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     À medida que avançávamos pelo vilarejo silencioso. O ar carregava um cheiro estranho, quase metálico, que me causava um arrepio involuntário. O vento soprava em rajadas ocasionais, sussurrando entre as casas e fazendo portas e janelas mal fechadas tremerem.

    Então, vimos a luz.

     Uma estalagem de aparência simples se destacava entre as construções sombrias, suas janelas brilhando suavemente no escuro. A porta estava entreaberta, como um convite silencioso, mas havia algo inquietante na cena. Nenhuma movimentação, nenhuma risada, apenas a luz amarelada tremeluzindo contra as sombras que dominavam o restante do vilarejo.

    Selene lançou um olhar de desconfiança para o lugar.

    — Isso parece um tanto conveniente, não acha?

     Ela não estava errada. Ainda assim, ficar ali fora não parecia uma opção melhor. Tomando a dianteira, empurrei a porta, que se abriu com um rangido prolongado. O interior era iluminado por lamparinas presas às paredes, projetando sombras dançantes pelo ambiente. Algumas poucas mesas estavam ocupadas por pessoas, mas, ao notarem nossa entrada, o burburinho cessou.

     Todos nos encaravam. Os olhares não pareciam hostis, mas carregavam algo estranho, como se estivessem avaliando nossa presença, pesando nossa existência ali. O silêncio durou segundos a mais do que deveria, tempo suficiente para que meu coração acelerasse.

    Então, um homem de idade avançada, com barba rala e expressão cansada, tossiu e forçou um sorriso.

    — Bem-vindas, viajantes. Imagino que estejam à procura de um lugar para passar a noite.

    — Sim, estamos — respondi de imediato, mas Selene não pareceu relaxar. E eu também não.

     Algo naquele lugar estava errado. E, por mais que tentassem disfarçar, as pessoas ali sabiam exatamente o que era.

     O homem de nos indicou uma mesa perto da lareira, onde as chamas ardiam em tons alaranjados, lançando sombras vacilantes pelo chão de madeira desgastada. Sentei-me lentamente, sentindo os olhares ainda pesando sobre nós, enquanto Selene permaneceu de pé por alguns segundos a mais, varrendo o ambiente com os olhos antes de finalmente se acomodar ao meu lado.

     Uma mulher de avental surrado aproximou-se com um jarro de cerâmica nas mãos e despejou um líquido amarelado em dois copos de barro. Seu rosto parecia exausto, com olheiras fundas e umas marcas de preocupação na testa, mas mesmo assim ela forçou um sorriso enquanto nos servia.

    — Devem estar cansadas. O caminho para cá não é dos mais fáceis.

     Assenti, observando o líquido no copo, hesitando por um segundo antes de pensar em levar à boca. Selene cheirou a bebida e em seguida tomou um gole, e assim a segui. A bebida tinha gosto de chá de ervas, levemente amargo, mas não senti nada estranho, seu aroma era agradável e relaxante.

    — Vocês são as primeiras forasteiras que vemos em dias — continuou o velho, sentando-se à nossa frente. — Não há muito por aqui para atrair viajantes ultimamente.

    — Por que diz isso? — perguntei, tentando soar casual, mas sentindo o olhar atento de Selene ao meu lado.

    O velho suspirou, com os dedos tamborilando sobre a mesa.

    — O vilarejo tem passado por tempos difíceis. As plantações… morreram. Do nada. Primeiro, as folhas ficaram amareladas antes da colheita, depois os frutos apodreceram ainda nos galhos. Quando tentamos replantar, nada brotou. Nem mesmo ervas daninhas. O solo ficou… morto.

    Um silêncio estranho se formou entre nós.

    — E isso aconteceu quando? — Selene inquiriu, com um tom afiado.

    — Há poucas semanas. No início, achamos que era uma praga comum, algo que já tivéssemos visto antes, mas não importa o que façamos, nada cresce. E não fomos os únicos. Algumas vilas próximas começaram a relatar o mesmo.

     Meu peito apertou. De repente, as palavras dos homúnculos da floresta voltaram à minha mente: Não há mais frutos, não há mais comida.

