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    Um som agudo de sirene cortou o silêncio do prédio, fazendo todo o quarto vibrar levemente. Lyra despertou sobressaltada, o coração acelerado. Por um instante, pensou ainda estar a bordo da nave de Zyab, presa naquela cama estreita e desconfortável, não que sua situação atual fosse muito melhor.
     

    — Vamos, vamos! — a voz de Calder ecoou com firmeza pelo dormitório. — Temos quinze minutos pra estar no campo de treino!

    Lyra bufou. Ele parecia já estar acordado e pronto a tempos.
     

    Kara e Imara já corriam em direção ao banheiro, as escovas de dente presas entre os lábios e os macacões pretos imperiais enrolados nos braços.
     

    Lyra, vendo o movimento, se levantou num salto. Pegou sua escova e as roupas, agradecendo mentalmente por seus cabelos não passarem dos ombros.
     

    — Esperem por mim — sussurrou, tropeçando nos próprios pensamentos mais do que nos próprios pés.
     

    Antes de sair, foi surpreendida pela naturalidade com que Tyla tirava o pijama ali mesmo, sem qualquer cerimônia, vestindo o macacão na frente dos rapazes. Por reflexo, Lyra desviou o olhar. Esperava ouvir algum comentário, talvez um riso abafado. Mas não houve nada. Nem um murmúrio. Eles apenas aceitaram a cena como parte da rotina. Tyla também não parecia se importar.
     

    Lyra se pegou pensando se algum dia teria esse tipo de desprendimento. Aquela segurança de quem já sabe exatamente quem é, ou pelo menos finge muito bem.
     

    Quando as três voltaram ao quarto, os outros já estavam prontos, em pé, alguns alongando os braços ou batendo os pés no chão para espantar o sono.
     

    — Vamos — disse Calder, lançando um olhar significativo a Lyra. — Não queremos que você se atrase logo no primeiro dia.
     

    — Quem chegar por último paga dez flexões — brincou Imara, saindo pela porta com um sorriso travesso.
     

    Branth franziu o cenho, como se aquilo fosse uma provocação pessoal, e disparou pelo corredor feito um touro bravo.
     

    Minutos depois, já estavam todos enfileirados junto aos demais estudantes, um pouco ofegantes pela corrida até o campo. A luz começava a filtrar pela cúpula translúcida que cobria toda a área de convivência, tingindo tudo com um azul frio de madrugada. Lyra lançou um olhar breve para o céu acima, lá fora, a chuva ainda caía pesada, martelando a estrutura em intervalos rítmicos. Deu graças por estarem em um ambiente controlado.
     

    Era o único momento do dia em que todos os alunos dividiam o mesmo espaço. Os tributos, como ela, usavam macacões pretos. Os voluntários vestiam vermelho. Já os legados, com seus corpos colossais, trajavam um tom bege, mas a verdade é que não precisavam de uniformes para se destacarem. Mesmo no meio de uma multidão, era impossível não vê-los. Gigantes em meio a homens.
     

    Lyra arriscou uma contagem rápida: cerca de cinquenta legados, cem voluntários, talvez trezentos tributos. Um formigueiro disciplinado.
     

    De um dos prédios laterais, surgiram dez homens em uniformes pretos. Marchavam com sincronia militar. Um deles, mais à frente, carregava um grande tablet. Tinha bigode fino, cabelos raspados e um semblante que deixava claro: aquele homem não tinha paciência para nada além de ordens cumpridas.
     

    O campo de treino era construído como um pequeno estádio, só que sem arquibancadas. No centro, uma pista semicircular, com várias raias marcadas, e uma área ampla com diversos tipos de obstáculos: barreiras, cordas, rampas, estruturas metálicas. Era um campo de guerra disfarçado de academia.
     

    O homem apitou com força, o som cortando o ar da manhã como uma lâmina.
     

    — Muito bem. Pra quem ainda não me conhece, sou o sargento Miles. Minha função aqui é simples: fazer vocês deixarem de ser inúteis — disse, com voz seca. — Vamos começar. Legados com a equipe da Briana!
     

    Lyra reconheceu a mulher de ontem, era a guarda de cabelos vermelhos que recolhera os pertences do antigo ocupante de sua cama. Ela se adiantou com passos largos e firmes, seguida por três instrutores. Ao chegar ao centro do campo, sua voz projetou com autoridade.
     

    — Legados, comigo. Vamos começar com exercícios no campo de obstáculos.
     

    — Voluntários com o instrutor Eric — continuou Miles.
     

    Um homem corpulento, com braços largos e uma expressão severa, avançou para a área de obstáculos, seguido por dois assistentes. Sua voz ressoou como um trovão abafado.
     

