01 / Chegada
[ Ano 2019 da Era da Balança ]
O denso líquido vermelho escorria pelo seu braço direito, incapaz de se mover. Um de seus olhos já não se abria mais, coberto por uma mancha carmesim. Aquela cor viciante e enlouquecedora escorria da cabeça aos lábios, manchando o branco dos seus cabelos e impregnando a boca com o sabor ferroso.
Engasgava-se. O sangue percorria seu interior, chegando aos pulmões. Ele mal podia respirar. As costelas quebradas perfuravam seu tórax, tomando-o pela dor. Esse era o resultado de tentar enfrentar “aquela coisa”. Aquilo, que poderia facilmente partir seu crânio em dois, não era algo que podia ser derrotado.
Era claramente inútil. Ele não chegaria a lugar algum. Mas ainda assim, isso não seria o bastante para derrubá-lo. Nem mesmo os pulmões cheios de sangue e o corpo dilacerado impediriam aquelas pernas de se manterem firmes. Com sua mão restante, ele fez a única coisa que podia fazer: segurou sua espada e a apontou para a aberração.
Isso era tudo.
Aquela lâmina, ele não a soltaria, não antes que seu último sopro de vida fosse dado; assim é sua alma.
[ • • • ]
[ Tempo Presente ]
Arranha-céus, lojas, grandes shoppings, praças e fontes. Todas as construções eram modernas, mas o toque vitoriano presente em cada uma era impossível de ser ignorado.
Neste mundo de guerras e tensões, essa nação era a única que abria suas portas para todos: Nikuma.
— Finalmente, tô aqui! — Vestido quase a trapos, um garoto gritou de cima da fonte no centro de uma praça.
Os esguichos de água molhavam as extremidades da sua capa amarronzada, mas não se importou. Ele instintivamente respirou fundo para puxar o ar novo. Sorriu assim que o fez. O ar estava preenchido pelo aroma das flores da praça e das árvores dispostas ao redor. Era como uma ilusão que o dizia que não estava tão longe de casa.
Ele subiu mais um degrau da fonte, molhando um pouco dos sapatos desgastados e olhou ao redor. Não tinha muitos bancos por aí, mas tinha a grama para oferecer suporte, as árvores para proteger da chuva e a fonte para tomar banho. Estava decidido, mais tarde voltaria para dormir ali!
Foi a pose pomposa do garoto, com as mãos sobre a estrela esculpida no topo da fonte, que atraiu a atenção de algumas pessoas.
— Com licença, menino… Peço que desça daí, por favor, sem demora — disse um policial que se aproximou com cuidado, carregando preocupação na voz. Era meio gorducho, tinha bigode grisalho e seus olhos se escondiam nas rugas. Já tinha chegado na terceira idade.
— Ah, foi mal!
O jovem pulou do topo da fonte, conseguindo cair fora da água. Bateu levemente nas suas roupas, que não estavam lá em um estado muito agradável.
— Hum, garoto, eu gostaria de ver a sua identificação, só por precaução. — O policial pareceu hesitante em pedir, ajeitando seu boné azul.
— Claro! — respondeu o jovem, tirando um cartãozinho branco do bolso da calça. Entregou-o para o policial, que puxou seus óculos do colete.
— ‘Sora Akatsuki’, certo? Visto de imigrante emitido hoje, 1° de maio de 2018. Cútis branca, cabelo branco e olhos azuis. Aqui diz que tem 14 anos, mas sem nome de responsável? — O policial ajustou os óculos na face, buscando ver se não deixou passar algo batido.
Nome e data de nascimento preenchidos, visto regular, mas sem nome do responsável. Sim, ele não havia deixado nada para trás.
— Isso. Eu vim pra cá sozinho, mas não tem problema não, moço. Eu me viro!
— Oh, bem, eu terei que levá-lo até a secretaria municipal para ver se podemos contatar alguém…
As sobrancelhas de Sora arquearam quando ouviu isso.
— Ah, você também tá falando isso? Aí não! — resmungou o garoto, pegando de volta o cartão em um piscar de olhos.
Antes que o policial mais velho pudesse falar qualquer coisa, ele enxergou ao longe uma dupla de policiais correndo o mais rápido que podiam até a praça, ofegantes.
— Agente Vlov, não deixe esse menino escapar! — gritou um deles, quase tropeçando.
— Ah, merda! Achei que tinham desistido de mim. Ô vovô, valeu aí, não precisa vir atrás de mim que eu me viro sozinho! — Sora se despediu do senhorzinho, pulando por cima da ponte e começando a correr com um sorriso estampado no rosto.
— Vovô?! Ei, espera, garoto! — Vlov se voltou para a outra direção e se juntou aos demais policiais na perseguição. Seu porte físico há tempos não era um dos melhores para esse tipo de atividade, mas era seu trabalho.