    — E o que sabem sobre isso? — perguntei, tentando ignorar a inquietação crescendo dentro de mim.

     O velho trocou olhares com a mulher ao seu lado, como se ponderassem até que ponto deveriam falar. Então, ele abaixou a voz.

    — Algumas pessoas acham que fomos amaldiçoados. Outras dizem que algo está drenando a vida da terra. Seja como for, se isso continuar…

    Ele não terminou a frase. Não precisava. O significado era claro.

    — E a comida? — Selene questionou, sem rodeios.

    A mulher apertou os lábios antes de responder.

    — Estamos racionando. Ainda temos um pouco armazenado, mas não vai durar muito. Se não encontrarmos uma solução logo… — Ela deixou as palavras morrerem no ar, mas o olhar preocupado dizia o suficiente.

    Selene manteve-se em silêncio, apenas observando.

    — Mas por favor — a mulher retomou, forçando um tom mais ameno — descansem essa noite. Não queremos assustá-las.

    Selene manteve os olhos fixos nela por um instante, como se tentasse decifrar algo em sua expressão.

    — Claro — respondi, tentando aliviar o peso da conversa. — Agradecemos a hospitalidade. Quanto irá custar?

     Ambos trocaram olhares e seguraram a resposta um pouco antes de seguirem.

    — Se possível o pagamento poderia ser feito com comida? — Indagou o velho enquanto fazia um gesto de prece com as mãos.

    Aquilo me pegou de surpresa, pelo visto a situação está pior do que eles dizem.

    — Parece uma troca justa — afirmou Selene.

    O velho sorriu, mas havia algo naquele sorriso que não me convencia.

     A mulher nos levou até um dos quartos no andar de cima. O ambiente era pequeno, mas limpo. Uma única vela sobre a mesa lançava um brilho trêmulo nas paredes de madeira escura. Quando a porta se fechou atrás de nós, soltei um longo suspiro e olhei para Selene.

    — O que acha?

    Ela se encostou na parede, cruzando os braços.

    — Eles esconderam algo. Não sei o quê, mas estavam medindo as palavras.

    — Sim… — murmurei, sentando na beirada da cama.

     Olhei por um momento pela janela, lá fora, o vento uivava suavemente. O silêncio do vilarejo parecia ainda mais intenso agora, como se estivéssemos cercadas por algo invisível, algo que espreitava nas sombras.

     O cansaço de toda caminhada de hoje começou a me atingir. Eu sabia que deveria descansar, mas uma coisa era certa: essa noite, dormir não seria fácil.

     Selene suspirou baixinho. Seus olhos analisavam cada canto do pequeno quarto, como se tentasse absorver todos os detalhes antes de permitir que o cansaço a alcançasse.

     O espaço era simples, com duas camas de madeira, uma mesa , uma cadeira gasta e uma janela estreita que dava para a rua silenciosa. Do lado de fora, apenas algumas luzes permaneciam acesas, piscando de tempos em tempos, como se hesitassem em desafiar a escuridão.

     O vento soprava com suavidade, fazendo as tábuas da construção rangerem em intervalos irregulares, um som que se misturava à quietude inquietante do ambiente.

    — Vamos descansar — Selene murmurou, puxando a cadeira para perto da porta e se acomodando ali, como uma sentinela. — Ficarei vigiando um pouco, ainda não confio nisso tudo.

     Eu não precisava que ela explicasse o que queria dizer. Algo aqui parecia errado, como uma melodia que começa suave, mas carrega uma nota dissonante quase imperceptível. Mesmo assim, o peso da jornada começava a me vencer.

     Sentei na cama, passando os dedos pelo tecido áspero da manta, sentindo a textura diferente da que estava acostumada em casa. Casa…, a palavra trouxe uma sensação estranha, como se já pertencesse a uma lembrança distante. Fechei os olhos por um instante e, por reflexo, tentei me agarrar à imagem do meu antigo quarto, mas os detalhes pareciam escorregar pelos meus pensamentos.

     O cheiro amadeirado da biblioteca, os passos apressados da minha avó, os barulhos familiares da cidade… Tudo isso agora parecia um outro mundo.

