Não sei o que era pior: a prisão — que eu chamava de orfanato — ou essa maldita masmorra.
    Sério, se o inferno tivesse cheiro, seria o mesmo dali.

    O ar era úmido, pesado, e tinha limo verde subindo pelas paredes como se fossem veias pulsando. A única fonte de luz vinha de uma tocha do outro lado das grades, tremeluzindo de vez em quando e projetando sombras que pareciam se mover sozinhas.


    Não fazia ideia de quanto tempo fiquei desacordado. Horas? Dias? Aquele lugar engolia o tempo.


    Pra completar o show de horrores, uma goteira insistia em pingar no chão, marcando o ritmo de um relógio imaginário que parecia zombar de mim.
    Ploc.
    Ploc.
    Ploc.


    — Ótimo… — murmurei. — Não tinha como piorar.
    Mas é claro que eu pensei isso cedo demais. Sempre que eu dizia uma dessas, algo dava errado.
    Abracei meus joelhos, apoiando o queixo nas pernas e cruzando os braços ao redor das canelas.
    Silêncio. A não ser pela maldita gota.


    Por alguns minutos fiquei ali, imóvel, tentando não pensar em nada. Só que pensar em nada é impossível — principalmente quando se está preso.


    — Algum guardinha aí? — gritei, batendo na grade enferrujada. — Tô com fome!


    E não era mentira. Um pão francês com manteiga na chapa e um copo de achocolatado cairiam bem naquele momento.


    Sorri sozinho com a ideia, mas logo balancei a cabeça. Que idiota. Como se aqui tivesse padaria.
    Foi quando senti.


    Uma dor latejante começou a crescer na minha cabeça. No início era só um incômodo, mas logo parecia que alguém estava me esmagando o crânio com um martelo.


    — Argh… o que tá… — antes que eu terminasse, tudo ficou escuro.


    Num piscar de olhos, o chão frio da masmorra desapareceu.
    Agora eu estava em outro lugar. Um lugar que eu reconhecia.


    O mar. As pedras. Aquele sonho. O das bruxas.
    Mas havia algo diferente dessa vez.
    O céu era vermelho, como se estivesse pegando fogo.

    O vento soprava quente, o tipo de calor que sufoca. As ondas batiam nas pedras, espirrando espuma escura avermelhada.


    Meu corpo começou a formigar. Eu tentava andar, mas algo me puxava em direção ao mar, como se uma força invisível me arrastasse.


    As pedras à frente tremiam.
    Pisquei e elas mudaram de forma — de simples rochas, viraram silhuetas femininas, envoltas em panos negros. Rostos deformados, olhos fundos, narizes longos, e bocas retorcidas.


    E então, as risadas começaram.
    Hahaha…
    Uma, duas… dezenas delas. Um coro de risadas agudas, ecoando por todos os lados.
    Meu coração disparou. Senti minhas pernas travarem e, por instinto, fechei os olhos.


    Silêncio. Agora só o som das ondas. Mas o ar estava pesado.


    Um cheiro de ovo podre invadiu meu nariz e, por um momento, jurei sentir algo me tocando o rosto. Um dedo frio, úmido, arrastando-se pela minha bochecha.


    Epa!, pensei. Nem a pau vou abrir meus olhos


    — Sam Skyline… — uma voz rouca sibilou no meu ouvido, e cada sílaba parecia rasgar o ar. — Entregue-me… a pedra…


    Tentei responder, mas nada saiu. A garganta travou. Queria dizer que era um engano, que eu não fazia esse tipo de coisa. Eu era apenas uma criança órfã fofinha.


    Então meus olhos se abriram sozinhos. Foi tão rápido deu nem tempo de mijar nas calças.
    A visão estava embaçada, mas uma cor chamou minha atenção: verde.
    Flutuando no ar, uma esfera brilhava — uma pedra, do tamanho de uma maçã, pulsando como um coração.
    O que… é isso…?

    tentei perguntar, mas a voz não saía. Pelo menos não era droga.
    A risada voltou, mais alta, mais próxima.


