08 / Inconveniente
— Ah, é assim mesmo… Uma hora você se acostuma.
— Quê?
Os dois estavam sobre o terraço de um dos prédios da escola. Sora e Álli. Era horário de almoço.
— Pô, mas isso é muito esquisito, cara! Eu nem bati nela. Digo, eu tentei, mas não bati! — Sora resmungou. Parecia mais inconformado e confuso do que irritado.
— A Yunni é assim. Ela te achou engraçado e agora tá pegando no seu pé. É normal. — Álli deu uma mordida no seu pão recheado enquanto falava naturalmente.
“Normal?”
Sora olhou para a sua mala bem ao lado de si e suspirou demorado. Na mala de Sora, dois dos livros didáticos estavam manchados por café. Páginas e páginas que agora jaziam encharcadas.
“Fazer isso é normal…?”, Sora fechou os olhos e deu uma mordida no seu almoço.
— Os seus livros… Acha que vai dar pra usar ainda? — Álli levantou a cabeça tentando ver, preocupado.
— Se pá não. Que saco…e ainda falou que foi sem querer.
Álli o olhou no rosto. Sora olhava fixamente para o chão. Era muito estranho vê-lo daquele jeito.
— Vai, desabafa aí. — disse o loiro.
— Pô, eu não fiz nada de errado! Primeiro, ela fica sempre me enchendo o saco por não ter despertado Mabda. E Mabda isso e aquilo! Depois ficou falando pra todo mundo que eu trapaceei pra entrar aqui e agora você é o único que ainda fala comigo… Poxa, picharam até a mala que o tio e a tia me deram! Eu fiquei tão bravo que fui pra cima dela, mas de novo fui pro chão. Aah, que droga! Se não fosse aquelas paredes dela, eu já tinha metido um socão!! — Sora bufou, levando a mão direita até o bíceps do outro braço, dando tapinhas. Mas depois, desfez a pose e abraçou as pernas.
— Mas é, não tem muito o que fazer. Você só seria expulso se falasse alguma coisa. A família Heartz é uma família de muito poder comercial então duvido que ela levaria alguma punição. Fora que, mano, só relaxa que logo logo ela te deixa em paz.
— Poder comercial? — Pela reação dele, Álli entendeu que não tinha entendido as palavras.
— B-bem, dá pra dizer que a família dela tem muito dinheiro. Além do quê, a Yunni é bem bonita, então os meninos não conseguem ficar contra ela.
— Hmm, então ter muito dinheiro te dá o direito de fazer essas coisas. — Ele ficou ainda mais cabisbaixo. — Caramba…
— Não, não! Não é assim que o mundo funciona. Digo, é assim sim, mas não devia ser, tá? Não devia ser! — Álli se desesperou um pouco. Já percebeu que Sora não tinha noção de muita coisa, então ele precisava tomar cuidado na hora de tocar em certos assuntos. Ele nunca o questionou por pensar que era só porque Sora tinha morado bem longe no interior, talvez.
— Então tá. — Sora timidamente voltou a comer seu almoço. Sua voz saiu bem mais baixa que o normal. — Só não posso deixar a tia ou o tio verem os livros, senão tenho certeza que vão me jogar da muralha.
Sora suspirou de novo, fungando o nariz. Álli pensou que por um instante os olhos do amigo ficaram marejados, mas julgou ter sido só impressão.
— Você fala desses seus tios bastante. Vai ver eles no fim de semana?
Os alunos da Escola Militar ficam o tempo inteiro da semana letiva dentro das propriedades da escola, tendo a possibilidade de visitar suas casas e parentes nos finais de semana.
— Ah, não, eles que vão vir aqui. Tô empolgadão!! — Sora abriu um sorriso largo, subitamente.
Álli ergueu a sobrancelha. Aquilo não podia ser verdade. Alunos podiam sair da escola à visita, mas o contrário nunca era permitido, a menos que fossem visitados por integrantes das Forças de Defesa.
— Sora…Qual é o nome desses seus tios?
