Índice de Capítulo

    — Uau… — murmurou Lyra, mais para si mesma do que para quem estivesse na escuta. — Nunca desci tão fundo…

    — Deixe o rádio livre, Lyra! — a voz de Caine veio cortante, com aquele tom que ela já conhecia bem. O líder da escavação odiava quando alguém quebrava o silêncio da frequência por motivos banais.

    — Desculpe… — respondeu, mordendo o lábio inferior, enquanto soltava um suspiro cansado.

    Os dedos de Lyra doíam, os músculos das mãos estavam rígidos, e os antebraços latejavam como se estivessem pegando fogo. Os ombros, então… Pareciam feitos de pedra, tamanha a tensão acumulada nas últimas horas. Treze horas seguidas de operação sem pausa. Era o normal ali embaixo. Todos estavam no limite, mas ninguém se dava o luxo de parar antes da ordem. Ainda mais ela.

    Apesar de jovem, não tinha ainda seus dezenove anos completos, desde os doze, já se sentava no assento da broca, aprendendo com os veteranos, forçando o corpo e os reflexos a obedecerem. Pilotar uma daquelas máquinas gigantescas era uma espécie de loucura calculada. Sem o uso de aether, seria humanamente impossível. Era o aether que amplificava os sentidos, que dava precisão aos movimentos, que evitava os erros fatais.

    Ela olhou para o próprio reflexo no vidro da cabine. Viu uma garota simples, magra, de braços e ombros fortes. Os olhos escuros estavam fundos; os cabelos, também escuros, na altura dos ombros, colavam-se ao rosto, encharcados de suor. Bufou. E voltou a cavar.

    As brocas eram colossos de aço, titânio e cerâmica reforçada. Monstros com mais de trezentos metros de comprimento, rasgando as entranhas da lua. Cada dedo de cada mão controlava um joystick específico. Oito joysticks, manipulados de forma independente, enquanto os polegares acionavam uma série de botões espalhados pelo console. E ainda havia os pedais, pelo menos cinco, cada um com uma função crítica. Coordenação total. Sincronia absoluta.

    E Lyra… bem, Lyra era uma das melhores.

    Sua broca avançava, devorando a rocha com uma fome constante, quase animal. Lyra mantinha os olhos grudados nos sensores, atenta a cada variação mínima. Muito calor? Provavelmente um ninho de lanças de magma, que eram criaturas famintas por aether, nativas dali, capazes de transformar tudo ao redor em um forno da morte. Muito frio? Isso significava o Abismo. O vazio negro, insondável, uma falha tectônica que se estendia por mais de dois quilômetros de profundidade. Um passo em falso… e ninguém voltava.

    O rádio chiou. Ao mesmo tempo, os sensores vibraram com força. Um pico intenso de aether, direto na direção de avanço.

    Lyra arregalou os olhos. Um novo veio.

    Sem hesitar, enviou o sinal para as outras brocas na rede. Era o protocolo.

    — Vamos encerrar, Lyra! — a voz de Caine surgiu no rádio. — Já chega por hoje!

    Ela hesitou. As mãos continuaram nos controles, o corpo inclinado para frente como se quisesse enxergar através da rocha.

    — Me dá mais alguns minutos — pediu, o tom firme, quase desafiador. — Acabei de encontrar um veio novo… quero ao menos fazer uma leitura de proximidade.

    Ela sabia o que isso significava. Um novo veio, dependendo da pureza, podia não só superar em muito as cotas semestrais, como garantir à sua Casa alguns bônus, prestígio e privilégios raros. E ela queria fazer sua parte.

    Do outro lado, o silêncio durou longos segundos.

    — Vinte minutos. Nem mais um segundo — veio a resposta por fim. — E cuidado. Você está cansada e muito perto da falha do abismo.

    — Pode deixar… — respondeu, mais para si mesma do que para ele.

    — Vou mandar o Ciel pra sua posição. Só pra garantir que vinte minutos sejam vinte minutos.

    — Copiado… — disse ela, com um meio sorriso de frustração. Sabia que Caine não voltava atrás quando colocava um limite. Já operava os controles, realinhando a direção da broca, ajustando a inclinação para ir atrás da nova fonte detectada.

    A temperatura ao redor caiu. Os sensores começaram a mostrar tonalidades azuladas nas camadas de pedra à frente. Frio demais. O Abismo estava ali, muito mais perto do que ela gostaria de admitir. Respirou fundo, nivelou a broca com precisão milimétrica, seguindo paralela à falha. Um erro… e ela seria só mais uma estatística de acidente em escavação profunda.

    A sensação de estar enfiada no interior da rocha, cega para o que havia ao redor, era sempre sufocante. Mas agora… agora parecia pior.

    Depois de avançar quase quinhentos metros, parou. O veio estava bem entre ela e o limite do Abismo.

    — Droga… — sussurrou. — Papai vai me matar quando souber…

    Conferiu rapidamente o nível de aether restante. Ainda sobrava um pouco… seria o suficiente. Talvez.

