Índice de Capítulo

     O vento do fim da manhã, carregava o cheiro de terra molhada. Enquanto eu e Selene caminhávamos em direção ao portão principal, pude notar um fluxo de pessoas que ia de encontro a praça do mercado. O burburinho ao redor contrastava com o silêncio pesado que pairava no ar. As pessoas se ocupavam em juntar os destroços da batalha, alguns em silêncio resignado, outros murmurando preces por aqueles que não estavam mais ali.

     Uma mulher se ajoelhava entre os escombros de uma barraca, retirando com cuidado alguns tecidos, que antes enfeitavam o ambiente com suas cores vibrantes. Um homem erguia uma viga caída, enquanto outros o ajudavam a reconstruir uma fachada danificada. Não importava para onde olhávamos, os sinais do confronto ainda estavam por toda parte, mas a vida insistia em seguir adiante.

     Mantive os olhos atentos, absorvendo a cena. Me sentia parte daquilo, e ao mesmo tempo, uma intrusa. Alguém que tinha passado pela tempestade e saído do outro lado, enquanto tantos outros tinham perdido tanto. Aquela visão me sufocava, mas um fio de esperança ainda permanecia intacto. Sei que com a ajuda que Sienna prometeu essas pessoas podem recuperar parte de si.

    Foi então que ouviu um sussurro ansioso:

    — Mamãe, é ela!

     Me virei de encontro a voz a tempo de ver uma garotinha, puxando a barra da saia da mãe. Os olhos brilhantes da criança estavam cheios de reconhecimento e gratidão. A mãe pareceu hesitar por um momento, mas se aproximou com um sorriso emocionado.

     A garotinha soltou a mão da mãe e correu até mim, abraçando-me com força. Seu pequeno corpo tremia levemente, mas o calor do gesto me envolveu de um jeito inesperado. Por um instante, fiquei sem reação, sentindo o peso daquele reconhecimento. Então, abaixei-me para ficar em sua altura e, finalmente, consegui vê-la melhor.

     Seus olhos brilhavam, vivos e cheios de alívio. Sem toda a sujeira e poeira que cobriam seu rosto no dia anterior, ela parecia ainda mais frágil, mas também mais real.

    — Você é mesmo aquela garotinha… — murmurei, quase para mim mesma. — Que bom te ver bem! —  Exclamei, segurando suas mãos.

    — É bom ver você também — respondeu com um sorriso suave.

     Ela piscou algumas vezes antes de se afastar um pouco e erguer o rosto orgulhosamente.

    — Meu nome é Ana!

    — Ana?

    Ela assentiu com vigor.

    — Sim! Esse é o meu nome.

    Soltei uma risada baixa, aliviada de vê-la sã e salva.

    — Um belo nome, Ana.

    A mãe dela nos observava de perto, os olhos marejados, mas com um sorriso sincero nos lábios.

    — Você nos salvou — disse ela, com uma emoção difícil de descrever.

     Olhei para ambas, sentindo um nó se formar na garganta. Eu não sabia o que responder. Aquele tipo de coisa era difícil de se ouvir… ainda mais para alguém como eu. Apenas apertei levemente a mão de Ana e depois a de sua mãe, retribuindo com um sorriso desajeitado.

    — Agora, iremos deixar que você siga seu caminho. Vocês duas parecem estar com pressa — disse a mãe de Ana, com um tom gentil.

    Assenti e me virei para Ana mais uma vez.

    — Ana, a irmãzona aqui vai partir em uma aventura — falei, tentando soar leve, mas sentindo o peso das palavras. — Algum dia nos encontraremos novamente e, até lá, quero que mantenha seu coração valente.

    Os olhinhos dela brilharam, e um sorriso determinado surgiu em seu rosto.

    — A Ana promete!

     Com um sentimento quente no peito, seguimos nosso caminho. O som das vozes distantes se misturava ao tilintar de ferramentas reconstruindo o que havia sido destruído, e o cheiro de madeira recém-cortada se mesclava ao da terra molhada. Antes que eu pudesse me dar conta, o portão principal surgiu diante de nós, imponente contra o céu pálido.

     As grandes portas de madeira escura, reforçadas com tiras metálicas marcadas pelo tempo, se erguiam como uma muralha, guardando a passagem para além da cidade. Acima delas, pendiam bandeiras azul-royal que dançavam suavemente ao ritmo do vento. O tecido ondulava, refletindo a luz do sol e revelando com clareza o brasão real da casa Marines, a família que governava este território. O símbolo bordado em prata destacava-se contra o fundo azul: uma estrela de dez pontas formada por duas estrelas sobrepostas entrelaçada a correntes.

