— Ahrfs! — acordei suando frio. Precisei de um ou dois minutos até perceber que tudo não passava de um sonho. Toquei meu rosto pra ter certeza.

    — Você não tá sonhando, rapazinho — disse Merlin num tom gentil.

    O garoto do tapa-olho, digo, Ben, também estava lá, de braços cruzados.

    Minha boca estava seca como se eu não bebesse água há dias.

    — Ben — disse Merlin. — Pegue algo para Sam tomar.

    Ben franziu a testa. Parecia eu quando o Sr. Nakamura mandava eu lavar o banheiro. Ele descruzou os braços e saiu murmurando algo como:

    — In Shadow? Só se for mesmo.

    Olhei para Merlin. Estava com um chapéu pontudo roxo, a barba longa e branca como antes. Mas agora não parecia um motoqueiro dos anos 80, e sim um ancião de verdade.

    — Sei que deve estar com dúvidas nesse momento. Você pode ser um In Shadow, mas continua sendo só uma pobre criança.

    Não gostei da forma como ele disse aquilo. Parecia que, por ser quem eu era, eu não seria capaz de nada.

    — Por quê? — minha vontade era de chorar, mas não faria isso. De jeito nenhum. Aí sim eu seria só uma criança órfã. — Você disse que conheceu meu pai… me diz onde ele está?

    Merlin desviou o olhar. Um passarinho azul bicava a janela.

    — Seu pai, garoto… — suspirou. — Está morto.

    Apertei os punhos.

    — Sinto muito.

    — E minha mãe?

    Ele balançou a cabeça.

    — Irmãos? Algum familiar?

    — Você não tem ninguém nesse mundo, sinto muito.

    Aquilo me pegou de jeito. Passei a vida toda imaginando se tinha algum parente escondido por aí, alguém que aparecesse de repente no orfanato pra me levar e cuidar de mim. Mas não… não tinha ninguém.

    Merlin afagou minha cabeça.

    — Não se preocupe. Você não vai voltar naquele lugar.

    Olhei para ele e o sorriso me aqueceu por dentro.

    A porta rangeu e Ben apareceu com um copo azul e uma bandeja de alumínio com sanduíches. Murmurou algo que não entendi e me entregou. Para minha surpresa, o copo estava vazio.

    — O que você gostaria de beber? — perguntou Merlin.

    Olhei confuso.

    — Como assim?

    — Apenas diga.

    Parei para pensar. Um refrigerante geladinho cairia bem.

    — Coca!

    O copo imediatamente se encheu de espuma. Meu queixo caiu. Tomei tudo de uma vez, e o copo se encheu de novo sozinho. Aquilo era o sonho de qualquer criança da minha idade. Peguei um sanduíche e mandei pra dentro.

    — Descanse um pouco. Mais tarde eu te apresento o reino — disse Merlin, levantando-se com a ajuda do cajado. — Vamos, Ben.

    — O senhor acha mesmo que ele…

    E eu não escutei mais nada. Só sabia que o sanduíche era de frango.

    Fiquei deitado na cama olhando para o teto. Será que essa seria minha nova casa? O quarto era simples: um guarda-roupa de madeira, uma janelinha e uma mesa longa com duas cadeiras — também de madeira, claro. Uma brisa leve entrou, refrescando meu rosto. Era bem ventilado. Não seria ruim morar ali. Mas aí pensei nos moradores que tinham tentado me matar. Que se dane, pensei, e puxei a coberta, pronto para a tal caminhada.

    Na sala, o gato de duas cabeças estava sentado no sofá roxo, lambendo as patas. Sua pelagem alaranjada me lembrava de um gato famoso que gostava de lasanha… só não lembro o nome. No teto, cristais flutuavam. Objetos se moviam sozinhos, principalmente livros.

    Mas algo me chamou a atenção: no canto, um espelho enorme coberto por uma cortina roxa. O mesmo que eu tinha visto da primeira vez. Por algum motivo, ele me chamava. Me aproximei lentamente. Quando estava prestes a tocar, uma voz surgiu do nada:

    — Se eu fosse você, não tocaria aí.

    Quem disse isso? O idiota chamado Ben.

    — Ah, você de novo — revirei os olhos.

    Ele se aproximou girando uma faca na mão e parou a centímetros do meu rosto.

    — Você não é grande coisa.

    — Nossa! Sua boca fede a cocô de gato.

