Tudo desacelerou. Juro, parecia que o mundo inteiro tinha decidido apertar o botão de “slow motion” só para me sacanear.

    A faca girava no ar como se fosse uma hélice preguiçosa, refletindo a luz em riscos prateados. Consegui contar cada risquinho no metal, como se eu tivesse virado especialista em cutelaria no meio da luta.

    E sabe o que é pior? Eu achei maneiro. Sim, no meio da confusão toda, meu cérebro achou bonito. Vai entender.

    Ploft.

    O barulho da lâmina batendo na parede soou alto demais. Seco, frio, como se fosse o som da minha própria sentença.

    Antes mesmo de eu respirar, o soco dele veio como um raio, direto na minha cara. Eu desviei para a direita, instintivamente, mas a felicidade durou menos de um segundo: o garoto de tapa-olho puxou a faca da parede, como se fosse um gesto automático, natural, quase ensaiado.

    “Ok, Sam, pensa. Só pensa um pouco. Explica, conversa, resolve.”


    É, eu pensei nisso. Acredite. Mas, no fundo, eu sabia que conversar não ia adiantar. Mesmo assim, tentei. Porque o velho Nakamura sempre repetia: “Um sorriso abre portas que a força nunca abre.”

    Ele falava isso enquanto socava meu estômago no treino, então eu aprendi a sorrir mesmo levando porrada.

    — Sou Sam Skyline — forcei o maior sorriso do mundo, tentando parecer amigável. Estendi a mão, como se estivéssemos num encontro de boas-vindas — sou um…

    Vupt.

    Se eu não tivesse puxado o braço de volta, provavelmente estaria desfilando por aí com uma prótese de ferro brilhante. E, sinceramente, eu não sei se braço biônico entra na moda desse mundo.

    Não deu tempo de processar. O chute dele me acertou em cheio e meu corpo voou até a estante. Os livros despencaram em cascata, batendo na minha cabeça, nos ombros, em qualquer lugar que já doía.

    Minha testa latejava. Alguma coisa quente escorria pelo rosto. Toquei e senti viscoso. Era qualquer coisa, menos suor.

    Eu rolei para o lado, o coração disparado. A lâmina desceu rente ao meu ombro, perfurando o chão onde eu estava segundos atrás.

    — Deixa eu explicar, idiota! — gritei, cuspindo sangue junto com a frase.

    Sim, foi burrice. Eu sei. Ele levantou a cabeça devagar e me encarou. Os olhos vermelhos faiscavam, uma mistura de ódio e… fome? Não sei. Só sei que aquilo não era humano.

    Levantei rápido, mas não rápido o bastante. Outro chute me pegou de surpresa, bem na costela. O impacto me fez voar como um boneco de pano arremessado. No ar, eu só pensei: “Quebrou. Quebrou bonito.”

    Caí de mau jeito, arquejando. A dor latejava, irradiando como se meu peito fosse explodir. Cada respiração parecia um prego entrando no pulmão.

    E, claro, como dizia o ditado: “nada é tão ruim que não possa piorar.”

    Quando recuperei o foco, vi. Uma fileira de magos descia a colina. Os mantos balançavam ao vento, e as mãos brilhavam com runas incandescentes. Não era um comitê de boas-vindas.

    — In Shadow! — um deles gritou, e a voz ecoou, grave, como se mil ecos repetissem ao mesmo tempo.

    Aquele som gelou minha espinha.

    Tentei ficar de pé, mas uma bola de fogo rasgou o ar e passou tão perto do meu ombro que eu senti o cheiro da minha própria pele queimando.

    — Maravilha! — reclamei, cambaleando — quase virei churrasquinho!

    Corri. Não, melhor: tropecei em desespero para frente, segurando o ombro ardendo. A cada passo, parecia que alguém enfiava uma faca dentro da carne.

    Cipós batiam no meu rosto, arranhando, me cegando por segundos. O chão, antes macio e fofo, agora só me fazia escorregar mais. Rolei sem controle, feito bola, até despencar perto de um rio.

    A água corria calma, como se não ligasse para o caos à sua volta.

    Deitei de lado, arfando. Abri um olho e vi algo que não deveria estar ali.

    — Uma espada? — murmurei, a garganta seca, áspera, dolorida. Eu nem sabia o porquê da dor, só sabia que falar doía.

    A espada estava fincada numa pedra, coberta de musgos e líquens. O tempo tinha feito dela parte da paisagem, como se tivesse sido esquecida ali por séculos.

    — Ali está ele! — uma voz gritou atrás de mim.

    Eles estavam cada vez mais perto.

    E então veio a voz metálica. Não ecoou do rio, nem da floresta, nem de cima. Veio de dentro de mim.

    Pegue a espada, Sam.

    Meu corpo travou. Era como se uma mão invisível tivesse falado comigo. Meus músculos gritavam para eu ficar no chão, mas minha mente sabia: se eu não pegasse aquela espada, não sobraria nada de mim.

    — Droga! — resmunguei, cuspindo sangue na água.

    Cambaleei. Cada passo era uma tortura. Cruzei o rio; a água gelada entrou pelas minhas botas rasgadas e me fez tremer. Mas lá estava ela. A lâmina brilhava, como se esperasse por mim. O cabo dourado refletia a luz fraca, cravejado de pedras azuis que pulsavam.

    As vozes atrás de mim aumentavam, furiosas.

    Meus dedos tocaram o cabo.

    E… nada.

    — Tá de brincadeira? — puxei.

    Nada.

    Mais forte.

    A pedra vibrou, tremeu, como se não quisesse soltar.

    Os gritos estavam cada vez mais próximos. Eu sentia o calor da magia nas minhas costas, como brasas prontas para me devorar.

    — Vamos… vamos…!

    Com um último grito, reuni toda a força que tinha — e a que não tinha.

    CRAACK!

    A espada se soltou.

    O céu, antes pesado e cinzento, se abriu.

    BOOOOOOM!

    Um relâmpago desceu, rasgando o ar, caindo bem acima de mim. A luz branca me engoliu, me cegou, me queimou por dentro e por fora.

    A multidão parou. O tempo congelou. O garoto do tapa-olho estava lá também, e do braço dele saíam faíscas, um raio vivo. Os olhos dele não piscavam. Eram os mesmos olhos que eu já tinha visto tantas vezes.

    Olhos de desprezo.

    Olhos que diziam que eu não deveria existir.

    — Esse olhar… de novo… — gritei, minha voz rouca, quase quebrada. Apertei o cabo da espada até os dedos doerem — por que todo mundo sempre me olha desse jeito?!

    O peito doía, não só pelo chute. Doía como ferro em brasa no coração. Mordi os lábios, sentindo o gosto do sangue. E, como sempre, memórias vieram.

    As crianças do orfanato rindo de mim.
    Os cuidadores me ignorando.
    Os monstros que eu via nas sombras, sempre me fitando com aqueles olhos.

    Era o mesmo olhar.

    — Eu não sou um incômodo, tá legal?! — berrei, a garganta queimando — eu não sou um verme! Eu sou uma pessoa, como vocês!

    As lágrimas ardiam, mas eu não ia chorar na frente deles. Não.

    — Eu sou… Sam Skyline, seus babacas!

    O eco da minha voz se perdeu no vale.

    A espada tremia na minha mão. Ou talvez fosse só eu, sacudindo de medo, de raiva, de tudo junto. Minha visão escureceu aos poucos, como se um pano preto tivesse descido sobre meus olhos.

    A última coisa que vi foi o céu azul se abrindo entre as nuvens.

    E depois, nada.

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