precisava ser feito.
— Fazer o que precisa ser feito nem sempre é algo simples — respondeu, com um sorriso indecifrável. — Mas às vezes, o necessário é o que muda o mundo.
Ela se afastou antes que eu pudesse responder. E, de algum modo, aquelas palavras ficaram martelando em mim.
O resto da noite se dissolveu em gargalhadas e promessas. Falamos sobre o futuro, sobre as viagens que viriam, e sobre o quanto ainda havia a explorar. Quando a lua começou a se esconder atrás das nuvens, o salão já estava repleto de corpos adormecidos: uns sobre as mesas, outros encostados nas paredes, exaustos de tanto rir. Eu me mantive acordada por mais um tempo, observando o brilho tênue das velas se apagando.
Foi então que vi Aqua novamente, parada próxima à escada do andar superior. A luz fraca delineava seu rosto, e por um instante tive a sensação de que algo nela era diferente. O manto que usava parecia mais escuro do que antes, e havia um reflexo estranho em seus olhos, como se guardassem uma centelha de segredo.
Quando ela percebeu que eu a observava, apenas sorriu de leve e levou o dedo aos lábios: um gesto silencioso que me fez hesitar entre o riso e um arrepio.
— Boa noite, Elena — disse ela, usando o nome da minha personagem de quando jogamos RPG.
Antes que eu pudesse responder, virou-se e subiu as escadas, desaparecendo na penumbra.
Fiquei ali, sozinha, por alguns segundos, ouvindo o som distante do vento lá fora.
O amanhecer em Nautiloria parecia diferente naquela manhã. O sol mal havia despontado no horizonte, mas as ruas já se enchiam de murmúrios e um movimento contido, como se a cidade estivesse prestes a acordar de um sonho. Do meu quarto, pude ouvir o arrastar de tecidos, o bater de martelos montando alguma coisa e o tilintar de pequenos sinos sendo pendurados nas varandas.
Demorei um instante para me situar. Nossas mochilas estavam prontas, alinhadas ao pé da cama, a ideia de seguir viagem parecia mais real do que nunca. Mesmo assim, havia algo no ar: uma vibração doce, quase mágica, que fazia parecer errado simplesmente ir embora.
Desci para o salão principal e encontrei Rose encostada na janela, observando o movimento lá fora.
— Parece que a cidade toda resolveu acordar antes do sol — comentei.
Ela riu, virando-se para mim.
— Hoje é o Festival das Luzes. Achei que você soubesse.
— Luzes…? — repeti, curiosa.
— Uma tradição antiga. É o dia em que dizem que as cores do mundo ganham vida própria e caminham entre nós. Alguns acreditam que é quando os espíritos das cores perdidas voltam para dançar com os vivos — explicou, com um ar sereno que só ela conseguia ter.
— Aaah o Festival das Chamas… na vila de onde eu vim a gente também o comemora… não sabia que esse era o nome aqui.
Quando sai naquela noite a cidade já havia se transformado. As ruas de pedra estavam cobertas por fios de cristal que refletiam o sol nascente em tons de laranja e dourado. Bandeirolas ondulavam de janela em janela, e cada uma exibia uma cor distinta: azul, verde, vermelho e amarelo. Crianças corriam com lanternas atrás delas, deixando rastros cintilantes no ar.
Os aventureiros, normalmente cobertos de couro e ferro, agora desfilavam com mantos coloridos e adornados por fitas, pedras e bordados que refletiam as luzes ao redor. Havia uma alegria diferente em vê-los assim: o tipo de leveza que raramente se via em quem carrega o peso de tantas missões.
Selene, por exemplo, usava um manto vermelho-acinzentado com detalhes prateados que reluziam conforme ela se movia. Sophia havia trançado o cabelo com pequenas fitas amarelas, combinando com um colete claro sobre uma túnica de seda. Cratos, bem… havia decidido pintar escamas falsas nos ombros, o que lhe rendeu risadas de todos os lados.
— É uma coisa cultural — ele disse, orgulhoso.
