Índice de Capítulo

    Tendo deixado Lyra aos cuidados de Nia, a Matriarca Zyab entrou em sua cabine e ativou o mecanismo de compensação atmosférica. Aos poucos, o ambiente foi saturado com a mesma mistura rica em aether que preenchia sua armadura. Apenas então ela soltou um suspiro contido, retirando as botas com lentidão ritual. Massageou os dedos dos pés, aliviando a tensão, mas não retirou a máscara. Ainda não. Tinha duas ligações a fazer.

    Sentou-se diante do monitor de comunicações e, com um comando verbal, a tela acendeu.

    — Conectar à sessão 174 do Matriarcharum. Matriarca Superior Seccional.

    A tela brilhou, exibindo brevemente a máscara com três olhos, símbolo do Matriarcharum. Em instantes, outra máscara com filigranas douradas preencheu a imagem, a Matriarca Superior Beatrice.

    — Matriarca Zyab — disse a figura com voz modulada. — Qual é o seu relatório?

    — As coisas transcorreram conforme o previsto. As provas eram abundantes, os hereges foram punidos e a execução foi realizada em conformidade com o protocolo imperial.

    — Mas não me contactou apenas por isso, imagino.

    — De fato, Altíssima. É impossível ocultar algo da senhora. Durante a operação, encontrei uma de nossas crianças perdidas.

    — Interessante… Muito interessante.

    — Consegui que ela se oferecesse como tributo.

    — Muito bem. Vai trazê-la de volta para casa?

    — Não, Altíssima. Ela já passou da idade. Já sangrou por muitas luas além do permitido.

    A figura do outro lado silenciou-se por um instante, ponderando.

    — Entendo… Uma pena.

    — Entretanto, sua tolerância ao aether é surpreendente. Pretendo enviá-la ao Domatorum. Acredito que poderá realizar até quatro ligações.

    — Poderosa. Muito poderosa. Promissora. Tem minha permissão, faça isso.

    — Sim. E os benefícios por tê-la encontrado ainda pertencerão ao Matriarcharum. Mesmo que não a formemos, podemos colher frutos.

    — Mas sinto um porém em sua voz, Zyab.

    — Sim — hesitou ela antes de continuar — Ela é filha de Paul Zachary. Vi os dados assim que ela completou a assinatura genética do contrato de tributo. Cruzei as informações no dispositivo antes de lançá-las no sistema.

    — Paul… Zachary. Justamente ele. A Quarta Legião sempre rende complicações. A seita, a fuga…

    — Por isso estou ligando. Solicito que a senhora oculte as informações genéticas da garota. Pelo menos por agora. É melhor que os calculadores da Inquisição não as registrem. Ainda não inseri os dados no banco oficial.

    — Envie os dados para mim. Realizarei o mascaramento imediatamente.

    — Sim, Altíssima — respondeu Zyab, retirando um pequeno cartão de memória do leitor genético e inserindo-o num slot abaixo do terminal. —Transferência iniciada.

    — Perfeito. Cuidarei do sigilo pessoalmente. Ela sabe?

    — Ainda não demonstrou curiosidade. Pelo menos, não até agora.

    — Ótimo. Se ela perguntar, pode contar sobre seu pai e a Quarta. Diga que a informação é sensível… e que, se se espalhar, a colocará em risco.

    — Compreendido.

    — Dê-me dez minutos. Em seguida, entre em contato com o Domatorum. Avise sobre a joia que estamos enviando.

    — Assim será feito, Altíssima.

    Zyab respirou fundo e estalou o pescoço. Sempre ficava tensa ao lidar com a Matriarca Superiora. Considerava-se uma mulher contida, disciplinada, mas Beatrice, aos seus olhos, era como uma máquina. Inabalável. Implacável. Perfeita em sua frieza.

    Enquanto esperava os dez minutos, retirou o restante da armadura e das vestes sacramentais. O alívio foi imediato. Era bom não se sentir presa por camadas de símbolos e ferro. Fez menção de tirar a máscara, mas a mão hesitou no caminho. Ainda havia outra ligação. Com alguém que a fazia desejar estar novamente coberta de aço: Logan.

