02 / O que vem antes da tempestade
Em um mundo fragmentado, existe apenas uma nação na qual todas as raças são aceitas: Nikuma. O Programa de Imigração de Despertados foi criado há 30 anos com o intuito de abrir as portas para aqueles que buscam uma mudança de vida e em harmonia com outras espécies. O processo de naturalização é relativamente fácil, entretanto, é necessário a verbalização e demonstração do seu poder em busca do controle de danos ligados ao sobrenatural.
— Sora Akatsuki, natural da floresta do sul. Está dizendo que nasceu lá? — pronunciou a mulher de cabelo roxo.
— Sim!
Os olhos daquela mulher penetravam na alma de Sora, como se buscassem decifrar todo o seu ser. Quando ele deu a resposta, ela pareceu ainda mais interessada.
— Pois bem. E qual é seu Mabda?
Outra pergunta difícil. Falar a verdade poderia ser meio perigoso, foi o que ele pensou.
— A-ah! Eu… consigo reforçar a minha aura…ou algo assim?
A rainha Maki ergueu uma das sobrancelhas. Alucard e Aisaka, que estavam posicionados na entrada, fizeram o mesmo, em estranheza.
— É mesmo? — A rainha sorriu, com um certo grau de malícia. — Pois então, dê um passo à frente.
Sora engoliu em seco, mas quem seria tão maluco ao ponto de desobedecer uma rainha? Assim que deu um passo, um projetor saiu do chão, expelindo um laser escaneador azul sobre o seu corpo.
— O quê é isso?! — Ele hesitou um pouco.
— Oh, nunca viu um soul-scanner? Com esse dispositivo, somos capazes de escanear a natureza do seu Mabda. A tecnologia de hoje em dia nunca deixa de me surpreender — disse ela, soltando um risinho.
Sora soou frio.
— Hum, interessante. — A rainha voltou a apoiar a cabeça sobre a mão direita e levantou o olhar para os dois mais atrás. O dispositivo voltou para o chão. — Tudo bem, já me decidi. Sora Akatsuki, uma vez que é menor de idade, por ordem da rainha, a Sua Majestade, você estará sob a guarda temporária do casal Nóblete. — Essas palavras foram ditas com gosto, isso era claro como a luz.
— O quê?! — gritaram os três, em uníssono.
Alucard tinha espanto em seu rosto; Aisaka, revolta, mas Sora parecia empolgado.
— Majestade, com todo o respeito, nós não temos tempo o bast…
— Nem ferrando! — Aisaka cortou a fala do marido ao meio. — Maki, acha mesmo que eu vou cuidar de uma criança?
Alucard suspirou. Tinha uma feição de “e lá vamos nós de novo”.
— Amiga, isso não fará mal à rotina de vocês. Pense nisso como um “experimento social” que pode ser interessante! — Maki continuou a dizer, com a voz que parecia entrar e derreter os tímpanos. Era esquisito, Sora percebia. Aquela mulher sabia como influenciar os outros.
Aisaka resmungou. Alucard levou a mão pesada até a cabeça da capitã e a acariciou brevemente. Ela lançou um olhar de morte para Sora, que acenou timidamente, tentando dar um sorriso frouxo.
— Majestade, se me permite, qual o motivo por trás dessa decisão? Vivemos em patrulha e em missões. Não temos tempo para cuidar de crianças — pronunciou o homem, por fim. A sua fala, no entanto, não mudou em nada a expressão da rainha.
— Exatamente por isso, não? Pode mostrar para ele como é a rotina de dois oficiais de alto escalão. Mais objeções quanto a minha decisão?
Aisaka abriu as portas da sala com um murro, saindo sem esperar pelos outros dois. Sora, alegremente, seguiu o caminho até ser agarrado pela gola da camisa por Alucard e forçado a se ajoelhar perante à nobre.
— Agradeço pela audiência. Nós… daremos o nosso melhor. — O homem expressou um certo cansaço na voz. Sora foi forçado a fazer outra reverência antes de saírem.
A rainha permaneceu observando-os com o mesmo olhar até que os três saíssem e as portas fossem fechadas.
— Aisaka continua doce como sempre, não? — disse uma outra voz, masculina e encharcada de sarcasmo, ressoando pela sala do trono.