     Um arrepio subiu pela minha nuca. Eu finalmente tinha partido, mas agora, diante do desconhecido, a realidade era diferente de qualquer expectativa que eu havia nutrido. Talvez fosse o cansaço, ou talvez aquele vilarejo realmente tivesse algo de errado, mas a sensação de deslocamento nunca foi tão intensa.

    O peso das pálpebras venceu qualquer hesitação e, sem perceber, adormeci.

    — …

    Algo me despertou de súbito.

     O quarto estava mergulhado na penumbra, a única luz vinha de uma fresta sob a porta. O silêncio parecia diferente agora, carregado de uma presença invisível que me fez prender a respiração. Então, ouvi… sussurros abafados.

    — Eu disse que essa era nossa chance. A viajante tem comida.

    Meu corpo enrijeceu sob a manta, e um frio rastejou pela minha espinha.

    — Mas e se ela acordar?

    — A gente precisa ser rápido. Se elas forem embora ao amanhecer não teremos outra chance.

     Os sussurros vinham do corredor, baixos, quase engolidos pela madeira antiga. Alguém estava ali. Esperei, contando as batidas aceleradas do meu coração. Passos leves deslizaram pelo chão do lado de fora. O ranger lento de madeira ecoou.

     O silêncio do quarto era traiçoeiro, e cada batida do meu coração parecia mais alta do que deveria. Os sussurros haviam cessado, mas a sensação de estar sendo observada não. Virei-me para Selene, esperando que ela reagisse, mas percebi que o cansaço finalmente a havia vencido. Seu corpo estava relaxado na cama, a respiração lenta e constante. Pela primeira vez, a vi vulnerável.

     Minha mente oscilou entre a urgência de acordá-la e o medo de que qualquer movimento chamasse atenção. Algo dentro de mim gritava para que eu fizesse algo. Antes que pudesse decidir, um cheiro forte invadiu meu nariz. Um odor alcoólico forte.

     Um tecido áspero pressionou contra minha boca, e o mundo girou ao meu redor. Meus sentidos se embaralharam em uma confusão sufocante. Tentei me soltar, mas meus braços e pernas pesavam como se não fossem meus. A escuridão do quarto parecia se estender ao meu redor, engolindo tudo. Minha visão afunilou, as bordas do mundo ficando borradas, sombras dançando no limite da consciência.

    Entre piscadas lentas e desesperadas, vi uma silhueta se movendo furtivamente pela porta. O casal da estalagem. Eles arregalaram os olhos ao ver a cena diante deles.

    — O que você está fazendo?! — a mulher sussurrou, horrorizada.

    — Quem é você? — o homem exigiu, os olhos alternando entre mim e a figura que me segurava.

    Nenhuma resposta veio. Apenas um movimento rápido.

     O som abafado de um impacto ecoou pelo quarto. Algo úmido atingiu o chão. Meu corpo cedeu completamente, incapaz de reagir, incapaz de lutar. A última coisa que vi antes de ser engolida pela inconsciência foi o casal cambaleando para trás, com as expressões contorcidas de choque e pavor.

    Depois, o vazio…

                                             ***

     Eu me recostei contra a parede do quarto, braços cruzados e olhar atento ao ambiente. O som dos passos no andar inferior já havia cessado, e apenas o farfalhar suave do vento contra a janela quebrava o silêncio da madrugada. Do outro lado do quarto, Ashley se ajeitava no colchão, o cansaço finalmente pesando sobre ela. Por mais que tentasse se manter desperta, seus olhos piscavam devagar, até que, enfim, se fecharam por completo.

     Soltei um suspiro, com um pequeno sorriso nos meus lábios. A garota era forte, mas ainda tinha aquele jeito ingênuo de quem não conhecia o mundo de verdade. Algo nela despertava um senso de proteção que eu não gostava de admitir. Afinal, nunca tive interesse em me prender a ninguém, mas, de alguma forma, já estava envolvida.

