Acordei deitado numa cama estranha. Lençóis amarelados, cheirando a mofo. O travesseiro? Duro feito concreto. O teto era pintado de azul com um arco-íris gigantesco bem no meio.

    Não tinha como errar.
    Eu estava no orfanato.

    Sorri sozinho. Então tudo aquilo tinha sido só um sonho. Não existia caçador nenhum, nem In Shadow, nem mago de moto, nem tapete voador. Muito menos um garoto de tapa-olho tentando me matar.

    Suspirei aliviado e rolei pro lado. E foi aí que o mundo me lembrou que eu nunca tenho sorte.

    O lençol mudou. Ficou verde, macio demais, quase grudento. O travesseiro virou uma almofada fofa que afundava tanto que dava vontade de me afogar nela. O teto? Agora era de madeira entalhada, cheio de cervos e estrelas que pareciam me encarar de volta.

    Virei o rosto devagar e dei de cara com a pior visão possível.

    — Garh — gemi antes de cair da cama.

    O garoto do tapa-olho.
    Sentado numa cadeira, braços cruzados, o tapa-olho torto cobrindo metade do rosto e o cabelo preto todo desgrenhado. A expressão dele? Calma. Calma demais pra alguém que tinha tentado me esfaquear há poucas horas.

    — Não sei como você é um In Shadow — disse, com desdém. — Que decepção.

    Meu coração parou. Então não era sonho. Tudo tinha acontecido de verdade.

    — Você… tentou me matar — murmurei.

    Ele nem piscou.
    — E errar foi o maior erro da minha vida.

    Ótimo. Agora eu estava super tranquilo.

    Levantei do chão, tentando manter distância dele. Só que o quarto não era grande, e a cada passo pra trás parecia que eu ainda estava perto demais. Ele continuava ali, braços cruzados, ignorando minha existência. E, de algum jeito, isso me irritava ainda mais.

    O silêncio virou um peso sufocante. Eu já estava arrancando pedaços de pele da boca de tanto morder. Até que não aguentei mais.

    — Posso fazer uma pergunta? — soltei.

    Ele levantou a sobrancelha única.
    — Fala.

    — Tá. Quem é você? Por que tentou me matar? Que espada era aquela? Por que tem um gato de duas cabeças nesse quarto? E… cadê minha comida?

    Tudo de uma vez. Eu sabia que ia soar idiota, mas era melhor do que explodir por dentro.

    Ele não respondeu. Só me encarou em silêncio. Então se levantou.

    A mão dele começou a brilhar, ficando branca, faiscando como se estivesse cheia de energia. Mas não era raio, eu sabia disso. O som era o pior: milhares de passarinhos piando ao mesmo tempo, todos dentro da minha cabeça.

    — Quer morrer, inseto? — rosnou.

    Sério? Outra vez essa história?

    Antes que eu pudesse responder, uma voz firme cortou o ar:

    — Chega, Ben!

    Merlin apareceu na porta, carregando uma xícara que soltava fumaça.
    — Deixe o garoto em paz.

    Ben — então esse era o nome dele — bufou e voltou pra cadeira, contrariado.

    Merlin se aproximou e me entregou a xícara.
    — Chá de raiz das montanhas do Norte. Vai te ajudar a recuperar energia… e talvez o juízo.

    Olhei desconfiado, mas dei um gole. Esperava veneno. Esperava gosto de remédio ruim. Mas não: era doce, como churros com doce de leite. Quase lambi a xícara de tão bom.

    Merlin se sentou à minha frente. A expressão dele era pesada, nada combinava com o sabor da bebida.

    — O que foi? — arrisquei. — Alguém morreu?

    Ele ignorou a piada e olhou pro garoto do tapa-olho.
    — Como conseguiu entrar aqui?

    Ben manteve a cara apática, branca demais, fria demais.
    — Assim que vi aquilo entrar, escondi minha mana e fiquei invisível. Entrei junto com o senhor.

    Aquilo? Espero que não fosse eu.

    Merlin esboçou um sorriso de canto.
    — Sam, esse é Ben Volts. Meu aprendiz. Ben, esse é Sam Skyline. Um In Shadow.

    Ben me avaliou de cima a baixo com nojo.
    — Ele não parece nada com um. É fraco, franzino. Pra mim, senhor, é só uma criança.

    Revirei os olhos.
    — Como se você não fosse também.

    Ele se levantou na hora, pronto pra me bater. Eu já estava preparado pra devolver. Mas Merlin suspirou alto e ficou entre nós.
    — Calma. Ben, você viu. Não tem como negar a existência dele.

    Ben mordeu o lábio, mas acabou sentando de novo.

    Merlin voltou pra mim.
    — Sam, precisamos conversar sobre o que você fez lá fora.

    — O que eu fiz? — perguntei, sincero.

    — Além de fraco, é burro — Ben provocou.

    Quase avancei nele. Juro.

    Merlin ignorou o comentário.
    — A espada, Sam. A famosa Excalibur.

    O nome ficou suspenso no ar. Minha boca secou. Eu lembrei do peso dela na minha mão, do brilho cortando o vento, da sensação de poder que me arrepiou até os ossos.

    — Eu só… toquei nela — murmurei.

    — Não — corrigiu Merlin. — Ela respondeu a você. Isso não acontece por acaso.

    Ben se inclinou pra frente, com raiva.
    — Então explica por que a casa inteira começou a tremer quando ele pegou a espada.

    E, como se o universo tivesse decidido dar razão a ele, o chão vibrou naquele exato segundo. As paredes rangiam. Os cervos e estrelas entalhados no teto se moveram como se ganhassem vida.

    A xícara caiu da mesa, quebrando no chão e liberando fumaça preta.

    Merlin se levantou de supetão.
    — Droga… já nos encontraram.

    Um arrepio gelado correu pela minha espinha.
    — Quem? — perguntei, a voz falhando.

    Ben puxou uma adaga fina do nada e me apontou.
    — Você trouxe isso pra cá.

    A porta explodiu antes que eu pudesse reagir. Madeira voou pelos cantos. Um vento gelado tomou o quarto, apagando as velas e trazendo murmúrios. Milhares de vozes dentro da minha cabeça, todas cochichando meu nome.

    E então eu vi. Olhos vermelhos. Dezenas deles, brilhando no escuro do corredor. Todos fixos em mim.

    Merlin ergueu o cajado.
    — Sam, agora não importa se você quer ou não… vai ter que lutar.

    Ben se levantou ao lado dele, a adaga faiscando.
    — Se ele atrapalhar, eu mesmo acabo com isso.

    Eu engoli em seco. Minhas mãos tremiam. Tudo em mim gritava pra correr, mas minhas pernas não obedeciam.

    Eu devia ter ficado no orfanato.

    Foi quando a primeira mão esquelética atravessou a fumaça do corredor. Ossuda, coberta de sombras, apontou direto para o meu peito.

    E o coração disparou como nunca antes.

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