Capítulo 15: Em um lugar escondido
Todos os jovens do dormitório cercaram Lyra, movidos por curiosidade e desconfiança.
O rapaz que havia indicado sua cama foi o primeiro a se aproximar. Estendeu a mão com um sorriso fácil, ligeiramente inclinado para o charme ensaiado.
— Sou Russel — disse, sorrindo como quem já esperava ser bem recebido.
Lyra se ergueu antes de retribuir o gesto, sem baixar o olhar. Não queria se colocar em inferioridade.
— A garota não vai cair no seu charme barato, Russ — cortou uma garota baixa, de pele pálida e olhos puxados penetrantes. — Sou Imara.
Antes que Lyra pudesse dizer qualquer coisa, um grandalhão meio desajeitado, de cabelos castanhos desgrenhados, se aproximou. Quase tropeçou em Imara ao tentar se adiantar.
— Sou Branth — disse ele, com um sorriso genuíno estampado no rosto. — Eu gosto das criaturas.
Lyra conteve o sobressalto ao perceber o detalhe. O braço direito dele era nitidamente maior e mais musculoso que o esquerdo, uma deformidade causada por exposição ao aether. Havia visto coisas assim em Glasurith, em mineiros que depois desapareciam sob custódia de inquisidores.
— Saia da frente, grandão — veio uma voz leve, quase musical.
Uma garota de cabelos ruivos acobreados surgiu por trás de Branth, sardas salpicadas pelo nariz e bochechas. Ela dava tapinhas no ombro dele, pedindo passagem.
— Sou Kara. E você?
— Lyra…
Mas antes que pudesse completar, uma voz firme e ensaiada se impôs.
— Ela é Lyra. Lyra Veyne, sim, a garota de quem os instrutores andam cochichando pelos corredores achando que ninguém ouve — declarou um rapaz alto, de pele escura e cabelos trançados. Ele falava como alguém acostumado a liderar. — Agora está conosco. Quer gostem ou não. Última da leva de calouros… e nossa responsabilidade agora.
Lyra arregalou levemente os olhos. Sua fama havia chegado antes dela, e ela nem fazia ideia do que diziam a seu respeito.
A menção ao seu nome pareceu acender algo nos outros. Os olhares ficaram mais atentos, avaliativos. Alguns trocaram breves olhares entre si.
O mesmo rapaz se apresentou com um gesto fluido, quase teatral:
— Sou Calder, líder deste dormitório — disse, e então apontou para os dois que ainda não haviam se manifestado. — Aquela é Tyla, e aquele ali é Rin.
Tyla prendeu imediatamente a atenção de Lyra. Partes de sua pele reluziam em tom dourado, como se ouro líquido tivesse sido injetado em sua carne e se solidificado em veios finos, quase orgânicos, sobre o pescoço, braços e rosto. Era bela, letal, etérea. E perturbadora. Mais alguns anos, e teria o corpo esculpido como o de Lady Aliah.
O nome bastou para um tremor involuntário sacudir Lyra. Ela prendeu a respiração e apertou os punhos, buscando controlar a enxurrada de memórias. Rob sendo executado, ela tendo que se tornar um tributo. Tanta coisa em tão pouco tempo.
Rin, em contraste, parecia existir em outra frequência. Cabelos longos e prateados, um rosto andrógino que parecia tanto velho quanto jovem. Estava parado, murmurando para a parede, alheio ao resto do grupo. Até que, subitamente, parou e virou-se para Lyra. O olhar que lançou nela não era humano. Era como se soubesse exatamente quais eram seus segredos. Um arrepio percorreu sua espinha.
Calder se virou para ela novamente, desta vez com um tom mais pragmático:
— E então? — perguntou. — O que sabe dos regulamentos, Lyra?
Ela hesitou.
— Ahm… nada?
— Bom, então vamos resolver isso agora — disse ele, com um suspiro que parecia já esperar essa resposta. — Nesse prédio, somos todos tributos. Alguns foram doados à força. Outros vieram de campos de trabalho. Poucos fazem isso por vontade própria.
Ele fez um gesto com a cabeça em direção à janela, indicando o campus.
— Os voluntários ficam nos outros prédios. Gente que se inscreve achando que vai herdar glória, nome ou poder. E ali, atrás do nosso, o prédio preto. Acesso restrito. Lá treinam os legados — enviados pelos grandes nomes do Império. Os filhos perfeitos.
Fez uma pausa, certificando-se de que ela estava absorvendo tudo.
— Aqui dentro, tudo é feito em equipes. Você tem uma nota individual, mas nossa nota coletiva também importa. Se você cair, caímos junto. Os dormitórios são as equipes. Estamos presos uns aos outros.
Andou até a janela e apontou uma construção larga, com janelas maiores e aparência menos opressiva.
Lyra acompanhou o gesto com o olhar, e seus olhos se estreitaram ao captar algo que até então não notara.
No pátio interno da construção, parcialmente encoberto pela vegetação ornamental e a estrutura do próprio prédio, havia uma piscina. Duas garotas estavam ali, deitadas em espreguiçadeiras, com roupas leves e corpos atléticos, conversando e rindo como se estivessem de férias.