    Respirou fundo duas vezes, tentando controlar o nervosismo. Depois, sem hesitar, girou a chave de injeção. O gás de aether invadiu seu respirador com um sopro gélido e denso. A euforia veio em um pico quase doloroso, como uma onda elétrica passando direto pela espinha, mas durou só alguns milissegundos. Logo em seguida… clareza.

    Uma lucidez cortante tomou conta da mente de Lyra. Tudo pareceu mais nítido. As leituras dos sensores, os alertas no painel, até o som abafado das brocas perfurando a rocha, tudo estava onde deveria estar. Nenhum pensamento disperso, nenhuma dúvida. Sabia exatamente o que precisava fazer.

    Arriscado? Muito. Mas tinha conseguido em pelo menos setenta por cento das vezes no simulador. E agora, sob o efeito do aether, o medo parecia algo distante, irrelevante, quase ridículo.

    Mesmo o arrependimento de ter usado toda sua cota da semana desapareceu como fumaça. aether era viciante. Quando o efeito passasse, viria a abstinência. E ela sabia como aquilo doía. Mas naquele momento, isso não importava.

    Seus dedos esqueceram da dor e do cansaço. Se moveram com uma precisão quase sobrenatural. Os braços das brocas a laser começaram a abrir caminho, cortando a pedra como se fosse manteiga. A cabeça dianteira da máquina inclinou-se num ângulo arriscado, perfurando para baixo, cruzando abaixo do veio em direção ao Abismo.

    Sentiu a rocha ceder. Os braços mecânicos se esticaram, agarrando os pontos de apoio com força. Da janela da cabine, pela primeira vez na vida, ela viu… o vazio.

    A escuridão sem fim do Abismo.

    Mesmo com os pensamentos afiados pelo aether, um arrepio percorreu sua nuca. As luzes da broca mal alcançavam o vazio à frente. Sumiam em um negrume profundo. Mas, havia mais. O ar ali reluzia, repleto de partículas douradas. Aether puro. Como um campo de estrelas em suspensão.

    Lyra inclinou sua máquina para fora do buraco, quase de ponta cabeça. Tinha que projetar pelo menos metade da broca para fora da parede de rocha, para que os braços mecânicos alcançassem o compartimento de coleta. Suas mãos eram um borrão sobre os controles, os dedos voando de alavanca em alavanca, pedal em pedal, sem um único erro.

    A broca parecia uma criatura viva. Uma centopeia de aço com duas cabeças, uma na frente, outra atrás, com pernas, pinças, braços articulados e brocas laser em ambos os extremos. Se o caminho fechasse, podia simplesmente inverter a orientação e seguir pelo lado oposto.

    Agora… estava pendurada no limite. Segura apenas por pinças hidráulicas que, ela sabia, não foram projetadas para aguentar tanto peso em suspensão.

    Lyra abriu um sorriso involuntário ao ver o veio à sua frente. Imenso. Puro. Dourado como ela jamais vira antes. Algumas das brocas laser começaram a trabalhar imediatamente, arrancando fragmentos com habilidade quase cirúrgica. Nos reflexos distantes das paredes, ela enxergava brilhos de outros veios, como nervuras douradas espalhadas nas entranhas da terra.

    Seus dedos voavam. Os movimentos precisos, quase desumanos. Retirava e armazenava pedaços de rocha saturados da substância que movia o Império. Aquilo valia fortunas.

    Um pequeno tremor interrompeu sua concentração. Ela congelou por um segundo, os sentidos em alerta. Instintivamente, travou a máquina nas pinças e se agarrou na estrutura interna da cabine.

    Olhou para cima.

    Uns duzentos metros acima, um pouco à direita, a rocha começou a brilhar num vermelho-vivo, como uma ferida aberta nas entranhas da terra.

    — Lanças de magma…? — murmurou Lyra, franzindo o cenho, confusa. — Mas… o que as provocou?

    As criaturas eram um pesadelo subterrâneo. Vermes gigantes, com quase três metros de comprimento, que viviam em colônias com centenas de indivíduos. Uma reação bioquímica dentro de seus corpos fazia com que atingissem temperaturas capazes de fundir a própria rocha ao redor. O que começava como uma simples mancha avermelhada na pedra, logo se tornava um mar de magma fervente.

    Ela mal teve tempo de processar o pensamento.

    A resposta veio com violência.

    Um estrondo abafado, seguido de um tremor que fez sua broca estremecer. A cabeça de uma máquina despencou da parede, exatamente de onde a rocha havia se tornado magma instável.

    A maquina era amarela.

    Lyra reconheceu na hora.

    A broca de Ciel.

    Seus braços metálicos tentavam se agarrar, mas era inútil. Nada se fixava em rocha derretida. A estrutura escorregava, lenta e inevitavelmente… direto para o Abismo.

    — Merda… — sussurrou Lyra, os olhos fixos na cena.

