Dica para leitura: aspas simples são para pensamentos internos, que é esse símbolo: ’
Aspas duplas para conversa mental: “
Travessão para falas em voz alta: —
Capítulo 57 — Um Lar Para Voltar
— Como você está, garoto? — A voz de Borghen era alta e grave, mas havia um sorriso por trás dela, escondido na barba espessa. — Você levou uma bela pancada daquele monstro. Por um momento, achei que já era — Ele coçou a barba, um brilho de surpresa nos olhos. — Mas parece que você é mais duro de matar do que eu imaginava.
— É… bom, eu sou um pouco resistente — Flügel admitiu, coçando a nuca com um sorriso sem graça. — Para ser sincero, até eu fiquei surpreso em sobreviver.
Sua surpresa era genuína. Ele não esperava mais abrir os olhos para a luz, mas sim para o silêncio gélido e a presença inescapável das entidades. Acordar e, em vez disso, encontrar o rosto de Nytheris foi como voltar de uma longa queda: uma vertigem que seu cérebro mal conseguia processar.
Garrick chamou a todos para perto, e então disse: — Estão dispensados. Descansem, pois o que enfrentamos hoje foi só o começo. — Ele então se voltou para Flügel, o tom mudando para um de inquisição tática.
— Flügel, uma confirmação. O outro local que você mencionou, foi na batalha contra os vultos esfarrapados, correto? — Vendo o aceno do garoto, ele concluiu: — Pode ir para casa também então. Mas amanhã, eu quero todos aqui ao amanhecer, teremos outra reunião.
O grupo assentiu em uníssono, e o círculo começou a se desfazer em movimentos cansados. A voz de Garrick, porém, deteve um deles antes que pudesse ir longe.
— Thalion, você não. Vem comigo — O tom de Garrick não admitia recusa. — Temos que ir à Torre dos Magos.
Um resmungo sobre como suas pernas mal o aguentavam foi a única resposta de Thalion, que Garrick ignorou completamente enquanto já começava a andar.
Enquanto os outros tomavam seus rumos, Flügel e Nytheris começaram a caminhada para casa em um silêncio compartilhado.
— Estou exausto — a voz de Nytheris soou pouco mais que um sussurro ao seu lado.
Antes que Flügel pudesse responder, o corpo de Nytheris perdeu a forma, desmanchando-se em uma fumaça escura.. A corrente de mana viva serpenteou pelo ar e mergulhou em seu braço, e Flügel sentiu ele percorrer sua pele até que um peso sutil e familiar se acomodou em seu peito. Agora sozinho, ele continuou o caminho.
Na cozinha, o chiado suave dos temperos na panela era o único som na casa silenciosa. Até que o rangido familiar da porta da frente foi engolido pelo baque surdo de botas pesadas no assoalho.
Sophia parou de mexer o almoço. Eram os passos de Flügel. Arrastados, mais pesados que o normal. Os passos de alguém exausto.
— Flügel? — A voz de Sophia veio da cozinha, um fio de esperança tecendo através de uma camada de medo. Era o pavor constante de que não fosse ele na porta, lutando contra a certeza quase absoluta de que aqueles passos cansados só podiam ser de seu filho.
— Sou eu.
A voz veio do corredor, arrastada, quase um sussurro. O coração de Sophia martelava contra as costelas. Então, ele surgiu no batente da cozinha.
Ela soltou o ar que nem percebia estar segurando, e a colher de pau bateu na borda da panela, esquecida. Ele estava imundo, os ombros caídos sob o peso do mundo, mas estava inteiro. Inteiro. E isso não era nada parecido com o horror de sua primeira missão.
O alívio finalmente transbordou em um sorriso que iluminou seu rosto. Em dois passos rápidos, envolveu o filho em um abraço apertado, como se quisesse ter certeza de que ele era real. Afundando o rosto no cabelo dele, a pergunta escapou, quase um sussurro:
— Você está bem, Flügel?
Ela temia a resposta, mas precisava desesperadamente ouvi-la de sua boca.
Nos braços de Sophia, todo o peso do mundo pareceu se dissipar. O calor, o cheiro suave dela… aquilo era seu lar. E aquele abraço o transportou para outro. O primeiro.
A memória veio em flashes. A escuridão do fim de uma vida. O encontro com aquele ser inominável no vazio. E então, o choque da luz, do ar frio, do choro de um recém-nascido. No meio de todo aquele terror e confusão, vieram aqueles mesmos braços.
Sophia o segurava em seu nascimento, não como uma alma atormentada, mas como a joia mais preciosa do universo. Ela lhe ofereceu gentileza no momento mais aterrorizante de sua existência. Ela lhe deu um lar.
Flügel se permitiu afundar no abraço, o corpo pesado finalmente cedendo ao alívio.
— Sim, estou bem… — sua voz saiu abafada no ombro dela. — Só… muito cansado. Vou tomar um banho e dormir. Me acorde para o jantar, por favor?
Quando eles se afastaram lentamente, o rosto de Sophia estava iluminado, os olhos brilhando com lágrimas de alívio que ela não derramou. Com a mão terna, ela afastou uma mecha de cabelo sujo da testa dele.
