Índice de Capítulo

    Lyra abriu os olhos. A luz fraca da cela não ajudava a organizar os pensamentos. Ainda estava com o vestido da recepção, agora sujo de suor, poeira e sangue. Cada movimento fazia sua cabeça latejar. Pensar com clareza parecia um desafio intransponível.

    O espaço onde estava era simples: uma cama estreita integrada à parede, uma pia embutida e uma porta reforçada, feita de algum material opaco e resistente a impactos. Não havia janelas. Apenas a iluminação difusa, como uma dádiva para seus olhos e sua cabeça que pulsava de dor.

    — A… alguém…? — tentou chamar, mas sua voz saiu fraca, rouca, arranhando a garganta seca como se estivesse cheia de poeira e ferrugem.

    Silêncio.

    Nenhuma resposta. Nenhum som além do zumbido distante dos sistemas de ventilação.

    Forçando os músculos pesados, Lyra se levantou com dificuldade. As pernas tremiam como se o próprio chão estivesse instável. Cambaleou até a porta, tateou os contornos em busca de alguma fresta, alguma falha, um painel solto… qualquer coisa.

    Nada.

    A superfície era sólida, opaca, feita de algum composto anti-impacto.

    Ela empurrou com força, sem sucesso. Depois, socou com o punho fechado, mais para aliviar a raiva do que por esperança de abrir.

    O eco da batida morreu rápido, abafado pela estrutura da cela.

    Bufou, frustrada. Sentia o corpo febril, os músculos doloridos, a cabeça latejando num ritmo cruel.

    Cambaleou de volta até o colchão duro, com tecido áspero, e se deixou cair.

    Ficou ali, encarando o teto, os olhos pesados, a mente tentando desesperadamente organizar os pensamentos.

    Mas a verdade era simples e brutal: o que quer que estivesse acontecendo lá fora… estava completamente fora do seu controle.

    — Pelo Demiurgo… — sussurrou, com a mente girando. — Como pôde…?

    Pensava em Rob. Na escolha estúpida, na ganância cega. Como tinha sido capaz de envolver todos eles naquilo?

    O cansaço venceu. Mesmo em meio ao medo e à confusão, seus olhos fecharam de novo.

    Foi despertada mais tarde por um som agudo e metálico, como um aviso automatizado. A porta da cela se abriu com um chiado hidráulico. Lyra instintivamente tentou se levantar, forçando os músculos doloridos, queria forçar sua passagem, mas congelou ao ver a figura que entrava.

    A máscara. O véu escarlate. O manto pesado de tecido e autoridade.

    A Matriarca.

    A simples presença dela parecia tornar o ar mais denso, como se a atmosfera quisesse sufocá-la.

    — Lyra, não é? — perguntou a voz abafada pela máscara. — Lyra Veyne?

    — S-sim… — respondeu, ainda sentada, os dedos tremendo no colo.

    — Vi sua apresentação nas profundezas — continuou a Matriarca, com um tom quase gentil. — Você é muito habilidosa.

    — Hein…?

    — A broca. O salvamento do rapaz. Seu primo, não?

    — Não é como se só eu pudesse fazer aquilo… — Lyra murmurou, com uma tentativa fraca de minimizar seus feitos.

    — Você se menospreza, Lyra. Mesmo entre muitos adeptos, sua destreza e sua coordenação fina são notáveis. Assisti aos registros da sua cabine de operação. Nem mesmo operadores experientes conseguiriam repetir seus movimentos com aquela precisão.

    Lyra apenas abaixou os olhos, sem saber o que responder.

    — Está com sede? — perguntou a Matriarca, retirando um cantil de metal escuro.

    Lyra hesitou por um instante, mas a garganta seca venceu a desconfiança. Pegou o cantil com as mãos trêmulas e bebeu até a última gota.

    — Obrigada… — sussurrou. — Como estão as coisas lá fora…? — arriscou perguntar. — Meu tio… minha tia…?

