15 / a minha verdade
— Então, desista.
O vento bateu contra ambos novamente. Ali, a elfa de pé julgou como culpado, o garoto ajoelhado, por sua própria fraqueza.
O que ela pedia não era difícil. Até onde Sora sabia, “eu me rendo” não era uma frase complicada.
Seria melhor se assim dissesse.
Toda a escola já sabia o quão fraco ele era, não seria uma surpresa a mais.
Apenas precisava dizer “eu me rendo”.
Se assim fizesse, os dedos apontados não mais perfurariam seu peito.
Os olhares que abusavam da sua alma, não mais o alcançariam, não mais condenariam sua existência naquele lugar.
Com apenas três palavras, toda a dor iria sumir.
— Eu… — ele abriu a boca, de braços largados para o chão.
Só mais duas.
Sua cabeça pesava. Ele a abaixou.
Seu olhar dançou, da figura perfeita da garota até os seus próprios dedos calejados.
Tudo estava doendo. Realmente doía.
Por que ele tinha levado aquela surra?
Bateriam tanto em alguém, só por não quererem que estivesse ali?
Se fosse para doer tanto, então era melhor mesmo que dissesse.
Ora, não é como se fosse ser o seu fim. Sair da escola não significa o mesmo que sair do país. Ele ainda poderia arranjar outro lugar por aí.
Aquela pracinha mesmo no começo da cidade.
Sim, seria bacana. A terra não era dura, seria uma boa cama.
“Uma cama? É mesmo, o meu quarto…a cama é bem…macia”
Uma cama macia.
“Eu tinha esquecido…da última vez que foi que…”
Um cobertor quentinho.
“Nesses dias…dormi tão bem.”
Dormir sem medo, pois por mais que chova, não há perigo.
A sensação de acordar com a luz do sol e comer um bom pão.
Tudo isso era tão quentinho.
“Foi eles…que me deram isso, né?”
Mas não mais quentinho do que aquelas pessoas, que disseram para ele:
você é mais forte do que qualquer um.
E ainda, não mais quentinho, do que aquele abraço.
Sob a noite fria, em meio às lágrimas, aquele abraço, o fez sentir vida.
Sob a noite fria, aquele abraço o protegeu de tudo.
— Yunni! — Sora pisou forte. Um de seus joelhos já não tocava o chão.
A garota ergueu o nariz ao escutar seu nome, olhando para a patética imagem do menino surrado sob seus pés ousando se levantar.
É, ele sabia. Sora não poderia dizer aquelas palavras de covardia.
A partir daquele abraço, quando as mãos daqueles dois o protegeram, os olhares, os dedos apontados, o escárnio da menina; tudo que as outras pessoas lançaram sobre ele se tornou mentira.
Para sempre, aquele calor, seria uma verdade cravada no seu peito que jamais poderia dizer que nunca existiu.
Enfim, o segundo joelho saiu do chão.
— Foi mal, mas se quiser que eu saia daqui, vai ter que bater um pouquinho mais forte!
Erguendo a cabeça, o garoto mais uma vez ousou encará-la nos olhos. E por um segundo ele percebeu a sobrancelha dela tremendo. Os olhos de Yunni, da mesma cor que seu cabelo, deixavam vazar uma irritação vibrante que se ela pudesse, certamente usaria dela para fazer surgir mãos em volta do pescoço dele.
— Você… é mesmo insistente. — a ruiva deixou de lado a arrogância e seu rosto se fechou na mesma expressão que se espera ao ver que um inseto no qual pisara ainda continua vivo.
Naquele momento, os olhares dos dois ficaram fixos um no outro e cada um ficou preso em seus próprios pensamentos, como se soubessem que nenhum deles atacaria por enquanto.
Pela primeira vez, Yunni encarou os olhos do menino diretamente.
“Eu bati nos ligamentos do peito e dos ombros dele. Por dias e dias eu fui esmagando o seu espírito e mesmo assim ele se revira como uma barata! Esse moleque…pra que ele saia daqui, não tenho outra opção a não ser mandá-lo direto pro hospital. É o meu serviço, a minha missão como a herdeira da maior corporação desse país. Isso é o mínimo que posso fazer como uma cidadã de bem!”
Mas por que iria tão longe por conta dele?, essas foram palavras ditas por Laila, enquanto as duas ainda estavam no banheiro antes da luta ser anunciada. Como um mantra, Yunni repetiu para si mesma aquilo que ela respondeu para a outra.
“Nosso país vive protegido por barreiras naturais e as forças policiais que essa própria escola forma. Se permitirmos que pessoas tão fracas sejam a nossa proteção, como poderemos garantir a nossa sobrevivência? Ervas daninhas como essa devem ser cortadas antes que façam mal para toda a plantação.”
Ela repetiu isso, de novo. E de novo.
Então por que ainda não parecia ser o bastante?
Mas por que iria tão longe por conta dele?