— Tia Aisaka e tio Alucard. Ah, sabia que eu já mordi a língua falando o sobrenome deles? — e deu a última garfada no seu almoço, satisfeito. — Delicinha…
Álli estava paralisado, com o queixo até o chão.
— Como é que é?!!
[ • • • ]
O último sinal tocou. O sol já começava a se despedir e o mesmo fluxo de pessoas que uma vez subiu as escadarias dos prédios, agora ia para o sentido oposto, dividindo-se nos prédios dos dormitórios. Sora ia correndo mais apressado.
— Ow, ow, aonde você pensa que tá indo com essa mala aí, rapaz? Parece que vai explodir. — Álli parou o amigo no meio do caminho.
— Hum? Ah, eu vou tentar dar um jeito nos livros, que foi?
— Antes disso, bora no seu armário trocar o material pra adiantar pra segunda, ainda mais que não vamos precisar de muita coisa nesse dia.
— Armário? — Sora olhou para os lados. À sua esquerda tinha uma extensa fileira com armários de escola, cada um ocupando quase um metro de comprimento. Essa escola também ficou famosa por seus corredores imensos. Quiseram que os armários ficassem em um mesmo lugar para “estimular a socialização”.
— Onde ele fica?
— Ué! Nem a tia nem o tio falaram disso aí pra mim, não…
Eles falaram. Bem antes do primeiro dia de aula, quando o casal foi apresentar os prédios, mas Sora estava mais interessado em correr pelos corredores do que qualquer outra coisa. Nesse dia, ele levou um pouco da fúria da capitã Nobléte na forma de um galo na cabeça.
— Você tem um armário e não sabia disso? — As sobrancelhas de Álli tremeram. — O-olha, deixa pra lá, pode deixar que por esse final de semana eu guardo as suas coisas no meu, tá?
— Sério?! Aí sim, valeu! Você é mesmo gente boa. — Ele tirou os dois livros manchados da maleta e entregou o resto, voltando a apressar o passo indo para o pátio externo.
— Como você consegue ser tão centrado em algumas coisas mas tão despreocupado com outras? — Álli disse, mesmo sabendo que o outro não iria ouvir. Antes de continuar, soltou um riso.
Sora seguiu seu caminho de volta, animado. Passava a impressão de que ele poderia começar a saltitar a qualquer momento, isso até se juntar ao mar de uniformes azuis.
Tinha algo de esquisito naquela multidão.
— Hm? — Sora virou para trás.
Ali, ele sentiu. Aquela mesma sensação de dois dias atrás. Aquele incômodo que percorria o corpo e chegava até atrás da orelha. Algo estranho, nascido dos pares de olhos perdidos dos alunos que o olhavam de relance. Ele conseguia os ver. Mesmo que eles tentassem se esconder nas sombras do entardecer, não era o bastante para passarem despercebidos. Não, talvez eles nem tinham a intenção de se ocultar. Alguns viravam a cara no mesmo instante, outros, fitavam descaradamente antes de cochicharem com seus amigos. Eram pares de olhos intimidados, curiosos, enojados, como se tivessem encontrado a mais nova e grotesca atração do circo.
Lembrou do que escreveram na sua mala: “some daqui”. Sora engoliu em seco. Buscou continuar andando, só ignorando. Isso! Era só ignorar que ficaria tudo bem. São só olhos de pessoas estranhas. Mas então, ignorar aquelas pessoas não seria o mesmo que ficar sozinho de novo?
“Ninguém aqui aceitaria uma pessoa como você”, as palavras de Yunni.
Por que não o aceitariam? Por que o encaravam tanto? Ele não era tão errado assim, ou era?
— Ei, toma cuidado. Ouvi dizer que se chegar muito perto ele suga seu poder. — foi o que uma garota mais próxima disse para a colega, em cochicho. Cobria a boca e fingia que não estava olhando.
Ele apertou mais a alça da maleta e levou ela ao peito, timidamente. Os seus olhos se encontraram com o chão.
É claro. Sora já sabia a resposta para essas perguntas desde a conversa com a elfa. Não haveria outra razão pela qual o olhariam como um inseto inconveniente.