    Logan era um homem de moral duvidosa, mas ninguém podia negar sua eficiência. Ele administrava o Domatorum da subseção galáctica com punho firme e sem ilusões. Zyab já havia enviado outros tributos para ele, inclusive recomendado alguns nobres aspirantes.

    Sabia que ele entendia de potencial. E de como dobrá-lo.

    Assim que o tempo se completou, ela voltou ao terminal e iniciou a conexão.

    A tela piscou. Um rosto surgiu: cabelos escuros penteados para trás, barba rala, olhos pequenos, pretos e vivos como carvão queimando devagar.

    — Legado Logan. Que as bênçãos do Demiurgo o acompanhem — disse Zyab com formalidade.

    — Que as acompanhem também, Altíssima — respondeu ele, no automático. — O que deseja de mim desta vez?

    — Estou encaminhando mais um tributo para o Domatorum. Tolerância ao aether: quinze por cento. Vou pleitear os benefícios.

    Logan assobiou, os olhos se estreitando.

    — Uau. Onde encontrou esse monstrinho?

    — Monstrinha, na verdade. O nome dela é Lyra Veyne — disse Zyab, enquanto seus dedos dançavam pelo teclado ao lado do visor. — Estou enviando os dados agora.

    Um som agudo indicou o recebimento.

    — Recebido… — murmurou Logan, enquanto lia os dados projetados à sua frente. — Nobre de baixa linhagem. Pais comuns, tolerância reduzida… Rob e Virna Veyne. O pai serviu um decêndio na Décima Primeira Legião. Hmm… intrigante.

    Zyab soltou discretamente o ar que nem sabia estar prendendo. A ocultação genética tinha sido bem-sucedida. Rob e Virna constavam como os progenitores. Perfeito. Um tributo com quinze por cento de tolerância era algo raro, e os benefícios que viriam com isso seriam… substanciais. Com a documentação correta, poderia reivindicar uma nova posição dentro da hierarquia.

    — Ela estará com você em cerca de uma semana — disse, voltando ao tom profissional. — Preciso que tome cuidado. Uma nobre Sylaris está convencida de que essa garota arruinou seus planos. Pode tentar retaliar… seja por meio de outros tributos, de jovens voluntários, ou por influência. Subornos, também. Ela é do tipo que compra a própria vingança.

    — Entendido. Ficarei de olhos abertos. Mas… isso pode não ser um problema — respondeu Logan, com um sorriso torto que puxava a cicatriz junto ao olho esquerdo. — Talvez apenas mais uma prova. Um obstáculo extra para afiar a lâmina.

    — Ela é valiosa, Logan. Quinze por cento… é quase o limiar dos bruxos renegados. Se sobreviver ao treinamento, será uma arma digna do Império.

    — Não fale desses malditos — rosnou Logan, o sorriso se desfazendo. — Um só daqueles monstros reduziu minha centúria à metade. Eu me aposentei da Legião por causa daquela batalha. Se notar a menor distorção nessa garota… se houver qualquer indício de heresia… eu mesmo a entrego aos inquisidores. Esqueça os bônus.

    — Confio em sua competência. Ela não vai quebrar.

    Zyab desligou a chamada sem aguardar resposta. Retirou a máscara em silêncio e a pousou sobre a mesa. Estava feito. Os dados haviam sido lançados, e agora o destino faria sua parte.

    Deitou-se na cabine, envolta no silêncio absoluto. O brilho tênue dos símbolos da máscara de três olhos do Matriarcharum reverberava na penumbra, refletindo nas paredes do aposento como lembranças de um juramento antigo.

    Deitada em sua cama, alheia aos preparativos feitos ao seu redor, Lyra passava os olhos, sem pressa, sobre o tablet entregue por Nia. Recebera instruções claras: pesquisar sobre o Domatorum e sobre a Quarta Legião.

    O Domatorum era o centro de formação dos domadores. Existiam vários, espalhados pelas diferentes seções galácticas. O que a aguardava era o 12.006. As informações disponíveis, no entanto, pareciam mais propaganda do que qualquer conteúdo real, apenas formulários, palavras de ordem, promessas de honra e glória.