— Eu imaginei que você estaria aqui, Dean. — Maki finalmente levantou a cabeça de cima do apoio da mão e olhou para trás, mudando seu semblante. Ela encarou, com certa frieza, o homem que aparecera subitamente atrás do trono. — Mas antes de responder, por que você não me responde primeiro?
— Oh, quer perguntar algo pra mim? — O homem de cabelo castanho na altura das orelhas, trajando um longo casaco preto com um cachecol branco ao redor do pescoço, um bom contraste com a roupa da outra, repousou um dos braços sobre o trono, inclinando-se na direção da mulher.
— O nosso digníssimo e grandioso rei foi avistado novamente em um dos clubes noturnos da capital, na noite de ontem. Pode começar explicando por aí, o que acha?
— Ah, isso! Você já deveria saber que é rotineiro! Um rei precisa estar no meio do seu povo e inevitavelmente atrai muitos súditos. No meu caso, só acontece da maioria deles ser do sexo oposto. — O rei de Nikuma alargou o sorriso.
Maki respondeu com um longo suspiro.
Em um instante, uma alabarda saiu do trono para as mãos da rainha e voou para trás, visando a garganta do homem. Mas nada aconteceu. A alabarda deslizou pela direita dele, como se fosse repelida. O vento provocado pelo movimento do braço foi forte o bastante para chacoalhar as vestes do rei.
— Ufa, essa passou perto! …brincadeirinha. — Dean encostou na alabarda que foi recolhida a um tamanho de um pequeno bastão e entregue de volta às mãos da rainha, que o encarou com um olhar ameaçador, como se pudesse pular em seu pescoço a qualquer segundo. — Mas vamos lá, você sabe muito bem que eu nunca encostei um dedo em alguma das minhas seguidoras. Ainda sou muito fiel a você!
— Você realmente tem sorte de ter esse seu poder, senão já estaria morto — respondeu a rainha, friamente — e vou deixar essa passar porque estou de bom humor.
Ouviu-se um curto riso do homem.
— Por conta do nosso novo imigrante, suponho. Não posso dizer que não me interessei por ele também. — O rei levou uma das mãos até o queixo e direcionou seu olhar para a porta. — “Reforçar a aura”, foi o que o menino disse. E quanto ao soul-scanner?
— Não detectou nada, você mesmo viu. Em outras palavras…
— Ele não tem Mabda. Conhecendo você, não vou questionar a sua decisão a respeito. Huh, mas devo admitir, ele é corajoso em mentir para a rainha!
[ • • • ]
— E aí, que que a gente vai fazer agora? — perguntou o menino pela terceira vez, só naquele último minuto. Os três estavam andando pelas ruas, Sora logo atrás dos dois adultos que apressavam o passo — nós vamos bater em bandido?!
— Garoto, para o seu bem, é melhor não ficar fazendo tantas perguntas — respondeu Alucard, ainda andando. Cada passo dele valia por dois de Sora. Aisaka andava mais apressadamente, de forma a ficar na frente do tenente, mesmo com a diferença de tamanho.
— Maki, eu juro que vou…! — Parecia que a qualquer momento fumaça sairia da cabeça da capitã.
— Aquela era a rainha, né? Então por que ela não tinha coroa?! — Sora a cortou antes que ela terminasse.
— Dá pra fechar a boca?! — Aisaka cerrou os punhos.
Sora tampou a boca com ambas as mãos e assentiu com a cabeça. Alucard respirou fundo.
— Em circunstâncias normais, você seria enviado para o Conselho, mas em vista da determinação de Vossa Majestade, ficará conosco, acompanhando nossas rotinas até segunda ordem — o tenente disse, sem atrasar seus passos — por isso, irá nos acompanhar nas rondas da fronteira do Sul, de onde você mesmo veio. E honestamente, não sei o que Vossa Majestade pretende com isso.
Sora entendeu meias palavras de tudo que foi dito.
— E o quê que isso significa? — Sora deu uns saltos tentando ficar ao lado do tenente. Mesmo um do lado do outro, o garoto batia um pouco acima da barriga do homem.
— Aisaka, quer continuar daqui?
Não houve resposta da capitã, que só continuava seu caminho na frente dos dois. Alucard pigarreou antes de prosseguir.
— Bem, iremos rodear toda a fronteira do Sul, atentos a anormalidades. É só isso.