    O aether correndo em suas veias fez os cálculos por ela, numa sequência de variáveis frias e implacáveis. Distância. Velocidade de queda. Ângulo de inclinação. Força de inércia. Margem de erro. Todas as porcentagens… ruins. Muito ruins.

    Sem pensar, acionou o rádio.

    — Ciel! Vira sua escotilha na minha direção. Agora! Quando eu der o sinal… ejete!

    — Mas… eu vou cair!

    — Não discute! É sua única chance!

    Lyra ajeitou o respirador. Abriu sua escotilha e soltou os cintos de segurança. Travou os controles da máquina, programando o sistema para segurar a posição o máximo que conseguisse.

    Saiu. Agora estava em pé, se equilibrando precariamente sobre um dos braços que se projetavam na direção de Ciel.

    O ar ao redor queimava a pele do rosto. Aether demais naquela concentração, muito acima da sua tolerância. Mas ela não tinha escolha.

    Seu cérebro continuava trabalhando em sobrecarga. Calculando distâncias, trajetórias, aceleração. O tempo corria contra ela.

    Prendeu o mosquetão de seu macacão num dos guinchos laterais da escotilha.

    Acima dela, a máquina de mais de quinhentas toneladas deslizava para o Abismo. A gravidade já puxava com força.

    Quando julgou ser o instante exato, gritou pelo rádio:

    — Agora!

    A escotilha da broca amarela explodiu para fora. O assento de Ciel foi arremessado, seguindo uma trajetória quase suicida… mas calculada.

    Lyra respirou fundo. Soltou o fôlego de uma só vez e correu. Uma corrida de segundos. Uma corrida de fé.

    Saltou.

    O abismo se abriu ao seu redor como uma boca faminta. O mundo perdeu o peso. Ficou sem gravidade, sem direção. A única âncora era o cabo de aço preso ao guincho, que se desenrolava rápido demais para o gosto dela.

    Viu Ciel vindo na direção dela, ambos caindo. A colisão era inevitável.

    Trancou os dentes, travou os braços. Quando colidiram, o impacto a fez perder o ar dos pulmões, a dor explodiu no tórax, nas costelas. Por um instante, a visão ficou turva, a consciência vacilou.

    Mas conseguiu.

    Envolveu o primo com os braços e as pernas, prendendo-o com força. Ouviu o zunido agudo do cabo de aço desenrolando até o limite.

    — Segura em mim! Solta desse assento! Se não fizer isso… nós dois vamos morrer!

    O cabo estalava, cada metro de fio se desenrolando numa velocidade assustadora. Ciel, por um instante, ficou paralisado. Mas no último segundo, entendeu. Soltou as tiras do assento e prendeu o mosquetão de seu próprio macacão no dela.

    E então, o cabo travou.

    O impacto final quase quebrou Lyra ao meio. A coluna protestou com uma dor que subiu pelas costas como um raio. Os dois foram arremessados contra o limite do guincho.

    Se não estivessem presos um ao outro, ela nunca teria conseguido segurá-lo.

    Por um instante, o mundo parou.

    Só o som do ar raspando nas paredes do Abismo, e a respiração entrecortada dos dois.

    Ficaram ali, pendurados no vazio, por longos minutos que pareceram uma eternidade. A tensão no cabo vibrava através do corpo de Lyra, cada músculo latejando, o peito ardendo como se fogo preenchesse os pulmões. O aether começava a perder o efeito, e com ele vinha o peso real do que acabara de fazer.

    Por fim, com os dedos tremendo, ela acionou o guincho. O motor respondeu com um ronco grave, puxando os dois de volta, metro por metro, na direção de sua broca.

    O esforço para manter-se consciente era quase tão grande quanto o que acabara de fazer. A cada sacolejo, a dor nas costelas se espalhava, cortante. Ciel, agarrado a ela como um náufrago, não dizia uma palavra. Também tremia, feito um passarinho assustado.

    Quando finalmente alcançaram a escotilha, Lyra empurrou o primo para dentro primeiro, com um gesto ríspido. Depois, usando as últimas forças, puxou a si mesma para dentro da cabine. Fechou a escotilha com um estalo metálico e despencou no assento, respirando como um peixe fora d’água.

    O rádio crepitou, a voz de Caine soando tensa e irritada.

    — Lyra! Ciel! Que merda foi essa? Vocês dois tão vivos?

    Ela levou alguns segundos para responder. Queria rir ou chorar, talvez os dois ao mesmo tempo. Mas tudo o que conseguiu foi tossir.

    — Estamos… — respondeu com a voz rouca, arrastada. — Inteiros. Mais ou menos.

    Ciel soltou um gemido abafado ao lado dela, encolhido no canto da cabine.

    Deitada no chão, com os olhos fixos no teto, Lyra sentiu a adrenalina finalmente ceder. As mãos ainda tremiam. O gosto adocicado do Aether persistia na garganta.

    A última coisa que passou por sua cabeça, antes de tudo escurecer de vez, foi a promessa silenciosa, tola e inútil, de que nunca mais faria algo assim, mas conhecendo a sim mesma, não sabia se seria verdade.

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