Olhe, eu daria tudo para ter minha antiga vida de volta. Quer dizer, não era uma das melhores, mas pelo menos era comum.

    Eu não corria risco de morte a cada segundo, não tinha monstros me perseguindo nem profecias idiotas ditando o rumo da minha vida. Tudo que eu queria era uma vidinha medíocre, simples, pacata. Pronto. Era isso.

    Enfim, se você quer um conselho, aqui vai: não queira ser um Caçador que nem eu.
    É assustador na maioria das vezes — se não todas.

    Você não consegue explicar certos acontecimentos? Às vezes vê o rosto das pessoas se transformar em monstros? Coisas estranhas parecem acontecer só com você? Pois bem, tenho uma ótima notícia: você tá ferrado. E, se for esperto, vai caçar essas criaturas antes que elas venham caçar você.

    Não diga que não avisei.

    Meu nome é Sam Skyline, e eu passei praticamente toda a minha vida — meus doze longos anos — dentro de um orfanato. Nunca conheci meus pais. Não sei se estão vivos, mortos ou se simplesmente me abandonaram. Para ser sincero, nem fazia questão. Era mais fácil fingir que não me importava.

    Tudo estava mais ou menos normal até o dia em que completei doze anos. Foi quando as coisas começaram a sair do eixo.

    Era noite. Eu tinha acabado de acordar com sede e resolvi sair do quarto — o mesmo que dividia com outros dez garotos. O corredor estava silencioso, apenas a luz fraca das lâmpadas amareladas piscando, como se quisessem apagar a qualquer instante.

    Foi então que a vi.

    A enfermeira.

    Uma mulher de pescoço comprido, olheiras profundas e expressão cansada. Estava parada perto de um dos espelhos do corredor. E foi justamente o reflexo que me fez gelar por dentro.

    No espelho, ela não parecia humana. O rosto dela se distorcia em algo monstruoso: alongado como o de um jacaré, olhos amarelos e pele coberta de escamas escuras.

    Meu corpo travou. Eu não consegui dar um passo, nem respirar direito. Aquela coisa… não era a minha enfermeira.

    Tentei sair de fininho, rezando para que ela não me percebesse. Mas é claro que o universo adora rir da minha cara.

    — Sam? — a voz dela cortou o silêncio.

    Ela parecia surpresa. Seus olhos voltaram ao normal, e a face monstruosa desapareceu como se nunca tivesse existido.

    — O que está fazendo acordado a essa hora, menino?

    Engoli em seco. Meu coração batia como se quisesse explodir.

    — T-tava com sede, só isso. — Forcei um sorriso. Péssima ideia. Acho que o meu sorriso foi mais assustador do que o rosto dela no espelho.

    A enfermeira sorriu de volta e lambeu os lábios.

    — Vá dormir, criança… senão a Cuca vai te pegar.

    Não esperei ela terminar. Disparei pelo corredor como um coelho fugindo de um lobo. Entrei no quarto, pulei na cama e puxei a coberta até a cabeça.

    A imagem dela não saía da minha mente.

    Naquele dia, tudo mudou.

    O mês de agosto

    E foi nesse mês que minha vida realmente começou a desandar.

    O céu estava nublado, o ar pesado, como se o mundo tivesse decidido combinar com o meu humor. Eu estava na cantina, sentado à mesa de sempre, devorando um pão com manteiga e tomando meu achocolatado favorito.

    E então ele apareceu.

    Um garoto mais ou menos da minha idade, cabelos encaracolados pretos, com aquele rostinho angelical que parecia saído de uma pintura. Querubim? Surubim? Nunca soube a diferença. Só sei que eu já não gostava dele.

    Ele se aproximou com um sorriso largo demais, quase diabólico.

    — Olha aqui, Skyline! — disse, inflando o peito. — Eu vou ser adotado! Finalmente vou ter uma família! Diferente de você… que ninguém suporta. Seu pedaço de lixo fed…

    Não deu tempo de terminar. Joguei o resto do meu achocolatado direto na cara dele.

    O líquido escorreu pelo rosto angelical. E, naquele instante, ele não parecia nem um pouco um anjinho.

    O querubim gritou de raiva e se jogou contra mim. Caímos no chão, rolando.

    — Me solta! — gritei, tentando empurrá-lo. Mas algumas gotas de achocolatado pingaram da cara dele direto na minha boca. Que nojo! Cuspi na hora.

    As crianças ao redor não perderam tempo. Um círculo se formou em segundos, gritando em coro:

    — Briga! Briga! Briga!

    Ele apertava meu pescoço com força. O ar sumia. Eu me debatia.

    Gah!

    Sem pensar, enfiei meu dedo no olho dele. Ele gritou de dor e me largou.

    Ofegante, cambaleei para trás, tentando recuperar o fôlego. Mas senti algo. Uma ameaça.

    Pelas costas.

    Me virei por instinto. Uma cadeira voava na minha direção. Desviei no último segundo.

    Mas como? Eu estava olhando para ele o tempo todo. Não fazia sentido.

    O próximo soco veio em câmera lenta. Desviei com facilidade. Era como se meu corpo soubesse o que fazer antes da minha mente.

    Outro garoto correu na minha direção. Amigo dele, provavelmente.

    Sem pensar, fiz um mortal para trás. Foi puro instinto. O garoto passou direto, errando o golpe.

    As crianças ficaram em silêncio. Olhares arregalados. Eu mesmo não entendia o que estava acontecendo.

    O querubim, o grandalhão, veio de novo. Um soco direto no meu rosto.

    Dessa vez, meu braço se ergueu sozinho. Reflexo.

    Bang!

    Meu punho acertou em cheio o queixo dele.

    O garoto voou para trás, derrubando cadeiras, bandejas e espalhando comida pelo chão.

    Silêncio absoluto.

    O outro garoto correu, sem nem tentar continuar a briga.

    Fiquei parado, punho suspenso, sem saber se gritava, se corria ou se chorava pela comida perdida.

    Todo o refeitório me encarava.

    E ninguém — absolutamente ninguém — disse uma palavra.

    Até que uma voz ecoou pela cantina.

    — Sr. Skyline.

    Arrepiei dos pés à cabeça.

    O diretor Nakamura.

    Careca, velho, com o olho esquerdo tremendo. Eu conhecia aquele tique. Significava uma coisa: eu estava ferrado.

    — Venha para a minha sala. Agora.

    — Só eu? Mas quem começou foi ele! — apontei para o garoto ainda caído.

    O diretor lançou um olhar rápido para ele, depois voltou toda a atenção para mim. Nem sequer perguntou mais nada.

    — Isso é verdade, pessoal? — questionou.

    Silêncio.

    — Vamos, falem! — insisti.

    Uma voz do fundo se ergueu:

    — Só vimos você jogando o achocolatado na cara dele!

    Minha boca secou. O diretor ergueu a sobrancelha, cada vez mais impaciente.

    — Não vou repetir, Skyline. Venha.

    Resmunguei e fui atrás dele.

    Mas, enquanto saía, ouvi os sussurros. Mesmo com a distância, mesmo com o barulho ao redor, eu ouvi cada palavra.

    — Que menino estranho…

    — Por isso os pais dele largaram ele. Já sabiam no que ia virar.

    — Ouvi dizer que encontraram ele no lixo.

    Apertei os punhos com tanta força que minhas unhas quase cravaram na pele.

    Um dia… um dia eu vou ter uma família.
    Um dia alguém vai me querer de verdade.
    Eu vou ser importante para alguém.

    Mas antes disso…

    Algo dentro de mim tinha despertado.

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