    — Voluntários, área de força. Corram!
     

    Miles então olhou para os tributos, como se analisasse gado no abatedouro.
     

    — Tributos pra pista. Cinco quilômetros pra aquecer. Vocês têm trinta minutos. Depois rotacionamos.
     

    Calder liderou o grupo na direção da pista. Lyra o seguiu, o coração já acelerado. Não só pela corrida iminente, mas pelo que significava estar ali.
     

    Ela não era uma iniciante. Rob sempre foi um treinador rigoroso. Mais do que rigoroso, era quase cruel, em certos dias. Mas agora, naquele lugar, tudo aquilo fazia sentido. A dor, a repetição, a cobrança.
     

    Sem perceber, um sorriso tênue brotou em seus lábios. Lembrou das manhãs geladas nas minas, das corridas em volta ao terreno arenoso onde praticava esgrima, da voz de Rob gritando para que ela mantivesse a respiração estável. Da vez em que caiu e ralou os dois joelhos, e ele a fez levantar e continuar.
     

    Era como se ele tivesse preparado ela para aquilo desde sempre. Podia ouvir sua voz em sua lembrança:
     

    — Levanta e continua, Lyra.
     

    E agora, era sua vez de provar que valia o esforço.

    O apito soou mais uma vez. Estridente. E os tributos começaram a correr.

    Lyra partiu junto, sentindo os tênis baterem contra o piso firme da pista. O som coletivo de passos ecoava em uníssono, como um tambor primitivo. O ritmo dos outros era forte, mas ela manteve o dela. Aprendera com Rob que corrida era mais sobre controle do que força bruta.
     

    Viu que Calder corria a frente, sem esforço. Tyla verificou seu tablet no pulso, medindo seu tempo e disparou à frente, como se disputasse contra si própria.
     

    — Respira pelo nariz. Solta pela boca — murmurou para si mesma, ouvindo a própria voz sumir entre as dezenas de outras ao redor.
     

    Branth corria com passos largos, mas desajeitados, tropeçando de leve nas curvas. Russel e Kara corriam lado a lado, rindo de algo. Imara vinha mais atrás, concentrada. Rin… não dava pra saber. Em algum ponto atrás, murmurando algo como sempre.
     

    Calder olhou para trás, avaliando a posição do grupo, e lançou um olhar breve a Lyra. Como se estivesse medindo até onde ela iria aguentar.

    Ela manteve os olhos nele. Não para desafiá-lo. Mas para lembrar a si mesma que podia acompanhar.
     

    O primeiro quilômetro foi fácil.
     

    O segundo começou a morder os tornozelos.
     

    No terceiro, Lyra sentia o gosto metálico na garganta. Mas não diminuiu. O suor escorria pelas têmporas, os fios de cabelo colavam na testa. As lembranças dos dias em Glasurith vieram com força, a areia escura, os campos de refino, o calor tóxico dos fornos.
     

    Sentiu as forças começarem a diminuir. Não estava acostumada a treinos tão específicos. Tirou o aplicador de um dos bolsos e usou uma dose de aether. Imediatamente, sentiu a cabeça clarear e o cansaço diminuir.
     

    No quarto quilômetro, um tributo à frente tropeçou e caiu. Dois outros o ultrapassaram sem hesitar. Ninguém parava. Não era permitido. Não ali.
     

    Quando o quinto e último quilômetro chegou, Lyra quase não acreditou. Seu peito ardia. Mas não havia parado. Nem por um segundo.
     

    Os tributos foram diminuindo o ritmo aos poucos, até pararem nos limites da pista. Vários se curvaram, ofegantes. Branth deitou no chão de braços abertos, arfando alto. Kara jogou água no rosto. Russel desabotoou a parte de cima do macacão suado e riu para algumas garotas em volta, como se tivesse ido ali só se distrair.
     

    Lyra manteve-se de pé, mesmo vacilando. O orgulho não a deixava demonstrar fraqueza.
     

    O sargento Miles voltou a apitar.
     

    — Vamos! Rotação!
     

    Os instrutores se dividiram e começaram a conduzir os tributos para a segunda etapa: força.
     

    O grupo de Lyra foi levado até um conjunto de barras, cordas suspensas, pesos e estruturas giratórias. O chão era de borracha grossa, marcado por pegadas e suor.
     

    Miles caminhava entre eles como um cão de guarda.
     

    — Vocês acham que cinco quilômetros provam alguma coisa? Isso aqui é uma escola de domadores. No fim do mês, quero vocês correndo vinte e cinco. Sem suar. Vocês vão carregar criaturas com o dobro do seu peso, atravessar florestas, lamaçais, desertos… Vão lutar com as mãos nuas, se for preciso. Não me interessa o quão fodidos chegaram aqui. Só me interessa quem sai vivo.
     

