Capítulo 70: Rumo às Terras Escaldantes.
O barco avançava pelo rio com um balanço leve, quase reconfortante, como se a água estivesse me embalando em silêncio. O vento era fresco e cheirava a névoa, aquela mesma névoa úmida que eu sentia em Rivendrias ao acordar cedo para ajudar no mercado. Era estranho como, mesmo se distanciando do meu reino, alguns detalhes me faziam sentir em casa.
Eu apoiei os braços na lateral do barco e fiquei observando o reflexo do céu na superfície da água. Tudo parecia tão calmo… tão diferente das últimas semanas. Quando penso em tudo que vivi desde que deixei a meu lar demônios, poderes que vinham e iam, a torre… fico surpresa por ainda conseguir respirar fundo e simplesmente… apreciar algo bonito.
— Está começando a parecer uma aventureira de verdade, sabia? — a voz da Selene veio atrás de mim, carregada de um certo humor provocativo que falhava em omitir que ela estava orgulhosa.
Me virei e encontrei seu olhar. Ela apontou com o queixo para mim, para o conjunto completo: minha nova armadura leve, cintilando em tons discretos com detalhes em azul; um cinto com uma bandoleira; e o manto azul que caía sobre minhas costas, movendo-se ao vento como se tivesse vida própria.
— Sério mesmo? — perguntei, tentando esconder o sorriso.
— Bem mais do que quando te conheci. Isso sem dúvida. — respondeu ela, com um sorriso leve.
Rose apareceu logo depois, segurando uma pequena sacola com frutas que tinha comprado antes de partirmos.
— Achei que seria bom comermos alguma coisa nesse tempo que estamos presas aqui — disse ela em um tom gentil.
Nos sentamos ali mesmo no convés, comendo entre conversas leves sobre nada importante. E, pela primeira vez em algum tempo, eu senti que estava exatamente onde deveria estar… Foi então que ouvi.
Um som distinto, estranho, completamente fora do ritmo natural do rio. Como o estalo de gelo rachando, mas mais profundo, mais forte, como se a própria água estivesse sendo obrigada a congelar num instante.
Levantei a cabeça imediatamente.
— Vocês ouviram isso? — perguntei, mas elas ainda conversavam entre si.
O som veio de novo, mais próximo. Um estalo seco… depois outro… e então um arrastar suave, semelhante ao deslizar de algo enorme sobre uma superfície congelada. Meu coração acelerou. Me levantei e fui até a proa do barco, sentindo o vento bater no rosto enquanto procurava a origem daquele ruído estranho.
E então a vi. A uma certa distância, emergindo da fina camada de névoa que repousava sobre o rio, uma sombra colossal se movia com uma elegância impossível para algo daquele tamanho. A água sob ela reluzia de forma anormal… uma camada de gelo se formava instantaneamente a cada passo que suas patas tocavam, criando trilhas cristalinas que brilhavam sob a luz da manhã.
Por um instante, tudo dentro de mim ficou em silêncio absoluto.
— Não pode ser… — murmurei, incapaz de desviar o olhar.
A criatura tomou forma por entre a névoa, revelando seu corpo imenso, de um azul profundo, quase translúcido, diversas patas alongadas cobertas por uma bruma fria que parecia se dissolver no ar. Ela caminhava sobre o rio como se a água tivesse sido feita para sustentá-la.
Eu sabia exatamente o que era… Já tinha ouvido histórias diversas histórias dos mercadores que vieram de longe e atravessaram os rios, mas nunca imaginei que veria com meus próprios olhos.
Meus dedos apertaram com força a borda da embarcação enquanto um arrepio percorreu minha espinha.
A Guardiã. O espírito ancestral do Reino da Água, protetora de tudo que eu um dia chamei de lar. E ela estava ali, diante de mim. Imponente. Serena. Colossal. E absolutamente magnífica. O som das patas gigantes tocando a água congelada ecoava em ondas suaves, quase hipnotizantes. Eu não conseguia afastar os olhos daquila cena.
— Ashley? — ouvi Rose me chamar atrás de mim. — O que foi? Você saiu correndo…
Ela parou de falar no instante em que viu o que eu estava olhando. Seus olhos se arregalaram tanto que por um momento achei que ela perderia o ar.