Rose usava uma coroa trançada de flores azuis, e Hernán, um manto verde-musgo com bordas douradas, quase tão imponente quanto o de um cavaleiro real.
Quanto a mim, optei por algo simples: um vestido branco curto com um sobretudo azul-claro, adornado por uma faixa prateada na cintura. Ficamos observando o desfile de luzes por um tempo, até que a voz suave e teatral de Aqua soou atrás de nós:
— Vocês vão partir em breve não é mesmo? Uma despedida assim seria… trivial demais, não acham?
Viramos ao mesmo tempo. Ela se aproximava devagar, o manto escuro ondulando com o vento, mas agora com bordas azuladas que brilhavam sutilmente sob a luz. Em suas mãos, carregava uma pequena lanterna de cristal, cuja chama interna mudava de cor a cada segundo.
— Aqua? — Selene arqueou a sobrancelha. — Está… diferente do habitual.
— É o festival — respondeu ela, com um sorriso enigmático. — Nesta noite, todos mostram suas cores, mesmo aquelas que fingem não ter.
Deu alguns passos à frente, deixando a luz da lanterna iluminar nossos rostos.
— Antes de partirem, pensei que poderíamos dar um final digno àquela história inacabada. O Olho do Crepúsculo ainda está perdido, lembram?
Olhei para os outros, e bastou um olhar para entender que todos haviam sentido o mesmo arrepio nostálgico.
— Quer que a gente jogue… de novo? — perguntei.
— Claro — respondeu Aqua, como se a ideia fosse a coisa mais óbvia do mundo. — Mas desta vez, de um jeito especial.
Enquanto ela se afastava, o vento soprou e as fitas coloridas suspensas nas ruas começaram a dançar, refletindo feixes de luz sobre as fachadas e os rostos das pessoas. Por um instante, o céu inteiro pareceu respirar em cores. Linhas de luz dançavam entre as torres e as janelas, como se as estrelas tivessem decidido descer para assistir ao festival. As ruas fervilhavam de risos, canções e passos leves.
A guilda, vista à distância, parecia respirar luz. Cada janela exalava um brilho próprio, e as bandeiras penduradas do lado de fora tremulavam em sincronia com a música que vinha da praça. Quando empurrei as portas, um arrepio percorreu meu corpo. O salão principal havia sido completamente transformado.
As tochas normais haviam sido substituídas por esferas flutuantes de luz colorida, que pairavam a diferentes alturas, lançando reflexos dançantes nas paredes. No teto, cordões de fitas mágicas serpenteavam, mudando de cor conforme o som da música: vermelho, azul, verde, dourado. As mesas foram afastadas para o centro ficar livre, e bem ali, sobre um tapete circular de veludo escuro, repousava o tabuleiro que usamos durante a sessão de RPG.
Mas o que mais me chamou atenção foi Aqua.
Ela estava no centro do salão, completamente diferente da imagem que eu guardava dela durante o dia. O manto escuro agora parecia feito de fragmentos de noite e névoa, refletindo as luzes como se cada dobra guardasse um segredo. Em volta do pescoço, pendia um colar prateado com uma pedra translúcida que pulsava de leve, como se tivesse um coração próprio. Sua presença enchia o espaço de uma aura hipnótica uma mestra de cerimônias entre mundos.
— Achei que não fossem vir — disse ela, sem nem precisar olhar para nós.
— E perder isso? — respondeu Selene, cruzando os braços e lançando um sorriso provocante. — Não somos tão tolos.
— Eu quase fui — murmurou Cratos, ajustando a gola da roupa com uma expressão incomodada. — Essas fitas pinicam.
— É o preço da elegância — Sophia retrucou, erguendo o arco dourado que agora parecia mais decorativo que funcional.
Aqua estendeu os braços.
— Antes que retomemos nossa história, é necessário que todos entrem em sintonia com os personagens que deixaram adormecidos. Para isso… — ela estalou os dedos — preparei algo especial.
Fim do Capítulo 67: O Festival das Luzes – Parte 1.

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