— Parece legal e movimentado!
— Esse é o tipo de trabalho que você não quer que seja movimentado, acredite — disse o homem, suspirando no fim.
Os três continuaram com a patrulha. Propriamente falando, era uma ronda para apenas os dois oficiais. O interesse de Sora era outro.
“Que daora!!”, era a única reação que ele conseguia ter. Seus olhos brilhavam para as construções góticas, brancas e douradas. Aquelas ruas pelas quais andava, pareciam fazer parte de uma área empresarial. Hotéis com entradas ordenadas por fontes e jardins clássicos cobriam as ruas, junto de casarões.
“Não fazia ideia que dava pra construir coisas tão grandes assim”, pensou.
— Tio, aquele lugar, podemos ir ali?! — Seus olhos cintilavam de admiração por uma grande casa feita por rochas polidas e brancas. As paredes eram decoradas por estátuas e desenhos de querubins dançantes.
A entrada do lugar era um caminho feito de algum mineral que, com certeza, Sora não conhecia, muito menos conseguia enxergar de longe. Mesmo assim, dava para ver a pequena lagoa abaixo do caminho, este que agora sim lhe parecia uma ponte. No topo do edifício, tinha um grande placar esculpido, dizendo “Teatro da Capital”.
Homens, mulheres, crianças e idosos, todos bem-vestidos, iam e vinham do edifício. As pessoas que entravam lhe pareciam felizes, mas aquelas que saíam estavam ainda mais, com largos sorrisos no rosto. Sora não entendia o porquê daquilo. Talvez o lugar tivesse alguma magia que mudasse o humor das pessoas? Ou quem sabe, um concurso de piadas?
— Não, agora não é hora. — Alucard ouviu o chamado e se virou, notando que o garoto também tinha voltado. Virou o olhar brevemente para Aisaka, que não parecia nem um pouco satisfeita em parar a sua ronda, com veias saltando da testa e o pé batendo repetidamente contra o chão. Deixá-la mais irritada do que isso poderia causar uma catástrofe. — Vamos, temos que continuar a—
Ele interrompeu a si mesmo quando olhou mais uma vez para Sora. O menino estava parado bem na frente do teatro. Não tinha um sorriso no rosto, mas uma genuína face de admiração. Parecia totalmente desligado da realidade. Alucard parou por alguns instantes e observou. Não era por curiosidade que Sora parecia querer entrar ali. Os olhos dele estavam focados nas pessoas.
Tinha alguns cidadãos que andavam pelo hall de entrada do teatro que estavam sozinhos ou em casais, isso é certo. Porém, a maioria daquelas pessoas entravam em trios ou quartetos: casais junto de suas crianças, muitos de mãos dadas.
Pais saíam daquele casarão com seus filhos pequenos sobre o pescoço, balançando as pernas e gargalhando. Mães andavam de mãos grudadas com suas filhas, adornadas como princesas. Todos conversavam entre si. O barulho das conversas era alto, mas estranhamente não era algo que incomodava a Sora; ele entendia que só podiam ser conversas boas. Muitas famílias eram diferentes, mas todas compartilhavam uma coisa, estavam sorrindo. Vendo cada rosto alegre, o garoto pensou: qualquer lugar que pudesse deixar pessoas daquele jeito, deveria ser o melhor lugar do mundo.
Sora teve a atenção prendida por uma menina bem pequena que corria ao lado de um adulto, apressada. Ambos passaram do seu lado, conversando.
— Papai, vamos voltar outro dia! — disse a menina, cheia de ânimo, para o homem mais velho. Ele respondeu com um “só se você se comportar bem”.
Quando os dois passaram por ele, Sora sentiu o peito pesar. Fazia tanto tempo, mas ainda não conseguia dar um nome para essa sensação estranha no peito. Seus olhos se voltaram para o chão, perdendo-se nos ladrilhos. Iria doer voltar a olhar para aquela paisagem agora.
Alucard continuou observando. Ele quase deixou escapar um sorriso de canto, mas quando viu a expressão do menino sumir de um instante para o outro, estranhou.
— Hey, garoto, vamos. Deixe isso para outra hora — disse de forma casual, mas tentando mostrar urgência.
— Ah, sim! — Sora respondeu, correndo até ele. Os dois apressaram o passo de volta para Aisaka que, naquele ponto, faltava só pular em cima de alguém.