Os quatro entraram nas ruas comerciais. Carros clássicos ocupavam as ruas enquanto as calçadas eram dominadas por butiques, lojas e cafés. As pessoas abriam caminho para os agentes. Não precisavam fazer isso para o garoto, visto que ele fazia por si mesmo. Sora pulava por cima dos postes, passando pela cabeça das pessoas, por entre os carros e placas.
— Ei, tios! Sério, podem me deixar quieto. Eu não vou fazer nada de errado, não! — Sora olhou para trás curioso, avistando os três policiais cansados, mas que ainda faziam esforço para tentar apanhá-lo. — Mas que coisa… eles não acreditam que eu consigo me virar sozinho?
O garoto corria e saltava de um poste para o outro, como se quisesse ir cada vez mais alto. Até que, de um segundo para o outro, do céu, ele foi ao chão.
— Ai ai ai! H-hein?! — Sora resmungou de dor e olhou para os lados. Estava no chão, amarrado por uma corda.
Na sua frente, estava uma mulher de cabelos longos, lisos e loiros, portando um uniforme vermelho-escuro e um distintivo dourado no peito. Sua estatura não chamava atenção, diferente das duas marcas vermelhas em formato de triângulo no seu rosto, uma em cada bochecha. Foi ela quem o jogou pro chão? Foi como se a própria gravidade tivesse aumentado.
— Recebemos a informação de um imigrante não regularizado andando na capital e é isso? Só um moleque? — disse a mulher, com um tom ríspido para os policiais que chegaram logo atrás, em especial, Vlov que tossia de cansaço.
— E-ei! Me solta, moça! Tá maluca?! — Sora olhava para cima, debatendo-se no chão.
— Ah, capitã Aisaka! Sim, era ele mesmo. Pedimos mil desculpas pelo incômodo! — respondeu o agente mais novo, após realizar uma rápida reverência.
— A Polícia Base de Nikuma realmente decaiu muito, se não são capazes de pegar um pirralho. — A mulher os encarou de cima para baixo, penetrando suas almas e forçando-os a se ajoelharem. Literalmente. Os três policiais imediatamente sentiram seus corpos mais pesados, obrigados a se ajoelhar diante daquela jovem que os olhava com desdém e claro descontentamento. — Todos os capitães estão ocupados protegendo a fronteira. O mínimo exigido de vocês é que sejam capazes de lidar com uma brincadeira de criança!
— O-o quê?! Ei, tios! — Sora só podia gritar de surpresa. “Isso é…um Mabda?”
O peso da gravidade sobre o corpo de cada um dos policiais aumentou, mas não era o bastante para realmente ser perigoso. Antes que ficasse sério e antes mesmo dos três implorarem por perdão, uma outra mão, com uma aliança no dedo, repousou sobre o ombro da mulher. Uma mão grande, branca e gélida, saída das sombras.
— Querida, por favor, tenha mais compostura… Eles fazem o melhor que podem. — Um homem de mais de dois metros de altura, a quem a mão pertencia, saiu repentinamente de trás da mulher. Tinha um porte maduro, olhar sério e leves olheiras sob os olhos. — Todo mundo tem medo de você justamente por ficar agindo assim.
“Mas que diabo é isso?! Esse cara não se aproximou, eu sei que não, meus olhos não mentem! Ele apareceu atrás dela do nada”, foram os pensamentos de Sora, imóvel como uma pedra. Ele, na situação que estava, não queria arriscar falar alguma coisa enquanto a atmosfera estivesse tão pesada.
— Tsc… Você também devia cuidar mais dos seus próprios assuntos, Alucard! — respondeu a mulher, cruzando os braços. Na mão direita dela, havia também uma aliança. Aisaka virou a cabeça com um leve resmungo e subitamente os três policiais já podiam se levantar normalmente.
— P-Pedimos perdão, capitã Aisaka, tenente Alucard — Vlov se desculpou. Tirou o seu chapéu e o levou ao peito. Seu olhar se afrouxando e pesando — mas, por outro lado, esse garoto não fez nada de errado. Só precisamos levá-lo até a secretaria. Peço humildemente que não sejam tão rígidos com ele.
Sora levantou as pálpebras, surpreso no primeiro momento, mas depois sorriu para o senhor.
— Então é esse quem estavam procurando? Vlov, você é um homem honesto. A Polícia Base de Nikuma certamente fica muito feliz em te ter. Podem voltar aos seus postos tranquilamente. Nós assumimos daqui.
— Sim, senhor! — responderam os três agentes, em uníssono. Vlov, em especial, acenou para Sora antes de se retirar.
— Han… e eu? — perguntou o jovem, ainda amarrado no chão.
Aisaka não voltou os olhos ao garoto, deixou que Alucard o fizesse. Após um suspiro meio descontente, o homem estendeu a mão sobre a corda e ela desapareceu. Rapidamente, Sora se levantou, respirando fundo.