— Mas… mas aquilo é… — ela gaguejou, e senti sua mão agarrar meu braço com força, tentando me puxar para trás. — Ashley, sai daí! Entra no barco! Isso é enorme, pode ser perigoso…
— Não é perigoso. — respondi, mantendo o olhar na criatura. — Rose… aquela é Nerethys a Guardiã do Reino da Água.
— A… o quê? — ela disse, ainda sem fôlego, sem conseguir processar.
Senti Selene se aproximar mais devagar. Quando a presença dela ficou ao meu lado, esperei ouvir algum comentário, ou talvez uma piada. Mas o silêncio dela me chamou atenção.
Quando virei o rosto para conferir, percebi que ela não tinha chegado até mim.
Selene estava parada alguns passos atrás, ainda dentro da área coberta do barco. Seus lábios estavam comprimidos, os ombros tensos… e ela evitava olhar diretamente para a criatura. Seus olhos estavam fixos no convés, como se qualquer outra coisa fosse melhor do que levantar a cabeça.
— Selene? — chamei, estranhando. — O que houve?
Ela respirou fundo, mas não se moveu.
— Estou bem. — respondeu rápido demais. — Só… prefiro ficar aqui.
Rose, que antes parecia prestes a arrancar meu braço, agora olhava para mim com as sobrancelhas franzidas, como se estivesse percebendo algo que não tinha notado antes.
Me aproximei da Selene, com cuidado.
— Não precisa ter medo — falei, baixando a voz. — A Guardiã não vai atacar o barco… pelo menos eu acho. Ela protege o reino. Dizem que ela aparece quando sente algum desequilíbrio… ou quando quer observar quem está fazendo a travessia.
Selene engoliu seco, ainda rígida.
— Não é isso. — murmurou. — É só… prefiro assim. Aqui dentro está ótimo.
Não demorou muito para eu perceber o que estava acontecendo… eu conhecia bem aquele sentimento, apesar que não esperava ver uma pessoa como a Selene demonstrar algo assim… aquilo parecia um medo genuino.
— Você tem… medo de aranhas? — perguntei suavemente, quase rindo sem querer.
Ela fez uma careta de irritação imediata.
— Não é medo. — retrucou, cruzando os braços. — É… desconforto intenso, perfeitamente justificável considerando que isso aí tem patas do tamanho de árvores.
— Então é medo. — Rose disse, segurando um sorriso.
Selene lançou um olhar mortal para Rose, e eu quase ri, mas a visão da Guardiã logo me puxou de volta para aquela sensação de reverência. Voltei a encarar a criatura, com o coração acelerado e quente dentro do peito.
— Ela é impressionante. — murmurei, quase sem perceber que tinha falado em voz alta.
A Guardiã movia-se com uma lentidão majestosa, cada passo congelando a água em anéis perfeitos que brilhavam como cristais recém-formados. A névoa ao redor dela parecia dançar, serpenteando por seu corpo como fios de luz azulada.
Para mim, não havia nada de assustador ali. Era como olhar para a história viva do meu reino. Para um ser que existia antes mesmo do primeiro rei de Nautiloria construir seu castelo.
— Talvez ela esteja nos observando. — Rose comentou, agora mais curiosa do que assustada.
Eu assenti.
— Pode ser… dizem que consegue ela sentir emoções de quem passa por perto. E que às vezes decide acompanhar viajantes por alguns minutos, só para garantir que tudo está bem.
Rose sorriu devagar, encantada.
Selene bufou lá de dentro.
— Incrível. A aranha divina está fazendo ronda pelo rio. Maravilha!
— Oh, não exagera — eu ri. — Ela nem chega perto dos barcos.
E, como se a Guardiã tivesse ouvido, ela virou a cabeça colossal ligeiramente em nossa direção. Seus múltiplos olhos brilharam como pequenas luas azuis refletidas no gelo. Não senti ameaça neles… apenas uma atenção silenciosa, fria como a água do rio, mas tão antiga que parecia carregar memórias que nenhum mortal seria capaz de compreender.