— Eu te acordo. Mas e o Nytheris? — a voz de Sophia era suave.
— Dormindo — Flügel pousou a mão sobre o próprio peito.
O sorriso compreensivo que ela lhe deu foi a permissão que ele precisava. Ele se virou e se arrastou até o quarto, movendo-se no automático. A porta do armário, uma toalha qualquer, a porta do banheiro se fechando.
Ele se despiu, as roupas caindo no chão como um peso morto. A água quente jorrou, uma promessa de alívio para seus músculos doloridos. Ele entrou sob o fluxo, fechando os olhos, esperando que o calor lavasse o peso do dia, que levasse embora a fadiga de seus ossos.
Mas o cansaço dele era mais profundo. Uma âncora em sua alma que a água não podia tocar. A dor física diminuiu, mas a exaustão em seu espírito permaneceu intacta.
Desistindo de encontrar alívio, ele terminou o banho. Mal se secou, vestiu a primeira roupa que encontrou e desabou na cama. O mundo se apagou no instante em que seu rosto encontrou o travesseiro.
Um toque insistente em seu ombro e uma voz familiar o puxaram da escuridão do sono profundo.
— Ei, Flügel! Acorde!
Ele abriu os olhos com dificuldade, o mundo era um borrão sem foco. Aos poucos, a forma sobre ele se definiu: o rosto de Elijah, emoldurado por cabelos ondulados de um tom cinza. Os olhos do garoto, grandes e curiosos, o observavam de perto.
— A janta está pronta! — o sorriso de Elijah era tão grande que quase fechava seus olhos. — Você voltou! Vamos jantar!
Flügel se sentou na cama, um movimento lento que enviou uma onda de dor por seus músculos tensos. O quarto ainda girava um pouco. Ele piscou para focar em Elijah.
— Hm… O que é a janta?
— É aquele ensopado de carne com batata. E pão pra passar no molho.
A menção do ensopado fez seu estômago roncar, um protesto faminto. Mas a cama o chamava de volta. O travesseiro parecia um ímã, prometendo o silêncio e o vazio do sono que ele tanto desejava. Por um instante, a fome e o cansaço travaram uma guerra em seu corpo.
A fome venceu. Por pouco.
Com um bocejo que estalou sua mandíbula, ele empurrou as cobertas que não se lembrava de ter usado e forçou os pés para o chão.
— Obrigado por me acordar, Elijah — disse Flügel, oferecendo um sorriso cansado ao irmão mais velho.
Ao se levantar, ele sentiu o peito estranhamente leve. Um vazio familiar. Nytheris já devia estar de pé. Provavelmente na cozinha, importunando Sophia. O pensamento o fez sorrir de verdade.
Com o rosto lavado, Flügel seguiu o cheiro do ensopado até a cozinha. Elijah, Mael e Aragi já estavam à mesa. Flügel passou por eles e ocupou seu lugar de sempre: a cadeira na ponta, com um espaço vago ao seu lado, reservado para Nytheris.
Nytheris movia-se com uma eficiência silenciosa, servindo um prato para cada um. O de Flügel foi o último.
— Obrigado — murmurou Flügel, enquanto o vapor quente do ensopado subia, trazendo um cheiro rico de carne e temperos. Foi então que seus olhos se fixaram em algo no prato: pequenos grãos brancos, parecidos com o arroz do seu mundo antigo. Não era apenas ensopado, como Elijah havia dito.
Ele reconheceu os grãos na hora. Eram caros. Sophia só os comprava uma vez por mês, guardando-os para um momento de celebração.
Seus olhos se ergueram do prato para o rosto de sua mãe, que o observava com um sorriso caloroso. Ele entendeu. A ocasião especial… era ele.
A fome venceu qualquer resquício de paciência. Flügel ignorou o vapor que subia do prato, afundou a colher e levou uma porção generosa à boca. O calor imediato queimou sua língua e o céu da boca, mas ele mal se importou, a sensação ardente já começava a se dissipar, substituída por um calor reconfortante enquanto sua cura passiva entrava em ação.
Foi então que os sabores explodiram. O caldo era o primeiro a chegar: rico, espesso, com o gosto profundo de carne cozida por horas e um toque de ervas que ele não sabia nomear.
Logo em seguida vieram as texturas. Um pedaço de carne de vaca, tão macia que se desfazia, contrastando com a fibra mais firme e o sabor selvagem e marcante da carne de javali.
As batatas, quase um purê, absorviam o molho, e os pequenos grãos de arroz-prateado ofereciam uma resistência suave e agradável a cada mastigada. Era mais que uma refeição, era uma explosão de sensações, uma celebração em forma de comida.
Ele estava prestes a mergulhar a colher para a segunda porção quando a voz de Nytheris o cortou.
—Ei! Não coma ainda.
Nytheris ainda estava de pé, terminando de servir um suco escuro nos copos de todos..
— Desculpe, é que parece tão bom e eu estou com muita fome… — disse Flügel, baixando os olhos para o prato. Ele sentiu o rosto esquentar, envergonhado por sua própria impulsividade.
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