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    De trás do balcão, um grupo de aprendizes da guilda surgiu carregando um grande baú. Dentro dele, estavam alguns trajes: versões das roupas que descrevemos dos nossos personagens do RPG.

    Hernán foi o primeiro a se aproximar. A armadura de Linkon Greenwood o aguardava, com placas reluzentes feitas de papel de tom esmeralda e um manto de seda leve que refletia o brilho das luzes. Ele sorriu, meio sem acreditar.

    — Eu realmente vou usar isso?

    — Você é um cavaleiro — respondeu Aqua, com um arqueio de sobrancelha. — Deve se trajar como tal.

    Sophia pegou seu traje logo em seguida: uma túnica dourada com detalhes em prata e um arco de madeira polida com corda brilhante. Quando vestiu o conjunto, parecia realmente uma arqueira dos contos antigos.

    Cratos, claro, pegou o traje do bárbaro meio-dragão: peles pesadas, uma ombreira com formato de escama, e uma faixa vermelha que cintilava como fogo vivo. Ele girou o machado de madeira tingida com um sorriso satisfeito.

    — Agora sim. Isso é digno de Canon.

    Rose retirou um manto esverdeado de folhas que pareciam frescas e vivas, costuradas em um tecido leve. A coroa de galhos e flores completava o traje da druida Silphie. Quando ela girou, pétalas cintilantes se desprenderam e flutuaram ao seu redor.

    Selene recebeu uma roupa de couro negro, justa, com uma capa que desaparecia completamente no escuro. Misery, a ladina, renascia diante de nós… elegante, perigosa e envolta em sombras.

    — Ainda prefiro algo mais prático — ela comentou, ajustando o cinto de adagas. — Mas admito… é charmoso.

    Por último, Aqua se aproximou de mim, segurando algo com cuidado.

    — E para você, Elena, a Inventora. — Estendeu o traje entre as mãos.

    Era um conjunto de roupa com detalhes mecânicos: colete de couro claro com cintos finos, engrenagens douradas nos ombros e uma saia assimétrica de tecido cinza-azulado com fios metálicos. Um par de luvas e óculos com lentes arredondadas completavam o conjunto.

    — Isso é… incrível — murmurei.

    — Feito sob medida — disse Aqua.

    Quando vesti o traje, algo estranho aconteceu. As pequenas peças metálicas emitiram um brilho suave, como se reagissem ao toque. Senti uma corrente leve percorrer meus braços: nada ameaçador, apenas uma vibração tênue que parecia reconhecer minha presença.

    Pouco depois, todos estávamos prontos. O grupo se reuniu em torno do tabuleiro, as luzes do salão diminuíram, e o burburinho da guilda lá fora foi se tornando um som distante.

    Aqua estendeu as mãos sobre um grimório.

    — O Conselho dos Sete Reinos os convoca novamente — disse ela, a voz ecoando como se viesse de longe. — O Olho do Crepúsculo aguarda.

    As palavras dela pareciam vibrar no ar, como se algo além do jogo tivesse despertado. Olhei em volta e percebi que todos sentiam o mesmo: aquele instante em que imaginação e realidade se misturam, e o impossível parece… possível.

    O som dos dados rolando sobre a mesa ecoava pela sala, misturando-se ao farfalhar das capas e ao brilho das pequenas velas que Aqua espalhou pelo salão. Ela se endireitava em sua cadeira, o olhar oculto sob o capuz escuro do manto: o mesmo que, de algum modo, a tornava ainda mais imponente. Sua voz, quando rompeu o silêncio, trouxe consigo uma melodia de mistério e seriedade.

    — O ar está denso — disse ela, em tom quase sussurrado — as paredes do templo se movem como se respirassem. A luz da tocha que vocês carregam vacila, revelando as sombras de estátuas antigas, corroídas pelo tempo. O som de algo pingando ecoa no corredor… sangue ou água, vocês não sabem dizer.

    Respirei fundo, tentando conter um sorriso. Era estranho como, mesmo sabendo que se tratava apenas de um jogo, a forma como Aqua narrava me prendia. Ela fazia o mundo ganhar vida, como se a cada palavra o templo realmente se erguesse à nossa frente.

    Grizelda: a personagem da Sophia, ergueu o arco imaginário e disse com firmeza:

    — Eu avanço à frente. Quero verificar se há armadilhas.