Senti um arrepio subir pelos meus braços, mas não de medo. Era algo mais… profundo. A Guardiã então retomou seu caminho, desaparecendo lentamente na névoa, até que o som do gelo rachando se tornou distante… e depois sumiu completamente, deixando apenas o ruído suave do rio correndo.
Eu respirei fundo.
— Acho que isso significa que o caminho está seguro. — murmurei.
Rose assentiu. Selene saiu lentamente de onde estava escondida, agora que o perigo ou, no caso dela, o pavor tinha passado.
O rio se alargava conforme nos aproximávamos do território do Reino do Fogo. A água perdia um pouco daquele azul cintilante que eu estava acostumada e assumia tons mais quentes, como se refletisse o calor que vinha da terra adiante. O ar também mudava: mais seco, mais denso, carregado de um cheiro terroso que eu não sabia se vinha das montanhas ou da expectativa de finalmente cruzar aquela fronteira.
Selene respirou fundo, apoiando as mãos na borda do barco.
— É bom estar de volta. — disse, quase num sussurro, mas com um sorriso que ela tentou disfarçar. — Faz muito tempo.
Rose inclinou a cabeça, curiosa.
— Está feliz por voltar para o seu reino?
— Acho que sim. — respondeu Selene, olhando para o horizonte distante onde manchas escuras anunciavam uma possível movimentação vulcanica ou algo do tipo. — É estranho… mas bom. A gente sempre carrega um pouco de casa dentro de si, mesmo quando tenta fingir que não.
Eu sorri. Queria dizer algo bonito, algo que mostrasse que entendia, mas a verdade é que… eu não entendia ainda. Mas mesmo assim, ouvir Selene dizer aquilo fazia a viagem parecer mais real. Como se estivéssemos avançando não apenas pelo rio… mas pela nossa história.
O barqueiro se aproximou, apoiando um caixote sobre os ombros.
— Se o tempo continuar assim, chegamos lá em uns trinta minutos no máximo. — disse ele, com um sotaque arrastado. — Como saímos cedo, vamos chegar antes do fim da tarde.
Selene agradeceu com um aceno e discutiu com ele alguns detalhes da viagem. Eu apenas observei a mudança gradual da paisagem, deixando que aquilo preenchesse o silêncio confortável entre nós e o reino do fogo.
Foi quando senti um arrepio. Fraco. Como se alguém tivesse sussurrado algo bem atrás de mim.
Eu me virei devagar… e não havia nada.
Rose percebeu meu movimento.
— Algo errado? — perguntou.
— Não… eu só… — comecei, tentando entender aquela sensação que ainda vibrava no fundo da minha mente. — Acho que ouvi alguma coisa.
— Alguma coisa… tipo o quê?
Eu não soube responder imediatamente, porque aquilo não tinha sido um som comum. Não tinha sido vento, nem água, nem madeira rangendo. Era… diferente, claramente uma voz fraca.
Como se alguém tivesse falado dentro da minha cabeça. E o mais inquietante: uma voz era igual à minha.
Fechei os olhos por um momento, tentando racionalizar. Talvez fosse cansaço… o balanço do barco… tudo isso fazia sentido.
Mas aquela voz… Não era pensamento meu. Não era memória. Não era imaginação ou era?
Então veio novamente um sussurro leve, mais nítido dessa vez, como se tivesse brotado no fundo da minha consciência:
“Consegue me ouvir?”
Abri os olhos devagar.
— Ashley? — Rose insistiu, agora um pouco preocupada.
Eu respirei fundo.
— Deve ter sido… sei lá. Coisa da minha cabeça. — menti, porque não tinha outra explicação.
Selene me olhou com atenção… parecia que ela estava tentando decifrar meu rosto, como se procurasse algo além do que eu dizia. Algo que talvez ela já estivesse suspeitando antes.
Mesmo assim, não comentou nada.
O barco seguiu em frente, cortando a superfície do rio como se abrisse caminho para um novo destino.
E eu fiquei ali, encarando o reflexo trêmulo da água, com o sentimento de que algo ou alguém me observava a cada passo.
Fim do Capítulo 70: Rumo às Terras Escaldantes.

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