Em pouco tempo, os três se viram frente às grandes muralhas de Nikuma, protegendo a nação em todos os pontos cardeais. No Sul, havia algumas aberturas das zonas de entrada para imigrantes, especialmente reforçadas por guardas. Alguns guardas avistaram os três e cumprimentaram, em continência, os dois oficiais. Sora fez o mesmo ato em resposta para eles, como se fosse um pequeno soldado, o que arrancou um sorriso breve de Alucard.
Depois de passar pelos guardas, o trio parou numa distância de três metros da muralha, sem qualquer abertura.
— Han… e agora? — Sora ergueu a cabeça para conseguir fitar Alucard diretamente nos olhos. O vampiro era tão alto que se Sora ficasse naquela posição por um tempo, certamente teria um torcicolo.
A sua resposta chegou com o flexionar de joelhos de Aisaka, um pouco mais à frente dos dois. Sem dizer uma palavra, em um instante, ela já não estava mais ali.
— Mas hein?! — Sora estava mais que surpreso. Verdadeiramente, o movimento da mulher não podia ser acompanhado pelos seus olhos. Foi como se ela tivesse sumido de súbito.
Alucard guiou os olhos do garoto apontando o dedo para cima. Aisaka estava de pé no topo da muralha, sessenta metros acima do chão.
— Ela pulou?!
— Segure-se, garoto — disse Alucard, abaixando a cabeça para responder ao olhar curioso.
Não demorou nada para que Sora também experimentasse essa velocidade. Alucard agarrou a gola do garoto e igualmente saltou, puxando-o junto de si. Sora quis gritar, mas antes mesmo que pudesse abrir a boca, já estavam os dois de pé ao lado de Aisaka.
— Que… que… que massa!! — Os olhos do menino brilhavam enquanto ele pulava de excitação. Seus pés estavam bem firmes na parede de vinte metros de espessura, mas mesmo assim, ele não podia deixar de sentir um frio na barriga. — Então é dali que eu vim? Caramba!! — Sora estendeu a mão para a floresta além da muralha.
— Você é mesmo barulhento — falou a mulher, quase como se estivesse grunhindo.
— Deixe-o, vai. Deve ser a primeira vez olhando tudo de um lugar tão alto — Alucard respondeu com calma, cruzando os braços e voltando o olhar para a mata adiante.
— Aah, isso é demais! — Sora exclamou, abrindo os braços e fechando os olhos. Os constantes fortes ventos batiam contra o seu corpo, chacoalhando suas roupas e bagunçando seu cabelo, mas isso só lhe provocava risadas. Os ventos carregavam o cheiro das árvores e de umidade. Era cheiro de “casa”.
— Tsc, que infantil. — Aisaka olhou Sora pelo canto dos olhos e resmungou.
— Hum, o que esperava? Ele é uma criança. De certa forma, você era parec-
— Nem termine. — A mulher cortou as palavras do companheiro, com rispidez. Ele, em retorno, suspirou e relaxou os ombros. Entretanto, não teve tempo de se recompor para o que aconteceu a seguir.
Sora estava cantarolando alegremente, mas no momento seguinte, calou-se pelo estouro que engoliu os três; o estouro de algo que quebrava a barreira do som em um avanço calamitoso.
O sorriso de Sora se fechou, transformando-se em espanto. Seus olhos se arregalaram. Aisaka puxou a espada da cintura e gritou pelo nome do tenente Alucard em um tom jamais antes ouvido por ela, enquanto seu tenente acabara de ter o tronco atravessado por um arpão do tamanho de um homem.
Não tinha tempo para que qualquer um dos outros gritassem.
Voando na altura do topo da muralha como um míssil, um homem completamente esbranquiçado colidiu seu arpão com a lâmina de Aisaka em pleno ar, rangendo os dentes. Seus olhos, em contraste absoluto com sua pele, eram pretos, com apenas as pupilas amarelas. No centro do peito, usava um grande broche com um punho fechado estampado.
“Um Caçador da Ordem?!!” Aisaka pensou, rangendo os dentes.
— Agora que derrubei o vampiro, tudo fica mais fácil! — rugiu o homem, pressionando a capitã.
Enquanto isso, o corpo do tenente caiu para dentro da muralha, dissolvendo-se em cinzas.

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