— Aquilo ali é a Mansão. As duas melhores equipes de cada categoria — legados, voluntários e tributos — se mudam pra lá. Quartos e banheiros individuais. Comida melhor. Mais tempo livre. Um paraíso comparado ao resto. A cada quatro meses as notas são comparadas.
Quem está nas últimas posições é rebaixado. Os piores, entre nós tributos, são expulsos. Dizem que são enviados para as Legiões de descarte, servir de bucha de canhão.
Ele cruzou os braços, analisando sua reação.
— O quadrimestre começou há dez dias. Ainda dá pra correr atrás do prejuízo. Se quiser, podemos te ajudar. Mas só se for pra valer. Porque se você atrasar, todos nós pagamos o preço.
Depois lançou um olhar breve para o tablet preso ao pulso dela.
— Os treinos começam amanhã. Treino físico às cinco da manhã. Depois, desjejum no refeitório. Depois aulas. Sugiro você ler o regulamento todo.
Sorriu, sem alegria.
— Bem-vinda à forja, Lyra Veyne.
Naquela madrugada, Lyra rolava de um lado para o outro na cama estreita. O sono parecia distante. Um turbilhão silencioso girava dentro dela, ansiedade, saudade e um tipo de temor que não sabia nomear. Mesmo exausta, seu corpo se recusava a descansar.
Mais cedo, Lyra tinha aprendido a localização dos espaços básicos: o banheiro, o almoxarifado, onde retirou lençóis, um cobertor áspero, algumas trocas de roupa e doses de aether, o suficiente para, talvez, uns dez dias. Ninguém comentava abertamente, mas todos ali dependiam da substância. Tudo era adquirido por meio de créditos, uma moeda que ela ainda não possuía, mas que seria cobrada depois. Esforço, trabalho, desempenho.
Imara e Kara a haviam guiado até lá com a praticidade de quem já tinha passado por tudo aquilo antes, eram diretas e objetivas, sem espaço para simpatias desnecessárias.
Ela se deitou depois disso, mas dormir era outra história.
— Não consegue dormir? — sussurrou uma voz baixa, doce e rouca. Era Tyla.
Lyra virou o rosto em sua direção.
— Acho que é ansiedade — respondeu num fio de voz, sem tentar esconder o cansaço.
Houve uma breve pausa antes da resposta.
— Vi o modo como me olhou. Como julgou as minhas alterações. Mas você… você é hipócrita. Tem sardas douradas na pele. Marca clara de exposição ao mesmo aether que me moldou.
A frase caiu como uma pedra num lago quieto. Tyla nem esperou resposta. Se virou, puxou o cobertor sobre a cabeça e encerrou a conversa.
Lyra ficou olhando para o teto por mais alguns segundos, sentindo o peso de cada palavra. Depois soltou o ar lentamente, como se libertasse algo preso no peito. Não respondeu. Como poderia explicar?
“Que bela maneira de começar uma amizade”, pensou. Se virou e tentou dormir. O dia que se aproximava seria seu primeiro desafio.
Na mesma hora, em outro canto do campus, um velho depósito esquecido pelo tempo abaixo do ginásio principal se tornava palco de algo mais sombrio. As caixas empilhadas lançavam sombras tortas sob o brilho pálido da lua que escorria pelas claraboias. O lugar era abafado, úmido, e o silêncio era quebrado apenas pelas vozes contidas dos que ali se escondiam.
— As câmeras aqui foram desligadas? — perguntou uma das figuras, envolta em um manto grosso que cobria até os pés. A voz saía distorcida, vibrando em tons metálicos por causa do modulador embutido na máscara.
— Desligar chamaria atenção. Melhor deixá-las funcionar… só que sem gravar. Já manipulei os logs. E os drones… os drones agora voam em outras rotas. Ninguém vai passar por aqui — respondeu a outra voz, menos encoberta, mas ainda cautelosa.
— Ótimo — murmurou o encapuzado, voltando o olhar para uma das caixas abertas, onde símbolos antigos estavam riscados na madeira com um brilho tênue. — E os preparativos?
— Estão avançando. Será um grande sacrifício. Um gesto digno do Axioma Primordial. Uma oferenda como há muito não se vê.
— Ao Axioma Primordial — repetiu a figura encapuzada, quase em êxtase. — Quando acha que as peças estarão todas em posição?
— Não posso dar datas exatas. Ainda estamos organizando o fluxo dos calouros. Mas estou trabalhando para que tudo esteja pronto no momento em que forem buscar suas primeiras bestas. Aí será perfeito.
— se apresse, porque até lá, terei que continuar carregando essa forma… abominável.
— Não se aflija, ó Ungido. Passará rápido. Certas coisas não podem ser apressadas, dependo de peças, encomendas… Quando chegar o dia… a realidade será rasgada, teremos outra ruptura.
Um silêncio pesado caiu sobre o depósito. Lá fora, a lua seguia seu curso indiferente, ignorante do que se gestava sob sua luz.
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