     Retirei meu manto e cobri Ashley para protegê-la do frio. Desviei o olhar para a porta, sentindo o cansaço se acumular em meus músculos. A noite anterior ainda pesava sobre meu corpo… aquela conversa com Sienna havia se estendido até o amanhecer, e eu sequer havia pregado os olhos. Meu plano era me manter acordada, mas já conhecia os próprios limites. Sentando-me na beira da cama, tentei afastar a exaustão, mas, no momento em que permiti que meu corpo relaxasse, meus sentidos começaram a se apagar…

     O que me despertou não foi um som, mas sim a ausência dele. Um vazio estranho que me fez abrir os olhos em um instante. O quarto estava mergulhado na escuridão, mas algo parecia fora do lugar. Instintivamente, virei-me para o lado onde Ashley estava. O colchão estava vazio…

     Meu peito apertou de imediato. Levantei num pulo, o coração acelerando enquanto meus olhos varriam o ambiente. Foi então que o cheiro me atingiu: ferroso, espesso, uma presença sufocante no ar. Sangue. Muito sangue.

    Com passos cuidadosos, movi-me até a entrada do quarto. O frio percorreu minha espinha quando vi as silhuetas caídas no chão. O senhor e a mulher da estalagem jaziam sobre a madeira do chão, as roupas encharcadas de vermelho. Os olhos deles, vidrados no nada, refletiam o pálido luar que se infiltrava pelas frestas da janela.

     Senti meu maxilar se travar. Meus dedos se fecharam em punhos. Não era apenas raiva: era algo mais profundo, algo que queimava como uma brasa em meu peito. O instinto de proteção que eu tanto tentava ignorar rugiu dentro de mim, esmagando qualquer hesitação. Por algum motivo alguém havia levado Ashley.

    E quem quer que fosse, não sairia impune.

     Respirei fundo, forçando-me a controlar o turbilhão de emoções que ameaçava nublar meu raciocínio. Havia algo errado ali, além do óbvio. A cena diante de mim não parecia obra de um ataque impulsivo… havia um método, um cuidado estranho no posicionamento dos corpos. O casal da estalagem não apenas caiu onde foram atacados, mas sim foram deslocados para aquele ponto, como se a pessoa responsável quisesse ocultar alguma pista.

     Abaixando-me, passei os dedos sobre o chão ao redor dos corpos, sentindo a textura da madeira áspera e manchada. Pequenos rastros de sangue se estendiam para fora do quarto, finas marcas que sugeriam que algo ou alguém foi arrastado. Meus olhos se estreitaram. Ashley havia sido levada, mas ainda estava viva quando saiu daqui.

     Um frio percorreu minha espinha quando percebi outro detalhe. As mãos do senhor da estalagem estavam cerradas, os dedos rígidos em torno de algo. Com cuidado, abri uma das mãos e encontrei um pedaço de tecido escuro, manchado de sangue, que havia sido rasgado violentamente. Era uma pista. Alguém tentou lutar antes de morrer.

     Levantei-me, sentindo a pulsação acelerar. As pegadas no sangue indicavam que os sequestradores não estavam longe. Se eu fosse rápida, ainda poderia alcançá-los. Meu instinto gritava para que eu seguisse imediatamente, mas respirei fundo, focando no que precisava fazer. Saindo do quarto, observei o corredor escuro, cada sombra parecendo se mover sob a luz fraca das velas quase apagadas.

     Seja quem fosse o responsável, não era um amador. Mas cometeu um erro ao pensar que poderia simplesmente tirar Ashley de mim.

     Olhei para o pedaço de tecido em minha mão, então ergui o olhar para a saída da estalagem. Meu maxilar se firmou, e um sorrisinho sombrio curvou meus lábios.

    — Se acha que pode levar o que é meu e sair impune, está muito enganado.

     A trilha se desenhava diante de mim, um convite silencioso ao desconhecido. Mas se achavam que eu hesitaria, estavam muito enganados. Caçadores viram presas quando escolhem o alvo errado.

    Fim do capítulo 9 – Quando as Luzes se Apagam.

    Nota: Para leitores que não estão acostumados com o recurso narrativo utilizado neste capítulo, explicarei a seguir, no meio do capítulo 9 ocorre uma mudança de pontos de vista na narração entre as personagens, essa mudança é evidenciada pelo sinal de três asteriscos entre um parágrafo e outro (pelo menos esse será o indicativo que usarei).

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