    Sam Skyline… morrer… morrer…


    Uma cobra saltou do nada, direto na minha cara. Gritei — ou pensei que gritei — e tudo sumiu.
    Acordei ofegante, o corpo suado.
    A tocha na parede ainda queimava, mas agora havia algo diferente: uma luz verde emanava do meu bolso.


    Meu coração quase saiu pela boca.
    Peguei o relógio de bolso que Merlin me dera — o mesmo que pertencia ao meu pai


    Quando abri a tampa, quase deixei cair.
    Lá dentro, presa entre as engrenagens, estava uma pedrinha verde. Idêntica à do sonho.
    Só que menor.
    E pulsava, de verdade.


    — Uau… — sussurrei, sem saber se ficava impressionado ou assustado.

    Mas como alegria de pobre dura pouco, passos ecoaram pelo corredor.
    Por instinto, enfiei o relógio de volta no bolso e me levantei.
    A luz da tocha tremulou, revelando uma sombra familiar.
    — Sam — disse uma voz fria. — Deixe-me a sós com ele.
    O guarda baixou a cabeça e foi embora sem dizer nada.

    Maximiliano aproximou-se da cela. Usava uma capa vermelha, com o capuz cobrindo parte do rosto. Agora, de perto, pude ver como ele era pálido. Os olhos fundos, a pele enrugada, e um leve sorriso que me dava calafrios.


    — Você se parece muito com seu pai, sabia? — disse ele, encarando-me. — Mas seus olhos… ah, esses são os da sua mãe.


    — Isso se chama genética, sabia? — rebati, tentando esconder o nervosismo.


    Ele sorriu de lado.
    Girou a chave e abriu a grade devagar, o som do ferro ecoando pelo corredor.


    — Não está curioso para saber quem eles eram? — perguntou, a voz calma demais.


    Fiquei em silêncio.
    Claro que eu queria saber. Queria mais do que tudo. Mas algo nele me fazia querer manter distância. Tem gente que o santo nem tenta bater, já sai correndo.


    — O que você quer? — perguntei, sem olhar nos olhos dele.


    — Um objeto que me pertence — respondeu. — Uma pedra verde. Seu pai me fez o favor de escondê-la para mim e agora eu quero ela de volta.


    Meu estômago revirou.
    Fiz o possível para não olhar pro bolso. Não podia ser coincidência. Como diabos ele saberia que eu estava com a pedra?


    — Não sei do que tá falando — falei, tentando soar convincente. 
    Irei negar até a morte.


    Maximiliano riu, baixo, quase num sussurro.
    — Pobre Sam Skyline — disse — sem mãe, sem pai… sem família. 


    Ele estendeu a mão, a pele tão branca que parecia papel.


    — Mas você pode evitar isso, garoto. Me entregue o que é meu.


    Senti o sangue ferver.
    Por um segundo, quis pular nele. Mas alguma coisa dentro de mim — talvez o medo, talvez o instinto — me impediu. Ele queria que eu reagisse, não daria esse gostinho para ele.


    — Já disse… — falei, revirando os olhos — não sei, e tenho raiva de quem sabe.


    O sorriso dele desapareceu.
    Ele me encarou por alguns segundos longos, e então, sem dizer nada, virou as costas e saiu.


    O som das botas dele sumiu pelo corredor.
    Fiquei parado ali, respirando fundo, tentando entender o que tinha acabado de acontecer.
    Quando olhei de novo, percebi algo estranho: a grade estava entreaberta.
    Destrancada.
    Uma armadilha?


    Ou um erro de principiante?
    Olhei pro corredor escuro.
    Silêncio total. Nem o guarda, nem o tal do Maximiliano.


    Senti um frio na barriga.
    E então, no meio daquele silêncio, uma voz sussurrou, fraca e arrastada:

    Matar… matar…

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