Capítulo 8: Além dos Muros. (2/2)
Um movimento sutil entre as árvores fez meu coração acelerar. Por um instante, pensei que fosse apenas o reflexo da luz brincando entre as folhas, mas então a vi: uma forma esguia deslizando pelo ar como se nadasse entre os ventos.
A criatura era pequena, do tamanho de um roedor, com um corpo translúcido e alongado, semelhante a um peixe que não deveria existir fora da água. Sua pele reluzia em tons de azul e prateado, e a cauda ondulava suavemente, deixando para trás um rastro cintilante, como gotas suspensas no ar.
Ela girou no ar uma última vez antes de desaparecer entre os galhos altos, dissolvendo-se como neblina ao amanhecer.
Pisquei, surpresa.
— Você viu isso? — murmurei, virando-me para Selene.
Ela seguiu meu olhar, mas apenas sorriu de canto.
— Espíritos menores. Alguns gostam de aparecer para viajantes.
— Sempre foram reais assim?
— Sempre. Você só não teve a oportunidade de ver antes.
Por mais que soubesse que o mundo do lado de fora era diferente, vê-lo com meus próprios olhos fazia tudo parecer ainda mais distante da realidade que eu conhecia.
O caminho se tornava mais denso à medida que avançávamos, os troncos das árvores formando uma barreira natural que filtrava a luz do sol. O som de nossos passos sobre folhas caídas parecia mais alto do que deveria. Foi quando vi algo incomum.
Uma estátua humanoide jazia entre as raízes de uma árvore retorcida, como se tivesse sido deixada ali há séculos. Seu corpo de pedra estava inclinado para frente, braços semiabertos, a cabeça ligeiramente voltada para o lado, como se tivesse sido interrompida no meio de um movimento. Mas o mais estranho eram os cristais azulados que emergiam de seu peito como se tivessem florescido dali, refletindo a luz com um brilho etéreo.
Um arrepio subiu por minha espinha. Havia algo terrivelmente errado naquela imagem.
— Selene… — minha voz saiu baixa, hesitante. — O que é isso?
Ela ficou em silêncio por um instante, seus olhos fixos na estátua. Sua expressão endureceu antes que respondesse, e quando falou, seu tom era sombrio.
— Corrupção de Cores.
Fiquei brevemente em silêncio.
— Corrupção…?
— Uma doença — ela continuou, cruzando os braços. — O primeiro caso aconteceu há cerca de dez anos. No começo, ninguém sabia o que era. Nem os melhores estudiosos conseguiram determinar sua causa… ou como reverter isso.
Voltei meus olhos para a estátua. Agora, com as palavras de Selene ecoando em minha mente, vi os contornos de um rosto quase apagado pelo tempo. Era como se aquela pedra ainda carregasse os resquícios de quem um dia foi.
— Então… isso era uma pessoa?
— Sim.
— Mas como isso acontece?
Ela respirou fundo antes de continuar.
— Acreditam que as pessoas corescidas… quando a energia se torna instável dentro delas, isso acontece. A cor as consome por dentro até não restar mais nada além de pedra e cristal.
Minhas mãos se fecharam ao lado do corpo.
— E não há como impedir?
Selene desviou o olhar, apertando a mandíbula.
— Com o passar dos anos descobriram formas de retardar. Mas quando chega nesse ponto… não há volta.
O silêncio que se seguiu foi pesado. Eu queria perguntar mais, mas algo na expressão dela me fez hesitar um pouco. Seu olhar estava distante, e por um momento, senti que não era apenas a estátua diante de nós que a incomodava.
— Você já viu isso acontecer antes, não é?
Ela piscou, surpresa com minha pergunta. Depois de um instante, suspirou.
— Sim, eu vi.
Fiquei quieta, esperando que continuasse. Selene passou a mão pela nuca, como se quisesse afastar um pensamento, mas então soltou, quase um sussurro.
— Uma vez… conheci alguém que foi consumido por isso.
