Capítulo 2 — Olhos que enxergam
O diretor suspirou e coçou a careca brilhante. Sobre a mesa, papéis de contas bancárias, fotos de pessoas e outros documentos estavam espalhados, como se ele não soubesse por onde começar. A sala inteira tinha cheiro de mofo misturado a café frio — bem o tipo de lugar em que a esperança vinha para morrer.
Ele me lançou um olhar cansado e, depois, forçou um sorriso.
— Por que você bateu naquele pobre garotinho?
Fiz uma careta.
— De pobrezinho ele não tem nada. Ele que começou.
— Ah, entendo… — murmurou, mexendo nos papéis com desinteresse. — Mas, se isso acontecer de novo, infelizmente teremos que mandá-lo para o reformatório.
Arregalei os olhos.
— Não! Por favor…
Reformatório era o pior destino para garotos da minha idade. Todos diziam que quem ia pra lá… não voltava o mesmo. Uns voltavam mudos, outros meio loucos, e alguns simplesmente nunca voltavam. Só de pensar, um arrepio correu pela minha espinha.
— Isso não vai acontecer de novo, velho.
— O que foi que disse?
— Senhor! Eu quis dizer senhor.
Ele ajeitou a coluna, cruzou as mãos sobre a mesa e me encarou. Seus dedos grossos bateram levemente um contra o outro, como se marcassem um ritmo invisível.
— Comporte-se. Hoje teremos uma visita importante. Um dia você será escolhido.
Revirei os olhos.
— Tanto faz! Não vai ser eu mesmo.
O diretor arqueou as sobrancelhas, com um sorriso paternal que me dava nos nervos.
— Garoto, na vida não podemos perder a fé. Agora vá para a sala comunal e espere com os outros.
Suspirei e saí, arrastando os pés pelo corredor úmido. As paredes eram cinzentas, descascadas, cheias de marcas de mãos de crianças que passaram por ali antes de mim. O orfanato inteiro tinha aquele cheiro de sopa requentada misturado a madeira velha.
A sala comunal estava cheia. Todos os garotos reunidos, ansiosos, vestidos com suas melhores roupas (o que não queria dizer muita coisa: camisas puídas, calças remendadas e sapatos que rangiam a cada passo).
E lá estava ele — o querubim — com um belo olho roxo.
Quando me aproximei, os outros se afastaram, como se eu fosse um animal selvagem carregando uma doença contagiosa. Ótimo. Menos aperto pra mim.
Tanto faz. Eu não precisava desses perdedores.
O diretor desceu as escadas e parou no centro do grupo, ajeitando o paletó barato que já devia ter a minha idade.
A porta da frente se abriu.
E então… ela apareceu.
Uma mulher de vestido preto elegante, segurando um guarda-chuva fino. Os cabelos negros e lisos desciam pelos ombros como seda. Sua pele era tão pálida que parecia não ter uma gota de sangue. Era como se tivesse saído direto da televisão, daquelas novelas ricas que a cozinheira do orfanato adorava assistir.
Todos prenderam a respiração. Até as goteiras do teto pareceram parar de pingar.
— Seja bem-vinda! — gritaram todos em coro.
Ela sorriu, fechando o guarda-chuva com um estalo suave.
— Olá, crianças. Espero que estejam bem. Meu nome é Marta. É um prazer conhecê-los.
Todos se ajeitaram, forçando sorrisos, tentando chamar atenção. Um garoto no canto quase explodiu de tanto acenar, como se fosse um poste tentando ser visto no meio da neblina. Eu, por outro lado, sorri sozinho: não seria escolhido mesmo. Meu plano já estava armado na porta do pátio, só faltava esperar a hora certa. Hehe.
— Moça, a senhora está com sede? — o querubim de olho roxo perguntou, tentando parecer fofo. Mas estava mais para leitãozinho implorando para não virar bacon.
— O que aconteceu com você, rapazinho? — Marta se aproximou, tocando no rosto dele.
Ele fez uma expressão de choro e, para minha surpresa, apontou direto para mim.
— Ele me bateu.
Todos os olhares recaíram sobre mim. Cocei a cabeça e forcei um sorriso sem graça.
Ela se aproximou. Por um instante achei que fosse levar um tapa. Mas, em vez disso, seus dedos tocaram meus cabelos.
— Seus fios são loiros naturais? — perguntou. — E esses olhos verdes? São lindos.
Meu rosto esquentou. Não era todo dia que alguém elogiava meus olhos. Do outro lado, o querubim me fuzilava de raiva.
— Ele me bateu, moça! Todo mundo aqui é testemunha. Ele é esquisito! — insistiu.
E, como cordeirinhos, todos acenaram em concordância. Alguns nem tinham visto nada, mas adoravam uma oportunidade de me ferrar.
Marta me lançou um olhar que eu já conhecia: de nojo.
— E fedorento também. Tire esse garoto daqui, Sr. Nakamura. Não apoio violência.
Ela se afastou de mim de cabeça erguida, como se tivesse medo de respirar o mesmo ar que eu.
— Pois bem, vamos para o pátio. Tenho certeza de que você vai se encantar com o jardim — disse o Sr. Nakamura, conduzindo Marta.
O querubim me encarou com aquele sorriso presunçoso, segurou a mão da mulher e, só para provocar, mostrou a língua verde dele.
Meu rosto queimou. Eu queria socar o outro olho dele, só para combinar. Mas não importava. Meu plano estava prestes a dar certo. Como dizia aquele ditado? Ah, sim: quem ri por último ri melhor.
Assim que eles passaram pela porta, ouvi o estalo.
Um balde cheio de tinta vermelha despencou do alto, respingando na cabeça de Marta e em todos os que estavam próximos.
Um grito estridente ecoou. Tão agudo que as janelas se quebraram, espalhando cacos pelo chão.
O querubim agora estava com os dois olhos vermelhos. Literalmente.
Não aguentei. Gargalhei alto.
— Caíram feito patinhos! Haha! — minha barriga doía de tanto rir.
O Sr. Nakamura correu para tentar acalmar a mulher, limpando a tinta do rosto dela. Mas foi aí que percebi.
Os olhos de Marta… ficaram vermelhos. As pupilas se contraíram como as de um animal. Dentes pontiagudos surgiram, brilhando à luz mortiça que entrava pelas janelas quebradas.
Estava acontecendo de novo.
Ela se afastou de mim, cobrindo o rosto com as mãos.
— Argh! — gritou.
Correu até a porta, evitando ao máximo esbarrar em mim.
Todos ficaram paralisados.
Só eu vi quando ela atravessou a janela, se transformando em um morcego gigante e desapareceu no céu cinzento. O bater das asas dela fez as velhas cortinas balançarem, levantando poeira.
Sua voz ecoou no ar, cortando como uma lâmina:
— In Shadow!
Meus olhos se arregalaram. Olhei em volta, esperando que alguém tivesse visto o mesmo que eu. Mas todos estavam apenas sujos de tinta, me encarando com espanto.
E eu só conseguia pensar em uma coisa:
Eu tô lascado!
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