Por mais que continuasse respondendo essa pergunta da mesma forma, ainda não parecia estar certo…
“Não importa! É por isso, Sora, que eu preciso te arrancar daqui!”, a elfa pensou, levando seus dois braços para frente com as palmas estendidas e abertas, a mesma posição que ela assumiu em todos os ataques anteriores. Sora igualmente levantou os braços e fechou os punhos.
“Caramba, tá tudo doendo! E tá de brincadeira, parece que ela vai soltar tipo um golpe especial! Não, foco! Só tem uma coisa que você precisa fazer. Ela não pode levantar a parede quando ataca, então…!!”
Sora sentiu o joelho esquerdo tremendo. Ele sabia que, qualquer que fosse seu movimento, aquela seria a última arrancada antes do seu corpo ceder. Mas ele se manteve firme, olhando brevemente para as mãos da garota enfaixadas até o pulso.
Os dois se entreolharam, sabendo que aquele era o último momento, antes que algum deles estivesse no chão. E tão subitamente como começou, esse momento chegou ao fim.
Yunni foi a primeira a se mover. Seus braços cruzaram o ar como torpedos focados em um único alvo; neles, canalizado todo o desprezo em uma arrancada violenta.
Seus pés se moveram em perfeita coordenação, mesmo em tal circunstância, jamais abandonando a graciosidade presente nos seus movimentos. Aquela garota era realmente a mais exímia lutadora da série, uma combinação perfeita de graça e impiedade.
Os olhos de Sora se arregalaram, fixos no movimento. Era agora. Não poderia errar, nem um segundo antes, nem um segundo depois. Seus olhos se mantiveram fixos nos braços da garota e seu corpo parado como se esperasse pelo golpe que vinha.
“A tia me disse! Eu não tenho nada, nenhuma arma, nenhum poder, então eu vou enfrentar ela! Eu vou derrotar a Yunni usando tudo ao meu alcance, incluindo ela mesma!”
A palma da garota se aproximou velozmente, mas assim como todos, ela não tinha como saber no que de fato aqueles olhos estavam pensando.
“Agora!!”
Quando a palma iria tocar no meio da sua caixa torácica, o garoto rangeu os dentes e puxou ar. Em um instante todas as fibras do seu corpo se elevaram. Com seu corpo atingindo o limite da adrenalina, ele recebeu o golpe em cheio.
Um “tum” foi ouvido pelo seu próprio corpo, que chorou de volta.
É isso, não tinha mais tempo, precisava absorver o impacto e engolir de boca fechada a dor excruciante, porque era no momento seguinte que morava a brecha perfeita.
O impacto do golpe atingindo o corpo força o membro agressor a recuar mesmo que por meros centímetros. Isso, se unindo ao fato de que Yunni sabia que não era capaz de se proteger com a barreira enquanto atacava, era uma certeza de que ela iria recuar o braço, mostrando pra ele a oportunidade.
Jogando-se para frente na mesma velocidade do golpe que veio, a mão de Sora agarrou o pulso da garota que se afastava, puxando para si as faixas que o enrolavam.
“Você não vai escapar!!”
— Quê?! — Yunni foi puxada para frente.
De cima da arquibancada, Álli quase gritou em pensamento. “Ele puxou as faixas dela?!”
A faixa agarrada e desenrolada pela mão de Sora puxou também o próprio corpo dela, tirando-a do seu ponto de equilíbrio e levando seu rosto para o caminho daquilo que a esperava: a mão esquerda de Sora.
— Hraaaaaah!!
Com um grito saindo por seus dentes cerrados, jorrando as últimas gotas de força presentes naquele corpo, o garoto empurrou sua mão na direção do seu alvo e então, punho encontrou face, jogando-a para trás junto com todo o corpo.
“Ninguém aceitaria alguém como você.
Desapareça.
Formiga.
Não manche o chão dessa escola.
Você não pertence aqui”
Esse era o soco, um único soco, nascido para quebrar todas essas palavras.
[ • • • ]
— Preocupada? — perguntou o homem alto vestido de vermelho, que terminava de assinar alguns papéis sobre uma mesa de escritório, para a sua mulher que olhava pela janela na direção do prédio da escola.
A mulher descruzou os braços e desfez a expressão pensativa, levando uma mão até a boca para tapar um bocejo.
— Eu? Nem um pouco. Foram apenas poucas horas, mas eu sei que ele vai fazer um bom uso das lições que tivemos — disse Aisaka, despreocupadamente abrindo a porta do escritório.
O vampiro sentado soltou um sorriso, de olhos fechados, enquanto sua caneta passava pela última folha de papel assinada.
[ • • • ]
Yunni foi atirada para trás, caindo com as costas no chão a dois metros de distância.
— O quê…?! O que foi isso? O quê?! — a elfa se sentou no chão e levou a mão até o rosto. Sua bochecha estava dura e inchada. Uma dor intensa percorreu seu corpo inteiro, enquanto sua respiração acelerou ao ponto de balançar seus ombros.
“Meu rosto! Tá doendo, muito! Mas que…porra é essa?!”
