Fui trancado no quartinho dos fundos.

    De novo.

    A diferença é que, dessa vez, colocaram um ferrolho por fora, um balde por dentro e uma tigela com pão seco e água.

    A mensagem era clara:

    “Parabéns, Sam, você acaba de virar um animal de zoológico!”

    Eu já tinha sido punido antes. Já fiquei sem recreio, já lavei banheiro com escova de dente, já passei um mês inteiro sem sobremesa — e olha que sobreviver sem brigadeiro foi quase mais difícil que enfrentar monstros. Mas isso… isso era diferente.

    Aqui dentro não tinha janela. Só uma fresta minúscula na porta, que deixava passar um fiapo de luz amarela.

    E o silêncio.

    Quer dizer… silêncio até onde se pode chamar de silêncio os rangidos da madeira velha, os passos abafados no corredor, os ratos discutindo embaixo do piso e aquele som… aquele som que só vinha à noite, como se algo raspasse do lado de fora. Algo que não andava com dois pés.

    Mas tudo bem.

    Afinal, era só mais um dia normal sendo Sam Skyline: o esquisito que vê monstros.

    O tempo parado

    Não sei quanto tempo fiquei ali.

    Podiam ter sido horas, dias ou anos. Meu estômago já nem rosnava, só chorava baixo, como um cachorrinho abandonado. O pão seco tinha gosto de gesso e a água parecia ter saído direto de um cano enferrujado.

    E o balde… bom, o balde estava virando um inimigo próprio. Um monstro com cheiro de derrota.

    Eu já estava quase aceitando que morreria ali dentro — esquecido, fedendo a pão mofado e urina — quando ouvi a maçaneta girar.

    Clac.

    A porta se abriu com um rangido, e a luz do corredor invadiu o quartinho como se fosse o próprio sol.

    Na moldura da porta, surgiu a silhueta de um homem enorme.

    E quando digo enorme, não é exagero. O cara parecia uma mistura de Gandalf com um motoqueiro dos anos 80.

    Tinha barba longa, tão comprida que quase dava para usar como cachecol. Os cabelos brancos presos num rabo de cavalo desciam até o meio das costas. Vestia uma jaqueta preta  surrada, puído pelo tempo, e nas mãos segurava um relógio de bolso prateado, pendurado por uma corrente que refletia a pouca luz.

    Por um instante, achei que fosse uma miragem.

    — Me desculpe — disse ele, com um olhar pesado de culpa.

    — Pelo quê? — perguntei, desconfiado. Não era todo dia que alguém me pedia desculpas.

    Ele balançou a cabeça, furioso consigo mesmo.

    — Isso aqui é desumano. Como ousam fazer isso com você? 

    Ele falava como se eu fosse um príncipe perdido da Inglaterra. 

    — Se eu soubesse que estava assim, teria vindo antes. Bem antes.

    Se eu fosse um desenho animado, com certeza teria uma engrenagem girando dentro da minha cabeça, tentando entender quem diabos era aquele maluco. Ele percebeu minha cara de confusão e sorriu.

    — Claro, não me apresentei. — entrou, fechou a porta atrás de si e se agachou, ficando na mesma altura que eu.

    — Você não entende o que vê, estou certo? — perguntou.

    — Como assim?

    — Você vê pessoas se transformando em monstros. É isso que quero dizer.

    Meu corpo gelou. Imediatamente, lembrei da mulher que virara morcego na frente de todo mundo. Lembrei da minha enfermeira se transformando em um tipo de jacaré com batom.

    — Sei que você acha que está enlouquecendo. Que ninguém te entende. Que está sozinho. Mas não está.

    — Tá… — dei um passo para trás. — E o que você quer comigo? 

    Ele respirou fundo. Seus olhos pareciam ter milhares de anos.

    — A verdade?

    Assenti, meio sem forças. 

    Ele abriu o relógio de bolso e mostrou. No interior, em vez de ponteiros normais, havia uma espiral dourada, girando devagar.

    — Porque conheço sua linhagem. E, mais do que isso… conheci seu pai.

    Senti minhas pernas tremerem.

    — Você conheceu… meu pai?

    Ele fez uma expressão desconfortável, como se falar daquele assunto fosse abrir uma ferida antiga. Mas eu queria. Eu precisava saber.
    — Quem era ele?

    — Ele era um In Shadow. — A voz dele soou grave, carregada de lembranças. — Um homem corajoso, que lutou ao meu lado. Um filho para mim.

    O olhar do estranho se perdeu no canto, como se estivesse revivendo memórias que só pertenciam a ele. Depois suspirou, pesado.

    — E você, Sam, é especial para mim também. — ele entregou o relógio em minhas mãos. — tome era de seu pai.

    Eu não sabia o que dizer. 

    — Tá. Mas por que agora? — perguntei, limpando discretamente as lágrimas que insistiam em cair. — Por que você só apareceu agora?

    Ele me encarou fixamente. 

    — Porque precisamos de você. Antes que ele o leve.

    Arrepios percorreram minha espinha.

    — “Ele” quem?

    — Não importa por agora. —  ele franziu a sobrancelha branca dele — O que importa é que você é um de nós. 

    Minha boca secou. Eu queria rir, dizer que ele estava maluco, que eu só era um órfão azarado. Mas nada saiu.

    — Você precisa sair daqui. Agora — disse ele com firmeza.

    Levantei num pulo.

    — Quem é você afinal?!

    Ele apenas sorriu, como se estivesse esperando essa pergunta desde o início.

    — Eu sou aquele que pode te treinar. Que pode te ajudar a entender o que você é. Mas, para isso, você precisa confiar em mim, Sam.

    — E se eu não confiar?

    O rosto pareceu sombrio.

    — Vai acabar como os outros. Sozinho. Esquecido. Ou pior: devorado por aquilo que não entende.

    Engoli em seco. Olhei para ele. Para o relógio. Para o balde. Para o pão seco.

    A resposta estava mais óbvia do que eu gostaria. Eu não tinha nada a perder mesmo.

    — Beleza. Vamos sair desse chiqueiro.

    Ele se levantou, abriu a porta e estendeu a mão para mim.

    — Bem-vindo ao seu verdadeiro mundo, Sam Skyline.

    E eu saí.

    Sem olhar para trás.

    O corredor parecia outro. Aquele orfanato sempre me cheirava a mofo, mas naquele instante, parecia menor, apertado, quase sufocante. Como se, a cada passo que eu dava ao lado do homem da barba longa, eu estivesse deixando de ser só “Sam, o esquisito”.

    E começando a ser alguém que eu ainda não entendia.

    Alguém que os monstros já conheciam pelo nome. Mal sabia eu o que me aguardava.

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