     O ar ao redor carregava um leve cheiro de ferro e óleo, vindo das armaduras dos guardas que estavam na área. O burburinho ali era diferente do restante da cidade, não havia sons de reconstrução ou preces pelo passado, mas sim ordens sendo dadas, passos firmes no solo e vozes rígidas interrogando os que se aproximavam da saída.

     O portão principal da cidade estava um caos. Os guardas em armaduras reforçadas patrulhavam a entrada, verificando documentos, anotando informações e interrompendo aqueles que tentavam passar sem permissão. Uma barreira foi formada transformado o local em um funil apertado, onde parecia que a saída era meticulosamente controlada, e a entrada, praticamente impossível.

    — Parece que estão levando a segurança mais a sério após o ataque — comentei em voz baixa, observando um homem ser escoltado para longe depois de falhar em responder as perguntas dos guardas.

    — Depois do que aconteceu, não me surpreende. Mas… — Selene cruzou os braços, inclinando levemente a cabeça. — Eles parecem estar focados em quem quer sair. Enquanto isso bloqueiam a entrada de pessoas de fora.

     Olhei ao redor e percebi que ela tinha razão. Embora a entrada estivesse praticamente bloqueada, as pessoas que desejavam deixar a cidade passavam após uma verificação. Parecia mais um controle de registros do que uma tentativa de impedir fugas.

    — Talvez queiram manter um rastro de todos que saem. Caso precisem… procurar alguém depois.

     Selene lançou-me um olhar curioso, como se ponderasse sobre minhas palavras, mas antes que pudesse responder, um dos guardas nos chamou.

    — Próximas!

     Nos aproximamos da bancada improvisada onde um oficial, com expressão cansada e um pergaminho à frente, nos esperava com uma pena pronta para registrar nossas informações.

    — Vocês têm algum documento oficial?

    — Não! — a resposta veio em uníssono.

    O guarda pareceu indignado, como se isso estivesse ocorrendo com frequência.

    — Nome completo?

    — Ashley — pausei por um instante, o peso do momento caindo sobre mim. Eu não queria que aquele nome ficasse registrado ali, mas não havia outra escolha. — Ashley Silvermoon.

     O guarda arqueou uma sobrancelha, esperando algo a mais, mas quando percebeu que não continuaria, apenas fez uma anotação antes de se virar para Selene.

    — E você?

    — Selena Raye.

     O nome deslizou com naturalidade de seus lábios, mas eu soube na hora que era uma mentira. Talvez tenha sido o tom despreocupado ou o breve sorriso que ela lançou ao guarda, por um momento senti que cometi um erro contado meu nome.

    — Cor?

    — Er… — a resposta travou em minha garganta.

    — Ela ainda é jovem — disse Selene, sem hesitação.

    —  Me refiro a você! — disse o guarda com certa exaustão vocal.

    — Carmesim!

    O guarda murmurou algo para si mesmo e continuou.

    — Altura?

    — Um metro e cinquenta e três — falei.

    — Um metro e sessenta e oito — Selene respondeu, mas eu tinha certeza que ela parecia um pouco mais alta.

    O oficial suspirou, anotando sem se importar muito com a exatidão.

    — De onde vieram?

    — Sou daqui de Rivendrias — respondi rapidamente.

    Selene hesitou apenas um instante antes de dizer:

    — Venho de um vilarejo ao sul. Chama-se… Esralis.

     Nunca tinha ouvido falar de Esralis, e pelo jeito do guarda, ele também não. Mas não questionou. Apenas terminou de escrever e fez um sinal para outro soldado.

    — Revisão concluída. Podem passar.

    Assim que atravessamos o portão, disse sem olhar diretamente para Selene.

    — Esralis?

    Ela sorriu com um brilho divertido nos olhos.

    — Gostou? Inventei agora.

    Suspirei, mas não pude evitar um pequeno riso.

     Assim que cruzamos o portão, fui tomada por uma sensação estranha, como se estivesse respirando um ar diferente pela primeira vez. O lado de fora parecia vasto e aberto de um jeito quase desconfortável, como se até o vento carregasse um cheiro de liberdade que eu ainda não sabia como processar.

     À nossa frente, uma ponte de pedra e madeira arqueava-se sobre um rio de águas claras que refletiam o céu pálido. O som da correnteza era suave, um murmúrio constante que se misturava ao farfalhar das árvores mais adiante. O cheiro fresco da água contrastava com o aroma terroso da madeira molhada da ponte, onde musgo crescia em pequenas fissuras nas pedras. A umidade no ar deixava uma leve brisa fria sobre a pele, trazendo consigo um sopro da floresta que se estendia logo após o rio.