    Aqua rolou os dados. Um leve sorriso surgiu em seu rosto.

    — A elfa avança com passos leves, quase inaudíveis. Seus olhos dourados captam algo no chão… um fio mágico, tênue, quase invisível. Se alguém tivesse dado mais um passo, o corredor inteiro teria desabado.

    Sophia exalou alívio e ergueu a mão triunfante.

    — Grizelda salva o grupo outra vez!

    Canon: o bárbaro meio-dragão do Cratos cruzou os braços.

    — Ainda quero lutar com algo que cuspa fogo. — Ele bufou, impaciente, fazendo todos rirem.

    Mas Aqua apenas inclinou a cabeça.

    — Talvez não fogo… mas cinzas, sim.

    Ela descreveu então o momento em que avançamos para a próxima câmara. As paredes estavam cobertas por runas brilhantes e, no centro, havia um grande portão de pedra, com um encaixe perfeito para a chave que havíamos encontrado. Linkon Greenwood, o cavaleiro, deu um passo à frente e a inseriu na fechadura. Um estalo ecoou. O chão tremeu. E o portão se abriu.

    A luz que veio de dentro foi quase ofuscante… e, por um instante, todos na mesa pareceram conter o fôlego.

    — Diante de vocês — continuou Aqua, sua voz baixa e cadenciada — três figuras os observam. Seus mantos são negros como a noite, e nas mãos de um deles brilha o artefato que procuravam: o Olho do Crepúsculo.

    Misery, a ladina da Selene, ergueu uma sobrancelha.

    — Ah, então foram eles… os ladrões arcanos.

    Aqua confirmou com um leve aceno.

    — Eles riem. E antes que vocês reajam, o que segura o Olho ergue a mão e diz: “Vocês chegaram tarde demais.”

    A partir daí, o salão encheu-se de vozes. Todos falavam ao mesmo tempo: planos, estratégias, provocações. Aqua rolava os dados com calma, observando as reações com um sorriso misterioso que sempre indicava que algo grande estava prestes a acontecer.

    O combate começou. Canon avançou primeiro, o machado flamejante cortando o ar… um golpe certeiro atingiu o ladrão da direita. Grizelda disparou flechas elétricas que ricochetearam nas paredes, criando rastros dourados. Silphie ergueu raízes luminosas do chão, prendendo os inimigos.

    Mas os ladrões também eram rápidos. Um deles invocou esferas de energia que explodiram em meio a nós, e senti meu corpo reagir como se o impacto fosse real: talvez pela empolgação, talvez pelo modo como Aqua narrava cada detalhe.

    Misery desapareceu nas sombras, e Aqua descreveu seu movimento com precisão:

    — A ladina surge atrás de um dos ladrões, a adaga pronta… mas ele a nota no último instante. Vocês se encaram, a lâmina próxima ao pescoço dele. E ele sorri.

    — Tarde demais, pequena sombra — disse o ladrão, ativando o Olho.

    Nesse instante, Aqua se inclinou sobre a mesa, a voz ganhando força.

    — Uma luz púrpura explode, engolindo o salão. O tempo parece parar. Tudo o que vocês veem é o brilho crescente do artefato… prestes a consumir tudo.

    O coração disparou, e eu me adiantei, quase instintivamente.

    — Elena tenta lançar sua rede elétrica no artefato, sobrecarregando-o!

    Aqua rolou os dados. O som foi quase ensurdecedor. Todos observaram o cubo girar, rolar, e parar.

    Um vinte.

    O salão inteiro vibrou em comemoração.

    Aqua sorriu, encantada.

    — A energia lançada pela Inventora se espalhou em faíscas, envolvendo o Olho do Crepúsculo. O artefato chia, brilha, e… silencia. O ladrão tenta resistir, mas é lançado contra a parede, inconsciente.

    — E então — continuou ela, agora num tom suave — as luzes do templo voltam ao normal. O Olho repousa no chão, inerte, e vocês o recolhem.

    O grupo retornou ao Conselho dos Sete Reinos, levando o artefato consigo. A multidão os recebeu com aplausos. As bandeiras tremulavam ao vento, e as vozes entoavam seus nomes.

    Grizelda ergueu o arco em saudação. Canon deu uma gargalhada triunfante. Misery apenas cruzou os braços, fingindo desdém. E eu, como Elena, apenas observei o Olho refletindo seu brilho em silêncio.