    Zyab ficou em silêncio por um momento. Depois, com uma serenidade que parecia ainda mais cruel, respondeu:

    — Seu tio é culpado. Você já deve saber disso. Ele não escapará. Contrabandear Aether não é apenas um crime… é uma heresia contra o Demiurgo. Os calculadores estão trabalhando nas contas, desenterrando cada nome envolvido. Alguns dos seus parentes, na ânsia de salvar as próprias peles… já começaram a entregar os outros. Até mentiras estão sendo ditas… — ela riu, um som abafado e frio.

    Lyra afundou o rosto nas mãos, tentando afastar o torpor, a dor… o horror daquela situação.

    — Mas… — a voz da Matriarca cortou seus pensamentos — você pode salvar sua tia… o pequeno Elias… Ciel, e todos os outros que não se envolveram nos desvios.

    A cabeça de Lyra se ergueu, os olhos arregalados. O quê…?

    Como se pudesse ler seus pensamentos, Zyab continuou:

    — Cerca de dezessete anos atrás… eu era responsável por um grupo de noviças no Matriarcharum. Uma delas se chamava Alina Veyne.

    O nome atingiu Lyra como um soco no estômago.

    Alina Veyne.

    Sua mãe.

    De repente, todas aquelas fotos antigas que Rob guardava, os retratos em sépia digital, os rostos congelados no tempo… tudo ganhou um novo significado. Não eram apenas lembranças distantes, emolduradas por saudade. Não eram só ecos de uma infância incompleta.

    Era como se a figura da mãe, tão ausente, tão idealizada, de repente atravessasse o véu do passado e se manifestasse no presente. Real. Concreta. Parte de algo muito maior.

    Lyra engasgou, a garganta fechada, as palavras sufocadas antes de ganharem voz.

    Seus olhos começaram a arder, mas ela se obrigou a não chorar. Não na frente da Matriarca.

    Zyab, ainda de pé, inclinou levemente a cabeça para o lado, como quem observa uma peça de porcelana antiga rachando sob pressão. Seu tom, quando voltou a falar, tinha uma suavidade cruel. Quase uma apreciação.

    — Sim… — murmurou Zyab, com um tom quase afetuoso. — Eu a conheci muito bem.

    Houve uma pausa. A Matriarca ergueu o olhar como se ponderasse as próximas palavras.

    — O que sabe sobre os Ritos Matriarchae?

    Lyra hesitou. — N-não muito… — confessou, com a voz ainda rouca.

    Zyab assentiu lentamente, como se já esperasse essa resposta.

    — No final da fase de iniciação, toda noviça é inseminada de forma artificial. Uma tradição antiga. Cada Matriarca precisa conhecer as dores e as alegrias de trazer uma vida ao mundo. Não é apenas um ritual… é uma exigência moral, física e espiritual.

    Lyra engoliu em seco, o estômago revirando.

    — Assim que o parto acontece — continuou Zyab, o tom agora mais grave — se for um menino, ele é entregue às Legiões Imperiais, para ser treinado como um Legatus. Se for uma menina, ela permanece no Matriarcharum. Cresce ali, entre véus, preces e aço. Até chegar o momento de iniciar o próprio ciclo de treinamento.

    Houve um instante de silêncio, antes de Zyab prosseguir, com uma nota mais baixa na voz:

    — Mas… algumas Matriarcas… se apegam demais às suas filhas. Algumas tentam… desviá-las do caminho. Traficar o bebê para fora da instituição. Uma transgressão grave… mas que, às vezes, outras Matriarcas fingem não ver. No fim… todas nós somos mães, Lyra. Talvez… as maiores mães de todo o Império.

    O choque foi imediato. A garganta de Lyra se fechou. Sentia que o chão começava a girar.

    — Então… — ela sussurrou. — Minha mãe… me teve… e me enviou de volta pra casa?