     As árvores, embora não fossem densas, formavam um manto verde de copas irregulares que oscilavam sob o toque do vento. Algumas folhas já começavam a mudar de cor, indicando que a estação estava à beira da transição. O perfume da terra úmida, misturado ao aroma amadeirado da casca das árvores, criava um ambiente vivo e pulsante.

     Pássaros cantavam entre os galhos, suas vozes ecoando de maneira espaçada, como se observassem quem ousava cruzar a fronteira entre as muralhas e a imensidão. O som dos próprios passos parecia mais alto ali, sem o acolhimento das ruas estreitas ou das paredes de pedra para absorver o eco.

     Parei por um momento no meio da ponte, olhando para trás. A cidade ainda estava ali, firme, cercada por suas torres e muros, mas a cada passo que eu dava, parecia mais distante, como se uma barreira invisível se formasse entre o que eu conhecia e o que me esperava adiante.

    — Não está tão assustador assim, está? — Selene comentou ao meu lado, observando minha expressão.

    Engoli em seco, afastando a sensação avassaladora que tomava conta do meu peito.

    — Não… só estou tentando me acostumar.

    Ela sorriu de canto e deu um passo à frente.

    — Então vamos fazer isso juntas.

     Respirei fundo, sentindo a brisa do rio. O lado de fora era diferente do que eu imaginava… e ao mesmo tempo, exatamente como eu sempre sonhei.

     O caminho de terra se estreitava à medida que nos afastávamos da ponte, e a cidade começava a desaparecer atrás das árvores. O chão ainda estava úmido da chuva da noite anterior, e o cheiro fresco da floresta era mais intenso agora.

     Selene caminhava alguns passos à minha frente, seu olhar atento varrendo a trilha como se estivesse lendo o próprio caminho. Eu sabia que ela era mais acostumada a esse tipo de ambiente do que eu, mas quão acostumada ainda era um mistério.

    — Você anda leve demais — ela comentou de repente, sem me encarar.

    Ergui uma sobrancelha.

    — Como assim?

    — Quero dizer que você não trouxe quase nada com você. Se estivéssemos indo para um passeio, tudo bem, mas você queria fugir, certo? — Ela lançou um olhar de sorrateiro, um sorriso quase divertido no canto dos lábios. — Pois bem, até fugir exige preparação.

    Suspirei, desviando os olhos para o caminho à frente.

    — Eu tinha um plano, mas parece que o destino tinha outro.

    — É, percebi. Mas dessa vez eu cuidei da parte chata para a gente.

     Antes que eu pudesse perguntar o que ela queria dizer, Selene soltou a alça da pequena sacola que trazia consigo e a puxou para frente. O tecido parecia bem mais volumoso do que antes, e agora que percebia, o som abafado de metal e vidro se misturava ao balançar da bolsa.

    — E isso tudo aí? — perguntei, desconfiada.

    — Suprimentos — respondeu simplesmente, abrindo um pouco a sacola para que eu visse.

     Dentro, vi pedaços de pão embrulhados em tecido, algumas frutas, uma garrafa de água e até mesmo um pequeno kit de ervas e frutas secas. Havia também uma adaga curta, bem cuidada, repousando ao lado dos mantimentos.

    — Como conseguiu isso tudo?

    — Enquanto você dormia, eu me virei. O mercado estava um caos, mas com moedas e um pouco de persuasão, dá pra conseguir mais do que se espera.

    Eu não sabia exatamente o que ela queria dizer com “persuasão”, mas resolvi não questionar.

    — Sinto muito por não ter contribuído para os suprimentos.

    — Relaxa. Não gastei todas moedas. E, além disso, agora temos algo mais importante a tratar: conhecimento.

    — Conhecimento?

    Ela lançou um olhar rápido para a floresta adiante e depois para mim.

    — Se você quiser sobreviver fora da cidade, precisa aprender algumas coisas. Como procurar comida sem chamar atenção, como encontrar abrigo e, mais importante, como não morrer de bobeira.

    Franzi o cenho.

    — E você sabe tudo isso?

    Ela deu de ombros, fingindo modéstia.

    — Digamos que já passei tempo suficiente ao ar livre pra entender como a coisa funciona. Você vai precisar aprender rápido, ou então, bom… espero que não tenha problemas em dormir com fome.

     O tom dela era provocativo, mas havia um peso real em suas palavras. Eu sabia que ela não estava brincando. Olhei para a floresta que se estendia diante de nós. Talvez sair da cidade fosse apenas o começo do verdadeiro desafio…

    Fim do capítulo 7 – Além dos Muros. (1/2)

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