    Aqua se inclinou para trás, retirando o capuz lentamente, e disse com um sorriso:

    — E assim, heróis, o Olho do Crepúsculo foi recuperado. A paz retorna aos Sete Reinos… por enquanto.

    Por alguns segundos, ninguém falou. Ficamos apenas ali, mergulhados na cena final, saboreando o desfecho. Então, quase ao mesmo tempo, rimos, brindamos e aplaudimos a mestra da noite.

    E eu pensei, observando o brilho tênue das velas ao redor: mesmo em meio a tantas batalhas reais, era bom lembrar que, às vezes, as melhores vitórias eram aquelas que nasciam da imaginação.

    A última gargalhada ainda ecoava na sala quando percebi algo diferente. Uma claridade suave, vinda de fora, tremulava através da janela como se o próprio ar cintilasse. Grizelda… ou melhor, Sophia foi a primeira a notar.

    — Olhem lá fora… — murmurou ela, apontando.

    Nos aproximamos das janelas, um a um, e ficamos em silêncio. Do lado de fora, o céu noturno parecia vivo. Pequenas luzes coloridas flutuavam pelo ar, deslizando entre as torres e telhados como chamas que haviam decidido abandonar as velas para dançar livremente no céu. Algumas eram douradas, outras azuladas, vermelhas, esverdeadas… cada uma movendo-se em um ritmo quase hipnótico, refletindo-se nas janelas e nas ruas molhadas pela garoa leve que caiu mais cedo.

    — O evento que dá nome ao festival começou — disse Aqua, aproximando-se da janela, o capuz caído sobre os ombros. Sua voz soou baixa, quase reverente. — O ápice do Festival das Luzes.

    Ficamos ali por alguns segundos, observando aquele espetáculo silencioso até que Aqua se virou para nós com um sorriso calmo.

    — Venham. A melhor vista é da praça.

    Seguimos juntos para o lado de fora da guilda. As portas se abriram com um ranger suave, e uma brisa fria nos envolveu assim que pisamos na rua. A praça em frente à guilda estava repleta de gente: aventureiros, comerciantes, crianças, todos olhando para o céu com os olhos brilhando. As luzes se moviam lentamente acima de nós, como se flutuassem ao sabor de uma melodia que só elas conseguiam ouvir.

    Por um instante, ninguém disse nada. Era um tipo de silêncio raro, que não nascia da falta de palavras, mas do respeito mútuo. E então Aqua, de pé um pouco à nossa frente, falou com suavidade:

    — Dizem que essas luzes são as almas dos que já partiram. Que, uma vez por ano, elas retornam para visitar aqueles que amaram e deixaram para trás.

    O vento soprou, fazendo o manto dela ondular, e por um breve momento, o reflexo das luzes coloridas brilhou em seus olhos como pequenos fragmentos de estrelas.

    — Se isso for verdade… — ela continuou, olhando para o alto — então talvez as que se reúnem perto da guilda sejam dos aventureiros que já se foram. Dos que lutaram, sonharam… e deixaram histórias para trás.

    As palavras dela se perderam entre os murmúrios suaves da multidão e o brilho pulsante das luzes. Alguns fecharam os olhos, outros simplesmente ergueram o rosto para o céu, permitindo que uma ou outra fagulha colorida pousasse sobre suas mãos antes de desaparecer.

    Fiquei ali, observando uma luz azulada que flutuava próxima, movendo-se com delicadeza, como se tivesse vontade própria. Era pequena, mas vibrante, e parecia hesitar diante de mim antes de subir novamente para o alto.

    Naquele instante, pensei em minha avó. Em sua voz calma, nas histórias que contava, no modo como enxergava beleza até nas coisas mais simples. E me perguntei, silenciosamente, se ela também estaria entre aquelas luzes.

    Talvez sim. Talvez estivesse apenas me observando, sorrindo, satisfeita por saber que, de alguma forma, eu seguia em frente… cercada de amigos, histórias e de um céu cheio de cores.

    E enquanto as luzes subiam, misturando-se às estrelas, senti que, mesmo que fosse tudo uma ilusão… ainda assim, era uma bela ilusão para se acreditar.

    Fim do Capítulo 68: O Festival das Luzes – Parte 2.

    Nota: Feliz Halloween!!

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