    Exatamente. — A máscara de Zyab se inclinou levemente, num gesto que parecia um sorriso oculto.

    — E… meu pai…? — perguntou, num fio de voz.

    A Matriarca riu, abafado pela máscara, mas inconfundível.

    — Ora… — disse, divertida — você deveria saber. As Matriarcas só podem engravidar através de uma seleção genética muito especial. A semente dos Praetorii Primus.

    Lyra arregalou os olhos chocada. Era filha de um dos maiores heróis do Império, atrás apenas do Demiurgo. Eram os fundadores das treze Legiões.

    — Nós fornecemos todos os legados do Império. Todo homem nascido de uma Matriarca carrega o sangue deles. E você, Lyra… — a voz de Zyab ficou mais suave, porém mais cortante que nunca — você é filha de um deles. Se quiser, posso até determinar qual deles, aqui e agora.

    Lyra sentiu o chão desaparecer sob os pés, mesmo sentada. Era incrível demais. Surreal demais.

    — Por isso sua resistência ao aether — continuou Zyab, sem dar espaço para protestos ou negações. — Vi os registros médicos que seu tio tentou esconder. Tolerância acima de 15%. Sabe o que isso significa? Mesmo entre os Legati, poucos alcançam esse nível. E eles foram criados pra isso… moldados desde o ventre. Você conseguiu… naturalmente.

    A jovem fechou os olhos por um instante, tentando organizar os pensamentos. Cada resposta só trazia mais perguntas. Mais abismos.

    — Isso… isso ainda não responde… o que a senhora quer de mim… — sua voz saiu fraca, partida ao meio, como se já soubesse que a resposta viria como um golpe.

    Zyab avançou um passo, abaixando-se até quase ficar à altura da garota. O véu escarlate pendia como uma cortina entre as duas, e mesmo assim, Lyra sentiu o peso do olhar por trás da máscara.

    — O que eu queria… era levar você comigo para o Matriarcharum. Treiná-la desde o início. Mas… — a Matriarca estendeu a mão e pousou-a sobre o ventre de Lyra, num gesto que era ao mesmo tempo gentil e invasivo — … você já passou do tempo. Sangrou demais, teve luas demais.

    O silêncio entre elas ficou espesso como óleo.

    — Então… o que quero agora… — a voz de Zyab baixou, como se fosse uma promessa sussurrada — … é levá-la como um tributo. Você vai servir como uma Domadora.

    Lyra arregalou os olhos.

    — Um… tributo? Uma Domadora?

    — Sim. Venha comigo. Garanto que sua tia, seu primo… e todos os inocentes da sua família… ficarão bem. A Casa Veyne continuará operando a mina. Sob supervisão, é claro. Mas vivos. Apenas os culpados pagarão com o sangue.

    Zyab se ergueu, ajeitando o véu como quem encerra uma cerimônia.

    Antes de sair, lançou um último olhar para a garota caída na cama de metal.

    — Vou deixá-la a sós para pensar. Enviarei comida. Água. — A voz dela suavizou, quase maternal. — Sua resposta… vai decidir o resto da sua vida, e a vida de outros Veyne, Lyra.

    A porta fechou atrás da Matriarca com um som abafado, denso e definitivo.

    E, pela primeira vez, Lyra entendeu.

    A vida não era uma linha reta, nem um ciclo justo. Era uma sequência de armadilhas, disfarçadas de escolhas. Uma sucessão de peças sendo pregadas por mãos que ela jamais veria. E, naquele instante, ela se viu como o que de fato era: um personagem em uma tragédia que já estava escrita antes mesmo de seu nascimento.

    Sua mãe havia feito o mesmo sacrifício. Agora, era sua vez.

    Para salvar a Casa. Para manter vivos aqueles que amava. Precisava se entregar.

    Era isso que significava a palavra “destino”. Um fardo que agora, atravessava gerações. Um fio que apertava seu pescoço desde antes entender o que era liberdade.

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