— Você tem quatorze anos e nenhum guardião registrado, ainda assim, entrou no país legalmente e está com os documentos em ordem. Você tem algum parente que te espera aqui? — perguntou o maior, cruzando os braços. Era alto o bastante para olhar Sora de cima.
— Tenho não — respondeu o garoto, batendo contra as próprias roupas.
— Alucard, chega de papo. Não há porque continuar com isso, só vamos logo levar esse moleque pra Maki — a mulher interrompeu a conversa, cutucando o companheiro ininterruptamente — vamos, vamos, vamos!
— Tudo bem, tudo bem. — Alucard se virou para trás e começou a andar. Seu sobretudo vermelho cobria quase todo o corpo, mostrando apenas os sapatos pretos. Combinava bem com o cabelo do homem que era um vermelho desbotado e tão escuro quanto o uniforme da esposa. — Garoto, siga-nos. Vamos arranjar um lugar pra você ficar.
— Ahn, é… t-tá! — Sora os seguiu. Antes de começar a andar, olhou para trás. Não tinha ninguém guardando atrás deles, mas de alguma forma, Sora sabia que era impossível escapar daqueles dois. E isso o empolgava, deixando-o com um sorriso no rosto. Eles deviam ser fortes.
Os três seguiram caminho pelas ruas até o centro da cidade, um grande espaço de pedra lisa com uma construção à moda Casa Branca.
— Isso… é quartzo?! — Sora se encantou. Não era apenas a construção que chamava a atenção. Na verdade, aquilo estava em segundo plano. O ponto de destaque era a estátua no meio da praça. Uma estátua de prata de um cavaleiro todo vestido em armadura radiante, com um sol estampado em seu peito e uma espada levantada para cima, em pose de vitória.
A mulher não esboçava nenhuma reação, mas Alucard não pôde deixar de abrir um sorriso discreto.
— Como você deve saber, Nikuma é uma nação composta por apenas sete províncias. Normalmente, qualquer um que adentrar o país, deve ir até a prefeitura ou a secretaria da província mais próxima, e de lá, a Defensoria é acionada — falava o homem, sem interromper seu caminho. Mostrou seu distintivo aos dois guardas na frente do portão e logo passou. Aisaka passou na sua frente, levantando a cabeça sobre os dois guardas. — Entretanto, isso se aplica apenas a humanos puros ou com alguém já os esperando. Despertados sem vínculo familiar com nativos devem comparecer diretamente na capital do reino, aqui em Kaditta.
— Então a gente tá…
— Sim, estamos te levando até a rainha. Iremos regularizar a sua situação e ter a certeza do que fazer com você. Além disso, temos o princípio de controle de dano com poderes sobrenaturais para garantir — respondeu com firmeza, parando sua caminhada na frente de um grande portão dourado que se estendia até o limite do pé direito de dez metros. Imediatamente, os dois se ajoelharam, com um dos punhos sobre o chão.
— Mas precisa mesmo?! — perguntou Sora, mas sua única resposta foi o ranger dos pesados portões se abrindo. “A rainha, assim do nada?”, pensou e engoliu em seco, inutilmente tentando engolir junto o seu nervosismo.
No salão todo branco, preenchido por um piso de ametista lisa, sentada sobre um trono real, estava uma mulher de cabelo lilás, com fios que chegavam até os ombros. Suas roupas, o trono e o salão compartilhavam da mesma cor. Não tinha nenhuma coroa sobre a cabeça, nem trajava um vestido muito deslumbrante.
Ela se apoiou na sua própria mão, fitando o garoto de cabelo branco que era o único de pé ali. Era um olhar cínico e até malicioso, mas convidativo.
— Sora Akatsuki, huh? O que eu posso dizer senão ‘seja bem-vindo a Nikuma’?
[ • • • ]
Para muito além das fronteiras, havia uma sala. A sala era tingida pela escuridão. Como se as trevas engolissem tudo, não era possível discernir até onde iam as paredes.
Não tinha nenhum ruído. Nenhum incômodo.
Era como um abismo silencioso; apenas treva.
Entretanto, assim como no início dos tempos, a luz se fez. Como a luz que guia tudo, um fino pilar de luz surgiu do teto e se estendeu até o chão, revelando a figura de um homem vestido em uma capa longa e branca. Ele estava ajoelhado. Não era digno de encarar a luz.
— Se está aqui, suponho que já tenha tudo preparado — disse a luz sobre a cabeça do homem.
— Sim, meu senhor. Nos livrarmos de um dos capitães daquela nação perdida será o primeiro passo para purificar a Terra.
— Pois vá. E que do Caos…
— …venha a Ordem — completou o homem.
E a luz abandonou a sala, tão repentina quanto sua chegada.

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