Eu podia ver a rigidez em seus ombros, como se estivesse se forçando a dizer aquilo.
— Quem era?
Ela hesitou.
— Um amigo.
O silêncio caiu entre nós novamente. Dessa vez, mais frio. Olhei para a estátua mais uma vez. Antes, eu a via apenas como um vestígio estranho na floresta. Agora, sabia que era mais do que isso.
Era um túmulo…
O silêncio da floresta foi quebrado por um leve som entre as folhas. Parei no mesmo instante, com os sentidos em alerta. Selene também percebeu e lançou um olhar de advertência antes de deslizar uma das mãos em direção à sua espada.
O barulho se intensificou. Pequenos vultos ágeis se moviam entre os galhos acima de nós, sombras rápidas saltando de um ponto a outro. De repente, algo caiu na nossa frente. E mais uma coisa. E outra.
Em questão de segundos, estávamos cercadas.
Eram pequenos, talvez do tamanho do meu antebraço, tinham olhos grandes que brilhavam em um tom esverdeado. A pele amarronzada se mesclava à casca das árvores, e a parte mais marcante de sua aparência era a cabeça arredondada, que lembrava um cogumelo azul-acinzentado salpicado de pequenos pontos luminescentes.
Um deles, aparentemente o líder, deu um passo à frente e ergueu o que parecia ser um graveto afiado.
— Viajan…tes! — Sua voz era estranha, um pouco arrastada, mas compreensível. — Entreguem tudo que têm!
Olhei para Selene, que arqueou uma sobrancelha, claramente nada impressionada.
— Vocês querem nos roubar? — perguntei, ainda surpresa com a cena.
Outro dos pequenos seres bateu seu graveto contra o chão, tentando parecer ameaçador.
— Todos os pertences! Se não… vamos atacar!
Selene suspirou e descruzou os braços.
— Certo, já ouvi o suficiente. — Ela flexionou os dedos, e eu vi um lampejo de energia se formar ali.
— Espera! — Me coloquei na frente dela, impedindo-a de agir.
Ela franziu o cenho.
— Ashley, são só criaturas selvagens.
— Não! Eu já vi esses seres antes… em um bestiário na biblioteca. Eles são Homúnculos da Floresta, e não são agressivos por natureza. Se estão nos atacando, deve haver um motivo.
Me virei para o grupo de pequenos assaltantes, que agora nos observavam com curiosidade.
— Por que estão fazendo isso?
Os homúnculos hesitaram. O líder desviou os olhos por um momento antes de bater o pé, incomodado.
— Humanos… pegam tudo. Frutos, raízes… não deixam nada. Sem comida há muitos dias.
Meu coração apertou ao ouvir isso. Então era por isso que estavam desesperados.
— Eles estão passando fome — murmurei, voltando-me para Selene.
Ela bufou.
— E o que sugere? Vamos dar nossa comida para cada criatura faminta que encontrarmos?
— Se podemos ajudar, por que não? Você mesma disse que conseguiu bastante suprimentos.
Selene revirou os olhos, mas, depois de um instante, soltou um suspiro resignado.
— Tá bom, tá bom… — Puxou um pequeno saco de sua bolsa e me entregou algumas frutas e pães.
Ajoelhei-me e estendi a comida para os homúnculos. No início, hesitaram, como se fosse um truque, mas o líder deu um passo à frente, pegou um dos pães e o cheirou antes de abocanhá-lo de uma vez. Os outros logo o imitaram, devorando o que oferecíamos com animação.
Depois de alguns instantes, o líder se aproximou e ergueu a cabeça para me olhar diretamente.
— Boa humana. Lembraremos disso. Retribuiremos favor.
Sorri.
— Vou esperar por isso.
Com isso, os homúnculos se dispersaram entre os galhos, sumindo na copa das árvores tão rápido quanto haviam aparecido. Me virei para Selene, que me olhava com uma expressão indefinível.
— O que foi?