Ela tentou se levantar, mas um tremor que percorreu seu corpo não deixava que suas pernas se erguessem. A dor dominava sua cabeça como se um martelo a tivesse acertado diretamente no rosto. Subitamente uma sensação estranha veio do seu nariz, com algo viscoso escorrendo e tocando seus lábios. Tinha gosto de ferro. Yunni passou a lateral da mão sem a faixa no nariz, afastando-a do rosto para ver a mancha vermelha se expandindo aos poucos.
— Ah…a-ah…! — seus olhos se preencheram de lágrimas que começaram a escorrer no segundo seguinte em que ela viu o próprio sangue, pela primeira vez. “Esse moleque…esse maldito moleque!! Tá doendo, tá doendo demais!”, ela pensou, dando forças novamente às suas pernas para que se levantassem. Um misto de raiva, dor e nojo era expelido pelas lágrimas e o sangue escorrendo do nariz. “Como ele pode?! Como ele…esse moleque desgraçado…!!”
— Sora!! — a elfa com o nariz sangrando e bochecha inchada gritou em meio a um choro patético, com sua voz atirando ódio na direção do garoto.
Ele respirava fundo, uma respiração muito mais calma do que antes. Seus punhos estavam fechados, com um deles segurando a faixa que antes ficava em volta da mão da garota. Enfrentando-a, ele levantou a cabeça e os olhos azuis a encontraram de novo, pela primeira vez vendo-a se contorcendo com a mais genuína raiva.
— Heh! Eu falei! Eu falei que ia te dar um belo dum soco!!
A promessa que ele fez para si mesmo, as palavras e o abraço que lhe deram abrigo; ele finalmente foi capaz de fazer jus a tudo isso.
— Seu moleque, eu vou…!! — Yunni seguiu gritando dando um passo em frente, mas subitamente seus olhos se arregalaram frente a visão do corpo do seu oponente lentamente tombando para trás.
— Han? — a expressão foi feita pelos dois, ao mesmo tempo.
“Eita. Acho que…dessa vez eu passei da conta, né…? Minha cabeça tá…”, caído no chão, Sora abriu os braços. Suas mãos, que não eram mais capazes de segurar nada, deixaram a faixa escorrer por entre os dedos.
Seu corpo lutou até agora com um único objetivo: cumprir com a promessa de entregar aquele golpe. Cada um de seus músculos trabalharam além do limite para fazer isso e agora que conseguiram, finalmente se soltaram, rendendo-se a dor e ao cansaço. Como uma máquina quando é puxada da tomada, sua consciência desligou.
— Ele…desmaiou?!
— E a vitória é — disse o monitor do combate, saltando para a arena e ficando entre os dois combatentes — da senhorita Yunni Heartz! — ele apitou e o telão sobre a quadra se iluminou em vermelho com o nome de Heartz sendo exibido.
“Eu venci? Eu realmente venci…? Não, é claro que eu venci!”, ela pensou com seus olhos perdidos no chão, até se voltaram para o seu oponente desmaiado sendo colocado sobre uma maca por agentes médicos e levado para fora da arena.
Ela venceu. E ainda assim, seu peito não conseguia parar de pulsar em raiva.
— Sora! — gritou Álli de cima da arquibancada. Junto dele, Yunni viu que todos os alunos estavam de pé.
— Ele bateu na Yunni, caramba! — disse um menino espalhado pela plateia.
— Mas que socão! — um e outros garotos comentavam e logo as conversas paralelas cresceram em meio a arquibancada antes quieta.
— Eu certamente…não imaginava isso. — disse um professor ao lado do senhor alto de barba grisalha, Falcon, sentado retamente na cadeira atrás do diretor.
— Diretor Oda, aqueles movimentos… — o professor com cabelo de coruja levou uma das mãos até a barba, pensativo.
O diretor, sem desviar o olhar do campo de combate, afirmou com a cabeça.
— Sim. Ele a testou desde o começo. Recebeu vários golpes para estudar a habilidade de Yunni e descobrir como trabalhar contra a barreira dela. Ele descobriu que ela a cada golpe trazia o braço para trás, uma vez que a cada ataque ela precisava se colocar em zona de vulnerabilidade. Portanto, para acertá-la, Sora precisava trazê-la para perto no mesmo momento em que o recuo fosse feito, antes que ela pudesse levantar a barreira novamente.
— E a única coisa na sua visão foram as faixas protetoras ao redor das mãos, huh… — Falcon deixou escapar um discreto sorriso por debaixo da barba. — Muitos alunos apresentam uma capacidade de observação semelhante, mas tomadas de decisão tão rápidas assim só são feitas…por alguém com experiência real de combate. Agora entendo o porquê o senhor e senhora Nóblete o recomendaram.
— Mais importante do que isso, professor… — o diretor abaixou o tom de voz. Foi como um ruído do vento, baixo demais para qualquer um sem uma audição treinada ser capaz de ouvir.
— Sim, agora vejo a seriedade da situação.
O olhar dos dois focaram na vitoriosa da luta.
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