Sem poderes, nem um de raça, nem Mabda. Alguém que não conhece nem um pouco de si próprio seria mesmo apto a estar ali? É claro que não. Isso é ridículo. É claro! Não tem como aquilo ser por merecimento. Tio Alucard e tia Aisaka devem ter ficado com muita pena dele durante a luta contra o fantasma que decidiram colocá-lo ali. Então no fim, ele realmente tinha trapaceado.
“Não olha de volta. É só não olhar de volta”, foi o que Sora pensou. Ele abaixou a cabeça até sair da multidão, no mesmo ritmo, até finalmente chegar ao prédio dos dormitórios.
O fluxo de alunos agora estava bem menor, uma vez que ele tinha atrasado um pouco graças a parada nos armários.
Sora puxou ar com muita força. Só ali percebeu que estava com a respiração presa por um tempo. Ainda de cabeça baixa, parou e repousou as mãos sobre as pernas, curvando o corpo para frente. Ofegou um pouco.
Enfim, descanso.
O peso foi embora, as sombras também, junto com todos aqueles olhos. Agora era só ir para o seu quarto e dar um jeito nos livros manchados.
— Ei. — Surgiu a voz angelical, a última que ele queria ouvir.
Sora respirou fundo. Bem fundo, ainda na mesma posição.
— Ei, estou falando com você, Sorinha.
Ele ergueu a cabeça. Não queria vê-la de novo naquele dia, mas lá estava ela, no canto do andar térreo, vestindo o uniforme azul sob medida, diferente dos demais. Uma figura tão nobre, como um anjo, à frente de outros dois alunos.
— Oi, Yunni. — Sora respondeu, com cautela. Foi impressão? A expressão da garota pareceu contorcer por um segundo quando ele disse o nome dela. — Eu só quero entrar no meu quarto, de boa? Tenho que dar um jeito de arrumar os livros aqui.
Suas palavras saíram apressadas. Ele queria sair dali, rápido. Precisava sair. Tentou passar por ela, mas um dos garotos, como se fosse um tipo de guarda-costas, estendeu o braço no caminho.
— Relaxa, cara. — disse o “serviçal”.
— Sorinha, eu vim aqui só pra pedir desculpas pra você, pelo o que aconteceu.
“Hein?”
Não foi o que ele estava esperando ouvir.
— Eu fiz coisas realmente horríveis. Espalhei mentiras sobre você, mas a verdade é que eu só tinha inveja… E eu ainda acabei sujando seus livros… O mais manchado foi justamente o de Almalogia. Sabe, eu fiquei te olhando durante as aulas e eu percebi que é nessa aula que você fica mais concentrado. É a sua matéria favorita, né?
Aquela voz, como ela podia ser tão doce assim?
— H-han, é, sim… — ele respondeu, como se fosse forçado a isso. Ela realmente estava se desculpando? Agora Sora até estava se sentindo mal por tê-la xingado tantas vezes na sua cabeça.
— Então, como pedido de desculpas… — Yunni deu dois passos para frente. Estava perto. O balançar dos cabelos quando ela se aproximou espalhou um pouco de seu perfume. Era realmente como o de uma flor. — Pode deixar que eu cuido dos seus livros, tudo bem? Eu prometo! — ela sorriu.
Era um sorriso tão bonito.
Ele estendeu os dois livros com páginas manchadas para a elfa, que os segurou com certo cuidado.
— Muito obrigada, Sorinha. Agora eu posso… — Yunni segurou ambos os livros abertos, um na frente do outro. — terminar de onde comecei, né? — E os rasgou no meio.
— …eh? — Sora paralisou.
Os dois garotos atrás da elfa caíram na risada.
Sora levantou o olhar dos livros caindo no chão, para a menina que os tinha segurado.
No seu rosto, um sorriso de um canto da boca ao outro. Alegre, satisfeito, realizado. Os dois olhos dela brilhavam em satisfação, com gosto. Aquela era realmente uma flor coberta por incontáveis espinhos, capaz de atrair qualquer mísero e ingênuo inseto com seu perfume, apenas para devorá-lo depois.
— Prontinho! Eu falei que ia arrumar.