— Nada… só me perguntando quanto tempo vai demorar até você começar a adotar criaturas pelo caminho.
Ri baixinho, sentindo um calor suave no peito.
— Eles só precisavam de ajuda.
— Pois é. Ainda bem que eram pequenos — afirmou Selene enquanto ria discretamente. — Mas estou feliz em ver que você acabou tomando uma decisão melhor.
Enquanto voltávamos a caminhar, uma leve brisa passou entre as árvores, e por um instante, tive a sensação de que olhos pequenos e brilhantes ainda nos observavam entre as folhas.
O céu começava a se tingir de tons alaranjados e lilases, enquanto o sol descia lentamente no horizonte. A luz filtrava-se entre as copas das árvores, projetando sombras alongadas pelo caminho. O vento, antes morno, agora trazia um toque frio, anunciando a chegada da noite.
— Não é uma boa ideia ficarmos no meio do nada quando escurecer — disse Selene, analisando os arredores. — Poderíamos montar um acampamento, mas… — Ela estreitou os olhos e apontou para além das árvores.
Segui seu olhar e, entre os troncos retorcidos, notei uma vila pequena. As construções eram modestas, feitas de madeira e pedra, e à distância parecia apenas um vilarejo comum. Um fio de fumaça subia preguiçosamente de uma chaminé, e algumas janelas estavam iluminadas com uma luz fraca, alaranjada. O lugar parecia habitado, e por um instante, senti alívio.
— Podemos tentar passar a noite lá — sugeri.
Selene assentiu e seguimos em direção ao vilarejo. No entanto, conforme nos aproximávamos, algo parecia… errado. O cheiro da terra mudou. O ar carregava um odor levemente ácido, como folhas velhas e água estagnada. As plantações ao redor da vila estavam mortas, caules retorcidos emergindo do solo seco. Algumas carroças estavam abandonadas no meio da estrada de terra, cobertas de poeira.
O silêncio ali era estranho. Não absoluto, mas inquietante. Nenhum som de animais, nenhuma conversa ao ar livre. O vento arrastava folhas secas pelo chão, e o ranger ocasional de portas mal fechadas quebrava o silêncio.
Troquei um olhar com Selene, que já levava a mão ao cabo da espada.
— Ainda acha que é uma boa ideia? — perguntei em um sussurro.
— Tome isso por precaução — estendendo sua mão, ela me entregou uma adaga.
Selene observou as casas mais próximas. Havia sombras se movendo atrás das cortinas de algumas janelas, sinais de que havia pessoas ali. Mas ninguém saía, ninguém nos recebia. Apenas luzes fracas e vultos que surgiam e desapareciam.
— Se há pessoas, elas devem saber o que aconteceu aqui. — Selene começou a caminhar, seu olhar afiado captando cada detalhe ao redor.
Hesitei por um instante antes de aceitar e segui-la. Cada passo que dávamos parecia afundar o silêncio ainda mais fundo dentro de mim, como se estivéssemos atravessando uma barreira invisível que separava aquele vilarejo do resto do mundo.
Então, algo mudou. O vento parou. As folhas, antes dançando ao redor dos nossos pés, agora repousavam imóveis no chão. As sombras das casas pareciam se alongar de forma estranha sob a luz fraca do entardecer, como se o próprio vilarejo respirasse de maneira errada.
— Ashley… — Selene murmurou, os olhos percorrendo o entorno com cautela.
Segurei firme a adaga. Não sabia se era imaginação, mas senti olhos sobre nós. Escondidos na escuridão das casas, atrás de frestas e cortinas, observando. Esperando.
— Isso não parece certo… — murmurei, tentando manter a voz firme.
Selene apenas apertou a mão no cabo da espada e seguimos em frente, atravessando o coração daquela vila silenciosa… sem saber se havíamos encontrado abrigo ou se estávamos prestes a entrar em algo muito pior.
Fim do Capítulo 8 – Além dos Muros.
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