    Ele apontou para as barras.
     

    — Subam. Dez vezes. Se caírem… volta do zero.
     

    Lyra caminhou até uma das estruturas. Estava acostumada com trabalho físico: carregar peso, operar brocas, empurrar carrinhos de minério. Seus ombros, costas e antebraços eram fortes para seu tamanho.
     

    A barra era fria. As mãos, suadas. Respirou fundo. Puxou.
     

    Um. Dois. Três. Os braços queimavam.
     

    Na sexta repetição, já tremia.
     

    Na oitava, grunhiu baixinho, o rosto tenso.
     

    Na décima, quase gritou.
     

    Mas terminou.
     

    Ao cair de volta no chão, os pulmões imploravam por ar, mas um pequeno sorriso se formou. Discreto. Sobreviveu ao primeiro teste. E ainda era só o começo.
     

    Ainda ofegantes, os tributos foram levados para outro ponto do campo. O chão agora era de areia. Tinha marcas de garras, impactos e manchas antigas. Cheirava a ferro, suor e medo velho.
     

    O sargento ergueu o tablet.
     

    — Saco de areia. Vão encher e carregar de um lado ao outro, cruzando toda a pista. Individual. Até o fim da rotação.
     

    A areia grudava nos calçados. Cada passo era um desafio. Branth já enchia seu saco com entusiasmo. Lyra correu, não queria ficar para trás. Tyla trabalhava com precisão quase matemática. Imara, a menor entre eles, praguejava baixinho.
     

    Lyra encheu seu saco e o lançou ao ombro. Devia pesar uns trinta quilos. A primeira volta foi tolerável. Mas ela sabia, nas últimas, o peso triplicaria.
     

    Quando o apito soou, marcando o fim da atividade, Lyra sentiu uma vertigem. O estômago se revoltou.
     

    — Não pare de se movimentar — disse um rapaz ao seu lado, olhos azuis e cabelos loiros cortados rente. — Se parar de uma vez, aí vomita mesmo.
     

    — Obrigada.
     

    Nunca tinha ouvido aquilo, mas percebeu muitos tributos andando de um lado para o outro, respirando devagar. Outros, como Imara, simplesmente vomitavam na areia.
     

    — Obstáculos. Agora. Dois a dois! — gritou Miles.
     

    O grupo do dormitório se dividiu rapidamente.
     

    Sobraram Lyra e Rin.

    Ela engoliu seco. Rin ainda olhava para o nada, até virar lentamente o rosto em sua direção. Não disse nada. Caminhou até ela, como se já soubesse o que estava decidido.
     

    — Tributo Veyne, tributo Rin. Pista quatro. Agora.
     

    A estrutura parecia saída de um pesadelo. Cordas, rampas escorregadias, túneis estreitos, obstáculos flamejantes controlados por válvulas, e por fim, uma parede de três metros que exigia trabalho em dupla.
     

    — Ao sinal.
     

    O apito cortou o ar.
     

    Rin saiu na frente. Ágil. Rápido demais para alguém tão ausente. Lyra correu atrás, escalou as cordas com o corpo ardendo. Na rampa, escorregou duas vezes, mas se arrastou. No túnel, quase não havia espaço para respirar. Saiu do outro lado ofegante, com lama até os joelhos.
     

    Rin já a esperava na base da parede.
     

    — Preciso de impulso.
     

    Rin não respondeu. Apenas entrelaçou as mãos. Lyra pisou ali, gritou, e se lançou. Agarrou a borda. Puxou com força. Chegou ao topo, trêmula.
     

    Estendeu a mão.
     

    Rin a encarou. Os olhos enevoados pareciam, por um instante, reconhecer algo.
     

    Pegou a mão dela.
     

    O peso o puxou para frente, quase caíram juntos. Mas Lyra fincou os calcanhares, prendeu a respiração, e puxou.
     

    Subiram.
     

    Caíram do outro lado, rolando na terra.
     

    — Bem… — murmurou ela, cuspindo barro — isso foi interessante.
     

    Rin sorriu.
     

    Voltaram para a fila. Sujos. Exaustos. Inteiros.
     

    Miles passou os olhos por eles.
     

    — Melhor do que eu esperava. Talvez não morram tão cedo.
     

    Lyra limpou o rosto. Suor. Lama. Talvez uma lágrima.
     

    Mas estava inteira.
     

    E naquele campo, sob a cúpula ainda cinzenta, enquanto as nuvens pesadas deslizavam sobre o céu artificial, soube: não tinha vindo para sobreviver.
     

    Tinha vindo para vencer.

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