    Não foi a coisa mais esperta a se dizer. Ele se afastou, mas sua mão direita começou a soltar faíscas que pareciam raios. Eu sabia que não eram fogos de artifício.

    Ele foi rápido. Já estava a centímetros de encostar no meu rosto quando algo o impediu. Ele parecia tão surpreso quanto eu.

    — O que você fez?

    — Eu não fiz nada, cara!

    — Já chega, Ben — disse uma voz familiar, calma.

    Merlin estalou os dedos, e Ben foi lançado longe, caindo debaixo de uma pilha de livros.

    — Sam — chamou Merlin. Eu me esforcei pra não rir do Ben naquele estado. — Venha comigo.

    — S-sim, senhor.

    Fechei os olhos com a luz do sol. Devia estar uns trinta e três graus.

    — Não saia de perto de mim, entendeu?

    Assenti.

    — Está vendo aquelas torres cor de gelo?

    Era impossível não notar. Pareciam as Torres Gêmeas, só que inteiras.

    — O que são?

    — Ali ficam os magos especializados em sentir mana. A principal função deles é alertar sobre ameaças.

    — Entendi — balancei a cabeça.

    De repente, luzes verdes, como vaga-lumes, flutuaram sobre mim. Meus cabelos arrepiaram como se eu tivesse levado um choque.

    — Não se preocupe, são inofensivos. Eles rodeiam pessoas com pouca ou nenhuma mana.

    Só então percebi que nenhuma luz se aproximava de Merlin.

    — E o que é mana?

    Ele arqueou as sobrancelhas, surpreso.

    — Nunca jogou videogame, garoto? Mana é como uma energia que permite praticar magia. Tipo uma estamina.

    — Ah… como se fosse meu vigor?

    Ele concordou.

    Enquanto andávamos, moradores fechavam a cara ao nos ver. Uns se escondiam, outros faziam livros flutuarem.

    — Por que eles fazem isso com os livros?

    — O quê? Os grimórios? Os magos precisam deles pra conjurar.

    Não era possível… parecia mesmo que eu estava dentro de um jogo.

    — E o senhor também usa? — perguntei. Não tinha visto Merlin carregar nada. Nem mochila, nem bolsos. Se tirasse um livro do nada, eu não estranharia.

    — Não viaja, garoto — ele riu, ignorando a pergunta.

    Foi então que reparei nas casas suspensas feitas de folhas douradas. Estava tão entretido que acabei esbarrando em alguém.

    — Me desculpa, eu…

    Era uma mini maga. Seus cabelos pretinhos brilhavam. Ela me olhou e seu rosto virou puro pavor.

    — Mãããe! — gritou, a voz parecendo uma sirene.

    Olhei para Merlin.

    — Eu não queria…

    Uma mulher apareceu e levou a menina no colo. Lançou-me um olhar de medo e, depois, encarou Merlin:

    — Não entendo por que o senhor está nos colocando em perigo. Deixar esse monstro andar livre no Reino!

    Monstro. Baixei a cabeça. Não era justo. Eu não tinha feito nada.

    De repente, várias pessoas se reuniram, gritando. Merlin fechou os olhos e tocou meu ombro.

    Quando pisquei, já estávamos em um bosque com um rio fluindo. Reconheci o lugar. Era onde eu tinha encontrado a…

    — Excalibur, Sam — disse Merlin, apontando para a espada. Ela ainda estava fincada na rocha, como se eu nunca a tivesse removido. — Quero que a retire de novo.

    Engoli em seco. Para mim, não seria difícil, já que já tinha feito antes. Mas algo estava diferente.

    Me aproximei contra a correnteza. O metal reluzia, mas uma sensação incômoda me paralisava.

    — Por que está relutante?

    Balancei a cabeça.

    — Da outra vez, uma voz me pediu para tirar a espada e…

    — Dessa vez não pediu, certo?

    Assenti. Ele franziu a testa e mesmo assim mandou que eu tentasse.

    Encostei no cabo dourado. O frio congelou meus dedos. Agora ou nunca.

    Fiz força. Nada.

    Tentei de novo. Nada.

    Não era possível! Forcei tanto que parecia que eu ia cagar ali mesmo. Minhas mãos escorregaram no suor, e acabei caindo de costas no chão.

    Meu rosto devia estar vermelho de vergonha.

    — Sorte de principiante? — uma voz debochada ecoou. Não precisava ser gênio pra saber quem era.

    — Talvez, Ben — disse Merlin, olhando para mim com curiosidade. — Sam, você irá para uma missão.

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