O garoto de cabelo branco estava imóvel. Seus olhos estavam fixos no rosto da elfa. Sua respiração pesada parou quando cerrou os dentes. As veias da testa pareciam querer estourar.
— Você…!! Qual o seu problema?!! — ele gritou, levantando o braço. Ia socá-la, mas claro que nada aconteceu. Seu punho se chocou contra uma parede de vidro, quase invisível e que o lançou para trás, mas dessa vez ele não caiu. — Merda!
— Ai, que selvagem! É a terceira vez que você avança pra cima de mim. É um tarado?! — ela respondeu, com ironia reinando sobre cada palavra. — Tudo que eu falei antes, certeza que era o que você mais queria ouvir, né? Com certeza pensa que tenho inveja de você ou algo ridículo assim!
— O que que você ganha fazendo isso?! O que eu fiz pra você, sua…?! — Sora cerrou seus punhos. Seu grito era genuíno. Suas pupilas tremiam e sentia a garganta fechar. O que mais sentia era raiva? Tristeza? Não sabia, mas algo dentro de si o puxava cada vez mais pra baixo.
Ela continuou sorrindo e se aproximou novamente. Sabia que estava segura graças às suas paredes. Não precisava temer nada. Seu olhar voltou a ser encantador, mas dessa vez, o desgosto era claro.
— Eu só quero você fora daqui, só isso. Não é tão difícil de você ir embora.
— Cê tá no lugar errado, cara, é só isso! — um dos garotos guarda-costas disse, rindo. —
Por mais que ele odiasse e tivesse raiva, por mais que quisesse bater neles e achasse injusto, no fundo, Sora sabia:
“eles estão certos”.
Não, não podia pensar assim! Pensamento depressivo do caramba! Ia ficar tudo bem. Isso, eles estavam no andar térreo, o que significa que logo Álli ia aparecer e ele teria ajuda. Sim, ia ficar tudo bem!
Sora virou a cabeça para trás, buscando ver se no fundo da entrada do dormitório podia ver o amigo.
Mas ele estava bem mais perto do que se pensava.
— Á-Álli…? — Sora sussurrou, falando para si mesmo. Foi a descrença de enxergar o loiro escondido atrás de uma pilastra, observando a cena, sem se mover, sem dizer nada, nem mesmo uma única palavra.
Sora não sabia há quanto tempo Álli estava assistindo a cena, mas ele não se moveu. A face constrangida e tingida por culpa do amigo sumiu atrás da pilastra. Foi nesse momento que Sora entendeu o que ele havia lhe dito mais cedo. Ele compreendeu que mesmo se ela fizesse isso à vista de outros alunos, ninguém falaria nada. Ninguém ia fazer nada.
Essa era a verdade daquela classe: ninguém consegue se opor a Yunni Heartz.
— Ah… — suas pernas cederam. Não tinha mais força. Seus olhos cansaram e abriu suas mãos.
Yunni se aproximou do rosto dele e voltou a passar por ele. A cena se repetia, em um déjà-vu desagradável.
— Aqui não é o seu lugar. Não para você, alguém que não consegue fazer nada. Quer tanto aprender sobre algo que você nunca vai ter? Que dó… — ela riu. — Então, não ouse aparecer aqui na segunda, pra não manchar mais o piso da escola. Se fizer isso, eu prometo, de verdade dessa vez, que te deixo em paz.
Ela saiu para a entrada do dormitório. Um dos garotos deu uns tapas nas costas de Sora e logo a seguiu, junto do outro, a risadas.
“Isso…não tá certo.” — o garoto se rastejou para o amontoado de papéis rasgados. — “Isso não é normal, né? Não é!” — e um por um, foi recolhendo os papéis, enquanto as lágrimas eram seguradas pelas pálpebras que lutavam para não derrubá-las. — “Não chora. Tá tudo bem. Você não é mais um bebê chorão! Para com isso!!”
As pálpebras não aguentaram. As lágrimas escorreram pelo rosto, com sua boca se contorcendo. Pelos próximos cinco minutos, o único barulho foi o som do seu choro.
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