    Já a Quarta Legião… era apresentada como uma das mais antigas e respeitadas. Seu Praetor Primus, Paul Zachary, figurava como herói da unificação humana e da fundação do Império. Um nome sempre citado nos registros históricos, nos sermões e nos hinos imperiais.

    Lyra desligou o tablet e o deixou de lado. Não era ingênua. Sabia que sua origem estava, de alguma forma, ligada à Quarta Legião. Ainda assim, era difícil aceitar. Como podia ser filha de uma lenda viva…?

    O Aether era uma substância que desafiava a própria natureza das coisas. Corrompia, curava, prolongava. Distorcia o tempo e a própria realidade. Era plausível, ainda que absurdo, imaginar que alguém tivesse atravessado mais de mil anos graças a ele. Um homem que vivera guerras antigas, que ajudara a fundar o próprio Império, e agora era parte de sua linhagem?

    O pensamento se enroscava em sua mente como uma serpente fria. Cada tentativa de racionalizar só fazia o estômago se revirar.

    Um leve som metálico interrompeu seus devaneios. A porta da cela se abriu com um sibilo suave.

    — A Matriarca Zyab deseja vê-la — anunciou Nia, com o mesmo tom neutro de sempre.

    Lyra se ergueu devagar e seguiu Nia pelos corredores da nave.

    Chegaram à ponte de comando. Dois pilotos operavam consoles com precisão. O símbolo das manoplas cruzadas, brasão do Império, brilhava em seus uniformes. Zyab estava de pé, observando um mapa estelar flutuante. Sem dizer palavra, Nia se curvou e partiu. Zyab então se virou.

    — Leu o que pedi?

    — Nada de novo — respondeu Lyra. — O Domatorum parecia mais um panfleto de recrutamento. E a Quarta Legião… apenas propaganda imperial.

    Ela estendeu o tablet, mas Zyab recusou com um aceno.

    — Fique com ele. Vai precisar dele na escola. Sente-se.
    Havia dois assentos em um canto discreto. Zyab se acomodou diante de Lyra, os olhos atrás da máscara atentos.

    — Às vezes me esqueço o quão limitadas são as informações da rede pública — disse ela, escolhendo as palavras com cuidado.

    — Sim, seu pai é Paul Zachary. Praetor Primus da Quarta. Talvez o mais próximo do Demiurgo que já existiu. Ou era, ao menos — ela enfatizou — antes de desaparecer, cruzando a Ruptura do Véu, há cerca de oitocentos anos.

    — Isso aconteceu pouco depois do Demiurgo se recolher ao Mausoléu. Há quem diga que ele segue ordens divinas. Outros… que é um traidor. A Quarta vive sob suspeita. Os inquisidores os vigiam com lupa. Falam em propósitos ocultos. É difícil separar o mito da verdade.

    Zyab a encarou em silêncio por um momento.

    — Registrei você no sistema como filha de Rob e Virna Veyne. É mais seguro assim. Sugiro manter esse segredo. Sua tolerância já atrairá bastante atenção. Não precisamos adicionar mais lenha nessa fogueira.

    — Obrigada — disse Lyra, sem convicção. Ainda digeria cada revelação, tentando costurar tudo em algo que fizesse sentido.

    Zyab não deu trégua:

    — O lugar para onde você vai é uma forja. Dor, disciplina, competição. Você será testada até seus ossos aprenderem a obedecer. Terá que ser forte, Lyra.

    Lyra hesitou, então perguntou:

    — Por que está fazendo isso por mim?

    Zyab riu. Pela primeira vez, de verdade.

    — Não é por você. Ajudar você… é me ajudar. Seu sucesso justifica a minha escolha. Se você for forte, sua vitória será minha também. Entende?

    Lyra saiu da ponte em silêncio. Cada passo parecia mais pesado que o anterior.

    Enquanto caminhava pelos corredores da nave, não pensava em Zyab, no Domatorum ou no pai desaparecido.

    Pensava apenas numa frase simples, repetida como um sussurro dentro de si:

    — não vou me permitir quebrar.

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